Crise sistémica global:
Implosão do mercado dos Títulos do Tesouro dos
EUA no 2º semestre de 2011
Para além das suas trágicas consequências humanas
[1]
, a terrível catástrofe que acaba de atingir o Japão
irá revelar-se o choque fatal para o mercado cambaleante dos
Títulos do Tesouro americano. No
GEAB Nº 52
, nossa equipe havia
explicado como o encadeamento das revoluções árabes, esta
queda do "muro dos petro-dólares"
[2]
, ia traduzir-se no ano corrente de 2011 pela travagem das compras
maciças de Títulos do Tesouro dos EUA pelos países do
Golfo. Neste GEAB Nº 53, antecipamos que o choque brutal que sofreu a
economia japonesa vai implicar não só travagem das compras dos
T-Bonds US pelo Japão como vai obrigar as autoridades de Tóquio a
vender duradouramente uma parte importante das suas reservas em Títulos
do Tesouro dos EUA a fim de financiar o enorme custo da
estabilização, da reconstrução e do
relançamento da economia nipónica
[3]
.
O Japão e os países do Golfo representando por si só 25%
do total dos 4.400 mil milhões de dólares da dívida
federal dos EUA (Dezembro 2010), o LEAP/E2020 considera que esta nova
situação que se afirma no decurso deste primeiro trimestre de
2011, num fundo de reticência crescente da China (20% do Títulos
do Tesouro dos EUA) em continuar a investir nos títulos federais
estado-unidenses
[4]
, contém o germe da implosão do mercado dos Títulos do
Tesouro dos EUA no segundo semestre de 2011; um mercado que doravante
não tem mais do que um único comprador: a Reserva Federal dos EUA
[5]
.
É certo que o contexto da crise dos títulos das colectividades
locais estado-unidenses (os
Munis
) e das dívidas públicas europeias (do conjunto da periferia da
UE e inclusive as do Reino Unido) que
nossa equipe antecipou para este período (ver
GEAB Nº 50
)
não fará senão amplificar o fenómeno. É
igualmente muito significativo que PIMCO, o mais importante gestor de fundos
obrigacionistas do mundo, tenha decidido no fim de Fevereiro de 2011
desembaraçar-se dos seus Títulos do Tesouro dos EUA. E isto foi
antes da catástrofe no Japão!
[6]
Para para além dos choques japonês e árabes (ver
GEAB Nº 52
), o processo de implosão do mercado da dívida federal
dos EUA no segundo semestre de 2011 acelera-se sob o efeito de quatro outros
fenómenos:
- a execução da austeridade orçamental nos EUA (como
antecipado no
GEAB Nº 47
) que condena as colectividades locais dos EUA a
uma grande crise do mercado da sua dívida ("Munis")
- a impossibilidade para o Fed de executar um QE3
- a inelutável alta das taxas de juro sobre o fundo da
inflação mundial
- o fim do estatuto de refúgio da divisa americana.
Naturalmente, em conjunto, estes fenómenos estão ligados entre si
e, característico de uma crise importante, entra-se num período
que verá seus impactos reforçarem-se mutuamente, conduzindo a
este choque brutal do segundo trimestre de 2011. Poder-se-ia igualmente
acrescentar um quinto fenómeno: a paralisia decisional completa do poder
estado-unidense. A afrontamento quotidiano, sobre praticamente todos os
assuntos, entre republicanos (radicalizados pelos "Tea-Parties") e
democratas (desmoralizados por uma administração Obama que traiu
o essencial dos seus compromissos eleitorais
[7]
), tende cada vez mais a demonstrar que Washington doravante é uma
espécie de "nau dos loucos", sacudida pelos acontecimentos,
sem estratégia, sem vontade, sem capacidade de acção
[8]
. Dito de outra forma, conforme o LEAP/E2020, quando a implosão do
mercado dos Títulos do Tesouro dos EUA começar, não
será preciso esperar de Washington senão uma prodigiosa cacofonia
que apenas agravará a crise.
Neste comunicado público do GEAB Nº 53, optámos por
apresentar mais em pormenor a nossa antecipação do choque
japonês à escala global, nomeadamente em matéria de
inflação e de geopolítica. Os outros fenómenos que
conduzem à implosão do mercado dos Títulos do Tesouro dos
EUA no segundo semestre de 2011 são analisados neste GEAB onde
formulamos igualmente recomendações para enfrentar o evidente
agravamento do processo de deslocamento geopolítico mundial.
A tripla catásfrofe que acaba de sacudir o Japão (tremor de
terra, tsunami e acidente nuclear) constitui um acontecimento crucial que vai
acelerar e intensificar a crise sistémica global e, em particular, o
processo de deslocamento geopolítico mundial. A amplitude das
destruições, o choque directo sobre as infraestruturas
energéticas da terceira (ou quarta) economia do planeta
[9]
, a gravidade dos acidentes nas centrais nucleares
[10]
, constitui um destes
choques maiores ao qual o actual sistema internacional já não
é capaz de resistir como antecipámos no
GEAB Nº 51
("2011: o ano impiedoso").
O Japão, já muito enfraquecido por uma crise económica
crónica que dura desde há vinte anos e cujo endividamento
público é um dos mais importantes do mundo, encontra-se doravante
face à dupla necessidade de financiar uma reconstrução em
grande escala e de assegurar a transição para um período
indeterminado caracterizado por uma limitação da energia
disponível e por interrupções destes circuitos de
aprovisionamento comerciais e industriais. Ora, o Japão é um
componente fundamental do sistema de governação mundial destas
últimas décadas. Tóquio é uma das principais
praças financeiras do planeta, um dos três pólos de
gestão dos mercados de divisas (com Londres e Nova York) e a economia
japonesa fornece grande quantidade de componentes electrónicos vitais
para a economia mundial. Finalmente, como analisámos anteriormente no
GEAB, é juntamente com o Reino Unido uma das duas
"bóias"
[11]
que permitem aos Estados Unidos gerirem os assuntos planetários em
matéria económica, monetária e financeira desde há
mais de cinquenta anos.
Esta "bóia" desde há alguns anos é
lançada de maneira crescente na órbita chinesa, ao ritmo da
ascensão de poder da China e do enfraquecimento dos Estados Unidos. A
crise desencadeada pelo tremor de terra vai, segundo LEAP/E2020, acelerar
fortemente esta evolução nomeadamente porque hoje só a
China está em condições de dar uma ajuda financeira
maciça ao Japão
[12]
, ajudando directamente a sua economia abrindo ainda mais às empresas
japonesas o imenso mercado chinês
[13]
.
No que se refere à inflação mundial, já se pode
identificar cinco canais pelos quais a crise japonesa vai reforçar as
pressões inflacionárias actuais:
1. o golpe brutal de travagem no desenvolvimento das políticas de
equipamento em nuclear civil no conjunto do planeta
[14]
que vai rapidamente agravar a pressão sobre os preços do
petróleo
[15]
do gás e do carvão
2. a penúria de numerosos componentes electrónicos vitais que vai
gerar uma alta dos preços dos equipamentos electrónicos
(computadores passando pelos écrans TV
[16]
) devido a cortes de electricidade que afectam as fábricas e à
desorganização dos transportes
[17]
3. uma pressão agravada sobre os preços alimentares e
energéticos
[18]
mundiais devido a um acréscimo significativo das
importações alimentares do Japão (nomeadamente arroz) uma
vez que a região afectada é uma das grandes regiões
agrícolas do país (ver mapa)
4. um novo recuo da globalização económica na
sequências das consequências mundiais da quase paragem da economia
nacional, campeã em simultâneo das exportações e da
entrega "just-in-time"
[19]
, que vai limitar em consequência o efeito "deflacionista" dos
intercâmbios mundializados
[20]
5. e finalmente um duplo fenómeno de perda de valor do yen devido a
injecções maciças de liquidez pelo Banco do Japão e
ao encarecimento directo do "aluguer" do dinheiro a nível
mundial (alta das taxas) por causa das necessidades gigantescas do Japão
para assegurar a sua reconstrução.
Estas antecipações evidentemente não integram o
cenário de catástrofe suprema que seria a região de
Tóquio contaminada maciçamente pela radioactividade a seguir a
uma fusão explosiva de um dos reactores da central de Fukushima
[21]
. Uma tal situação conduziria, à semelhança do que
aconteceu em Chernobyl, a criar uma zona de exclusão afectando esta
região onde habitam mais de trinta milhões de pessoas e que
está no centro de fluxos planetários essenciais, a qual
implicaria uma catástrofe humanitária sem precedente
histórico e uma interrupção imediata dos mercados
económicos, financeiros e monetários mundiais. Não
há muito simplesmente "plano B" para uma "travagem
brutal" do nó global que constitui Tóquio e a sua
região.
Desejando que esta situação extrema não se concretize,
nossa equipe considera que o choque já verificado vai agora traduzir-se
por um agravamento brutal da crise sistémica mundial e que o mercado dos
Títulos do Tesouro dos EUA será a primeira grande vítima
colateral a partir do segundo semestre de 2011 como analisamos em pormenor
neste número do GEAB. O pior felizmente não é certo, mas
em contrapartida já não há dúvida quanto ao muito
grave.
16/Março/2011
Notas:
(1) Nestas circunstâncias trágicas, a equipe do LEAP/E2020 deseja
exprimir a sua solidariedade com o povo japonês e em particular com
nossos numerosos assinantes e visitantes japoneses. Queremos igualmente
sublinhar que nossa análise muito "clínica" das
consequências da catástrofe que acaba de ocorrer no Japão
não é uma marca de indiferença mas muito simplesmente o
respeito da nossa metodologia que visa limitar ao estrito mínimo
possível os elementos subjectivos nas nossas antecipações.
(2) Mesmo o
Telegraph
de 24/02/2011 já interpreta as revoluções populares
árabes como a queda império americano do Médio Oriente.
(3) Fonte:
JapanToday,
14/03/2011
(4) Segundo o
FT Deutschland,
o banco central chinês teria mesmo recebido instrução para
não comprar mais nada. Fonte:
FT Deutschland,
10/03/2011
(5) Antes da catástrofe japonesa, considerava-se que o Fed, tornado
doravante o primeiro detentor de Títulos do Tesouro dos EUA, já
comprava mais de 70% das novas emissões. Nas próximas semanas,
esta proporção vai aproximar-se progressivamente de 90% a 95%.
Pois apesar da sua docilidade para com as pressões dos EUA, o Reino
Unido, que a cada dia afunda um pouco mais na nova fase da crise, a
"double-dip-flation" como a denominou a nossa equipe, não tem
mais meios para comprar Títulos do Tesouro americano: está
demasiado ocupado a comprar os títulos da sua própria
dívida pública. E, segundo Karen Ward, um dos principais
economistas do HSBC, o governo britânico arrisca-se mesmo a ter de
enfrentar tumultos da fome se os preços alimentares continuarem a
disparar como o fazem desde há várias semanas. Fonte: SkyNews,
09/03/2011
(6) A curto prazo, a fuga dos valores bursáteis (japoneses e outros)
pode beneficiar os Títulos do Tesouro dos EUA, mas trata-se de um
fenómeno transitório. Fonte: CNBC, 09/03/2011
(7) O último até à data é a reabertura dos
processos de Guantanamo quando ele havia prometido o encerramento da
prisão o mais tardar um ano após a sua eleição,
atraindo assim milhões de eleitores da esquerda do Partido Democrata.
(8) O outro grande país ocidental cujas elites dirigentes estão
na mesma situação é a França.
(9) Conforme se considere ou não a Eurolândia como uma economia em
si própria. Ora, a cimeira de 11 de Março último que
aprofundou ainda mais a integração orçamental e financeira
dos países da zona Euro torna cada vez mais aberrante a
posição consistente em querer contabilizar de maneira separada os
grandes agregados económicos dos países da zona Euro. Assim, com
8.400 mil milhões , o PNB da Eurolândia situa-se em segunda
posição atrás dos Estados Unidos (10.428 mil
milhões ), à cotação actual de 1 por
1,4US$ e muito amplamente à frente da China (4.100 mil milhões
) e do Japão (3.850 mil milhões ). Fontes: Wikipedia,
Eurozone
,
Lista de países por PIB
.
(10) Sem mesmo evocar nesta fase o risco de uma neutralização
parcial ou total da região de Tóquio, uma das
metrópoles-chave do mundo destas últimas décadas, depois
de uma contaminação nuclear.
(11) Como um trimarã.
(12) É preciso ter em mente que Pequim procura por todos os meios
desembaraçar-se rapidamente, mas de maneira rentável, da sua
montanha de Títulos do Tesouro e outros US dólares. O cataclismo
que experimenta o Japão vai assim proporcionar aos dirigentes chineses
uma ocasião única para aproximar estrategicamente Tóquio
de Pequim.
(13) Inversamente, a muito controversa presença de tropas americanas no
Japão vai evidenciar-se, para a opinião pública
nipónica, como ainda mais anacrónica e inútil face ao
desastre actual. É outro exemplo, como já se pôde constatar
no caso das revoluções árabes, da inutilidade crescente do
imenso aparelho militar americano: crise após crise, torna-se evidente
que ele não tem praticamente nenhuma utilidade para permitir ao governo
americano influenciar os acontecimentos.
(14) É certo com efeito que o nuclear civil acaba de sofrer um golpe
brutal de que terá muita dificuldade para recuperar-se, nomeadamente
porque esta catástrofe se inscreve doravante neste conflito entre elites
e opiniões públicas que a crise sistémica global a cada
dia exacerba um pouco mais. Dentre os países que vão sofrer o
pleno impacto desta "revolução" em
relação ao nuclear já se pode citar a França que
há mais de cinquenta fez do nuclear civil uma das jóias da sua
tecnologia e das suas exportações. Fonte:
Spiegel,
14/03/2011
(15) Um factor que vai reforçar a evolução
inexorável da região do Golfo para uma situação de
caos, mesmo de conflito directo entre xiitas e sunitas, entre os povos da
região e seus dirigentes, entre o Irão e a Arábia Saudita.
O envio de tropas sauditas ao Bahrein é um indício da escalada
dos riscos em toda a região assim como a implicação
financeira dos Emirados Árabes Unidos que tentam colmatar com
urgência quarenta anos de desinteresse por segmentos inteiros das suas
populações. Fontes: AlJazeera, 15/03/2011;
New York Times,
10/03/2011; AlJazeera, 10/03/2011
(16) Um dos raros factores "baixistas" que permitia esconder a subida
dos preços da alimentação ou da energia em numerosos
índices de preços. Assim, mesmo na China e em toda a Ásia
Sudeste, o impacto das penúrias de componentes japoneses já se
faz sentir com a alta imediata dos preços uma vez que a indústria
electrónica japonesa deslocalizou maciçamente partes inteiras da
sua produção através de toda a Ásia, mas
conservando fabricações estratégicas no Japão.
Fonte:
China Daily,
15/03/2011
(17) E por toda a parte do mundo vão-se experimentar penúrias de
carros japoneses e de peças sobressalentes para os mesmos. Dada a
importância mundial da indústria automóvel japonesa,
não haverá solução substitutiva fácil para
por em prática. Assim, mesmo na Índia, ainda que pouco dependente
das marcas japonesas, o impacto já se faz sentir directamente com a
anulação pelos grandes grupos japoneses de vendas e de
promoção de novos modelos. Fonte:
Times of India,
15/03/2011
(18) Várias refinarias japonesas foram destruídas. Isso implica
importações japonesas acrescidas de produtos refinados que geram
já altas de preços da gasolina nos Estados Unidos. Fonte:
USAToday,
14/03/2011
(19) As economias exportadoras chinesa e alemão (assim como a da Coreia
do Sul, Formosa, ...) vão igualmente sofrer as consequências
negativas desta evolução.
(20) É importante manter em mente que o recuo da
mundialização dos intercâmbios em proveito da recentragem
em zonas económicas regionais dotadas de uma moeda única ou
dominante (UE, Ásia, América Latina, ...) implica um recuo
simultâneo das necessidades de US dólares para financiar as trocas
internacionais. Ver diferentes GEAB anteriores.
(21) O que induziria igualmente consequências internacionais em
matéria de precipitações radioactivas.
[*]
Global Europe Anticipation Bulletin.
O original encontra-se em
www.leap2020.eu/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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