Um governo arrogante que se recusa a negociar e um estatuto disciplinar para a
administração pública mais próprio do regime
anterior ao 25 de Abril
RESUMO DESTE ESTUDO
O governo apresentou aos sindicatos da Administração
Pública um calendário de "negociações"
que mostra claramente não pretender negociar seja o que for. É
mais uma prova da arrogância deste governo. De acordo com esse
calendário, teriam de ser "negociados" até ao dia 12 de
Junho os seguintes diplomas: (1) O novo
"Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem funções públicas"
, com 82 artigos, em apenas duas reuniões, ou seja, em 4 horas; (2) A
Tabela de
remunerações única para a Administração
Pública com 115 posições remuneratórias numa
única reunião, ou seja, em 2 horas; (3) A fusão das
actuais 1.669 carreiras e categorias do regime geral da
Administração Pública em apenas três carreiras, numa
única reunião, ou seja, em 2 horas; (4) O Regime de Trabalho em
funções públicas, também conhecido como o
Código do Emprego Público, que é o Código do
Trabalho da Administração Pública, cujo conteúdo se
desconhece porque ainda não foi entregue aos sindicatos mas que, segundo
o governo, tem mais de 800 artigos, em apenas quatro reuniões, ou seja,
em 8 horas, o que daria uma média de mais de 100 artigos por hora; (5) A
Proposta de Lei sobre a Protecção Social, cujo conteúdo
ainda não se conhece, pois o projecto ainda não foi entregue aos
sindicatos, em apenas duas reuniões, ou seja, em 4 horas. Perante este
calendário os comentários parecem desnecessários.
O projecto de "Estatuto Disciplinar dos trabalhadores que exercem
funções públicas", que foi entregue pelo governo aos
sindicatos, contem normas que são mais próprias do regime que
vigorou em Portugal até ao 25 de Abril, do que de um regime
democrático. De acordo com o projecto, o governo pretende ter poder para
punir um trabalhador ou um aposentado mesmo depois destes terem saído da
Administração Pública. Assim, um trabalhador que saia da
Administração Pública, que vá trabalhar, por ex.
durante 15 anos para o sector privado, e que, ao fim deste período,
ingresse de novo na Administração Pública poderia ser
punido por uma infracção disciplinar que cometeu 15 anos antes
quando esteve na Administração Pública. Contrariamente ao
que sucede no sector privado que, de acordo com o nº1 do artº 365 do
Código do Trabalho, o poder disciplinar do empregador termina com a
cessação do contrato de trabalho, o governo pretende prolongar
esse poder para além da cessação do contrato de trabalho,
para poder punir o trabalhador se ele voltar a ingressar de novo na
Administração Pública. Em relação aos
reformados e aposentados, a situação é ainda muito mais
grave porque o governo pretende ter poder para lhes tirar os meios de
sobrevivência. Assim, de acordo com o projecto de Estatuto Disciplinar do
governo, o reformado ou o aposentado poderia ser punido com a perda de
pensão até dois anos por uma infracção disciplinar
cometida durante o período em que esteve no activo.
Mas o projecto de Estatuto Disciplinar do governo não se limita apenas a
isto. Pretende introduzir o despedimento com base em duas
avaliações negativas. Segundo a alínea h) do artº
18º do projecto, as penas de demissão e de despedimento são
aplicáveis nomeadamente aos trabalhadores que "sendo nomeados
cometam reiterada violação do dever de zelo, manifestada
na obtenção de duas avaliações do desempenho
negativas consecutivas
". E não se pense que isto é
só para os trabalhadores com vinculo de nomeação. De
acordo com o artº 3 das chamadas "Normas preambulares" do
projecto de Estatuto Disciplinar, o disposto no artº 18º, ou seja, a
pena de demissão ou de despedimento devido a duas
avaliações negativas, é também aplicável aos
trabalhadores que, por força da "Lei de Vínculos, carreiras
e remunerações" , passem da situação de
nomeados para a modalidade de contrato de trabalho por tempo indeterminado, o
que abrange mais de 90% dos trabalhadores da Administração
Pública. Para que se possa ficar com uma ideia clara das verdadeiras
consequências desta norma, interessa ter presente também a
"Lei de Vínculos, carreiras e remunerações"
assim como o decreto-lei do governo sobre a fusão das carreiras. De
acordo com estes diplomas, as 1669 carreiras e categorias actualmente
existentes são extintas, e os trabalhadores que estão nestas
carreiras são "encaixados" em apenas três carreiras
Técnico superior, Assistente Técnico, e Assistente
Operacional somente com uma categoria cada uma delas, se se excluir os cargos
de chefia o que determinará a polivalência absoluta no
interior de cada uma daquelas três carreiras. Por isso, será
sempre fácil a qualquer chefia, exigir a um trabalhador a
execução de uma tarefa nova que ele não tenha
experiência e mesmo habilitações académicas,
atribuindo-lhe facilmente uma avaliação negativa. Com estas duas
leis o governo pretende introduzir, objectivamente, um regime de terror na
Administração Pública, em que o trabalhador viverá
sob a ameaça constante de ser demitido ou despedido. E o poder para
aplicar estas penas passa para o dirigente máximo do órgão
ou serviço, competindo ao membro do governo a aplicação de
penas somente ao dirigente máximo. Desta forma o poder das chefias
torna-se quase absoluto, se se tiver presente o que resulta já da
"Lei de Vínculos , carreiras e remunerações".
O que está suceder na Administração Pública
não interessa apenas aos trabalhadores da função
pública, mas sim a todos os trabalhadores portugueses. Em primeiro
lugar, porque é de prever que sirva de paradigma para o sector privado,
já que as entidades patronais vão começar a reivindicar o
mesmo para o seu sector. Em segundo lugar, porque tudo isto irá
pôr em causa o acesso a serviços públicos essenciais.
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O governo de Sócrates acabou de apresentar aos sindicatos um Projecto de
Proposta de Lei que visa aprovar o "Estatuto Disciplinar dos
Trabalhadores que exercem funções públicas", o qual,
como consta da "Exposição de motivos inicial", é
"aplicável a todos os trabalhadores que exerçam
funções públicas, qualquer que seja a modalidade de
constituição da sua relação jurídica de
emprego público", e não apenas aos trabalhadores com vinculo
de nomeação, como sucedia até aqui. E este projecto de
Estatuto Disciplinar contém normas, por um lado, mais próprias do
regime que vigorou em Portugal até ao 25 de Abril e, por outro lado,
muito mais gravosas do que as contidas no Código do Trabalho, regime
que, afirma o governo, se pretender aproximar, criando assim uma
situação de desigualdade, para pior, entre os trabalhadores da
Administração Pública e os trabalhadores do sector
privado. É isso o que se vai provar neste estudo analisando algumas das
normas mais importantes do projecto do governo.
UM GOVERNO ARROGANTE QUE SE RECUSA A NEGOCIAR
Um dos aspectos que caracteriza este governo é a sua arrogância, o
convencimento de que só ele possui a verdade, e a consequente recusa em
ter uma negociação séria e verdadeira com as
associações sindicais.
O calendário de "negociações" apresentado pelo
governo aos sindicatos dos trabalhadores da Administração
Pública em 26/03/2008 é a prova mais cabal da arrogância
deste governo. De acordo com esse calendário, teriam de ser
"negociado" até ao dia 12 de Junho os seguintes diplomas:
(1) O novo "Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem
funções públicas", com 82 artigos, em apenas duas
reuniões, ou seja, em 4 horas;
(2) A Tabela de remunerações única para a
Administração Pública com 115 posições
remuneratórias numa única reunião, ou seja, em 2 horas;
(3) A fusão das actuais 1.669 carreiras e categorias do regime geral da
Administração Pública a apenas três carreiras, numa
única reunião, ou seja, em 2 horas;
(4) O Regime de Trabalho em funções públicas,
também conhecido como o Código do Emprego Público,
já que é uma espécie de Código do Trabalho para a
Administração Pública, cujo conteúdo se desconhece
porque ainda não foi entregue aos sindicatos mas que, segundo o governo,
tem mais de 800 artigos, em apenas quatro reuniões, ou seja, em 8 horas,
o que daria uma média de mais de 100 artigos por hora;
(5) A Proposta de Lei sobre a Protecção Social, cujo
conteúdo ainda não se conhece, pois o projecto ainda não
foi entregue aos sindicatos, em apenas duas reuniões, ou seja, em 4
horas.
Para agravar tudo isto, o governo deixou propositadamente deslizar a
apresentação dos projectos aos sindicatos para o fim do mês
de Março, quando se tinha comprometido a entregá-los no inicio de
Janeiro com o claro propósito de impedir, por um lado, qualquer
negociação séria e, por outro lado, que os trabalhadores
conhecessem o conteúdo e se apercebessem das consequências
daqueles diplomas. Fica assim claro que o governo, com uma proposta de
calendário desta natureza, o que pretende é um simulacro de
negociações.
O GOVERNO PRETENDE PODER PUNIR O TRABALHADOR MESMO DEPOIS DE TER CESSADO O
CONTRATO DE TRABALHO OU DESTE SE TER APOSENTADO OU REFORMADO
Um princípio fundamental do direito é que o poder disciplinar do
empregador sobre o trabalhador acaba com cessação do contrato de
trabalho. O próprio Código do Trabalho, no nº 1 do
artº 366 consagra este principio, ao estabelecer o seguinte: "O
empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador que se encontre ao seu
serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho". Portanto, a
partir do momento em que cesse o contrato de trabalho, ou seja, desde a data em
que o trabalhador saia da empresa, a entidade patronal já não tem
poder disciplinar sobre o trabalhador, isto é, já não
poderá puni-lo por uma infracção disciplinar cometida
enquanto esteve na empresa.
O governo apresentou aos sindicatos um projecto de Estatuto Disciplinar que
viola aquele princípio fundamental e elementar de direito. De acordo com
o projecto apresentado, o governo pretende, após a saída do
trabalhador da Administração Pública para ir trabalhar no
sector privado ou por passar à situação de aposentado ou
reformado, ter poder disciplinar para aplicar ao trabalhador uma
sanção que poderá ser pecuniária ou de outra
natureza.
Assim, de acordo com o nº4 do artº 4º do projecto de Estatuto
Disciplinar do governo, "a cessação da relação
de emprego público ou a alteração da
situação jurídico-funcional não impedem a
punição por infracções cometidas no
exercício da função". Isto significa que o
trabalhador que tenha deixado a Administração Pública
poderá ser punido por uma infracção cometida no
período em que ainda estava na Administração
Pública. O governo pretende continuar a ter poder disciplinar sobre o
trabalhador, mesmo depois deste ter saído da Administração
Pública.
O ESPÍRITO PERSECUTÓRIO DO ESTATUTO DISCIPLINAR DO GOVERNO
Em relação aos trabalhadores activos que saíram da
Administração Pública indo trabalhar no sector privado,
de acordo com o nº1 do artº 12º do projecto de Estatuto
Disciplinar do governo, "em caso de cessação do contrato de
trabalho as penas são executadas desde que os trabalhadores constituam
nova relação jurídica de emprego público ou passem
à situação de aposentação ou reforma".
Tudo isto torna-se mais claro se se tiver presente duas outras normas contidas
no projecto de Estatuto Disciplinar do Governo. Assim, de acordo com o nº1
do artº 12º deste projecto, "em caso de cessação
da relação jurídica de emprego público, as penas
previstas nas alíneas b) a d) do nº1 do artº 12º, ou
seja, as penas de multa, suspensão, demissão ou despedimento,
são executadas desde que os trabalhadores constituam nova
relação jurídica de emprego publico ou passem à
situação de aposentação ou reformado". Isto
significa que se um trabalhador sair da Administração
Pública e vá trabalhar no sector privado, por ex. durante 15
anos, se após esse prazo concorrer e ingressar de novo na
Administração Pública então, nessa altura, o
trabalhador será punido pela infracção que cometeu 15 anos
antes, ou seja, poderá ser multado, demitido ou despedido.
Em relação aos aposentados e reformados, de acordo com o nº2
do artº 12 do mesmo projecto de Estatuto, "as penas são
aplicadas nos seguintes termos: (a) A de multa não pode exceder o valor
correspondente a 10 dias de pensão por ano; (b) A de suspensão
é substituída pela perda de pensão por igual tempo; (c) As
de demissão e de despedimento são substituídas pela perda
de pensão por período de 2 anos". Isto significa que um
aposentado ou um reformado poderá estar dois anos sem receber a sua
pensão, ou seja, ficará sem meios para poder sobreviver.
Em tudo isto é preciso ter presente que se está apenas a tratar
da infracção disciplinar, pois se tiver cometido um crime,
é evidente que, como qualquer português, continua sujeito aos
tribunais.
DESPEDIMENTO COM BASE EM DUAS AVALIAÇÕES NEGATIVAS
Segundo a alínea h) do artº 18º do projecto de Estatuto
Disciplinar do governo, as penas de demissão e de despedimento
são aplicáveis nomeadamente aos trabalhadores que "sendo
nomeados
cometam reiterada violação do dever de zelo,
manifestada na obtenção de duas avaliações do
desempenho negativas consecutivas
". E não se pense que isto
é só para os trabalhadores com vínculo de
nomeação. De acordo com o artº 3, das chamadas "Normas
preambulares" do projecto de Estatuto Disciplinar, o disposto no artº
18º, ou seja, a pena de demissão ou de despedimento devido a duas
avaliações negativas, é também aplicável aos
trabalhadores que, por força do nº 4 do artº 88 da Lei
12-A/2008 (Lei de Vínculos, carreiras e
remunerações"), passem da situação de nomeados
para a modalidade de contrato de trabalho por tempo indeterminado, que abrange
mais de 90% dos trabalhadores actuais da Administração
Pública..
Para que se possa ficar com uma ideia clara das verdadeiras consequências
desta norma, interessa ter presente a "Lei de Vínculos, carreiras e
remunerações" e também o decreto-lei do governo
sobre a fusão das carreiras. De acordo com estes dois diplomas, as 1669
carreiras e categorias actualmente existentes são extintas, e os
trabalhadores que estão nestas carreiras são
"encaixados" em apenas três carreiras Técnico
superior, Assistente Técnico, e Assistente Operacional somente com uma
categoria cada uma delas, se se excluir os cargos de chefia o que
determinará a polivalência absoluta no interior de cada uma
daquelas três carreiras. Por isso, será sempre fácil a
qualquer chefia, mesmo dando "formação adequada",
exigir ao trabalhador a execução de uma tarefa nova que ela
não tenha experiência, atribuindo-lhe facilmente uma
avaliação negativa. Com estas duas leis o governo introduz,
objectivamente, um regime de terror na Administração
Pública, em que o trabalhador viverá sob a ameaça
constante de ser demitido ou despedido.
O REFORÇO DO PODER DISCIPLINAR DAS CHEFIAS
De acordo com o artº 14º do projecto de Estatuto Disciplinar, a
competência para aplicar a pena de repreensão escrita é de
todos os superiores hierárquicos em relação aos seus
subordinados; a competência para aplicar as penas de suspensão, de
demissão e despedimento é do dirigente máximo do
órgão ou serviço; e compete apenas ao membro do governo
respectivo a aplicação de qualquer pena aos dirigentes
máximo do órgão ou serviço. Nas autarquias locais,
associações e federações de municípios, bem
como nos serviços municipalizados a competência para aplicar as
penas é dos órgãos executivos e dos conselhos de
administração. Desta forma é reforçado ainda mais o
poder das chefias que ficam com poder para despedir.
29/Março/2008
NOTA:
Em 28/03/2008, o governo enviou aos sindicatos um projecto de "Tabela
remuneratória única" para a Administração
Pública diferente daquela que antes tinha divulgado através dos
órgãos de comunicação social. Na versão
anterior, a única carreira em que a remuneração
máxima era superior às actuais era na carreira de Técnico
Superior, já que nas carreiras de "Assistente Técnico "
e de "Assistente Operacional" os valores máximos destas
carreiras eram inferiores aos valores máximos de
remunerações que podiam alcançar os trabalhadores das
carreiras que iriam ser integradas naquelas duas. Na versão
enviada aos sindicatos no dia 28/03/2008, a remuneração
máxima de Técnico Superior sofre uma redução
significativa pois passa de 3.569,63 euros (valor da versão do governo
divulgada pela comunicação social) para 3.169,30 euros
(versão enviada aos sindicatos em 28/03/2008), portanto sofre uma
redução de 400,33 euros por mês (ver nosso estudo
O governo pretende acabar com as carreiras
). Parece que a versão anterior só tinha como o objectivo
que os media pudessem divulgar, como o fizeram, que os Técnicos
Superiores iriam ser beneficiados com a proposta de Tabela remuneratória
máxima " do Governo. Cumprido esse objectivo o governo apressou-se
a reduzir o valor da remuneração máxima de
"Técnico Superior".
[*]
Economista,
edr@mail.telepac.pt
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