O levante dos secundaristas em São Paulo:
a juventude aponta os rumos da luta popular
A escola é nossa. Não tem
arrego
.
Se fechar, vamos tirar seu sossego.
Palavra de ordem dos estudantes
O levante vitorioso dos estudantes secundaristas de São Paulo,
após a ocupação de mais de 220 escolas e a derrota do
governo do PSDB paulista, se inscreve nos marcos do ciclo de lutas sociais que
se abriu com as jornadas de junho de 2013 e que vem se mantendo ativo desde
aquele período, além de guardar estreita relação
com os impactos da crise sistêmica global no Brasil. Se observarmos o
desenvolvimento das lutas sociais no País desde então poderemos
verificar não só o aumento das greves em todos os setores dos
trabalhadores (metalúrgicos, petroleiros, metroviário,
rodoviários, bancários, professores, servidores públicos),
mas especialmente um conjunto de lutas realizadas pela juventude com elevado
grau de organização e originalidade, justamente as que
conseguiram maiores vitórias concretas contra as políticas
neoliberais.
Como afirmávamos em trabalhos anteriores
[1]
, as manifestações de junho de 2013 abriram um novo ciclo de
lutas sociais que vem questionando de maneira cada vez mais explícita a
contradição entre o nível de desenvolvimento
econômico do País (sétima economia do mundo) e as
precárias condições de vida da população (o
Brasil ocupa a 75º posição no ranking do Índice de
desenvolvimento Humano da ONU), atrás mesmo de países africanos e
latino-americanos. O processo que se iniciou em 2013 vai continuar sua
trajetória, muito embora de maneira não linear, porque nenhum dos
problemas colocados por aquelas manifestações foram resolvidos.
Pelo contrário: estão sendo agravados pela política de
ajustes neoliberais implementados pelo governo, o que levará com certeza
a um acirramento da luta de classes no País.
Além disso, estamos vivenciando também o fim do ciclo iniciado
com as greves do final da década de 70 no ABC e que forjaram os
principais instrumentos políticos e sociais no Brasil, como o Partido
dos Trabalhadores (PT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Essas
organizações cumpriram um papel importante na luta de classe no
período e na luta contra a ditadura, mas aos poucos foram se amoldando
à ordem até se transformarem em principais instrumentos da
própria ordem e se voltarem contra a luta dos trabalhadores.
Metamorfosearam-se de uma maneira tão rápida que não
terão qualquer papel de relevo neste ciclo que se abriu em 2013. Ainda
poderão sobreviver como entidades formais, mas sem a garra e o
protagonismo que tiveram naquele período, até mesmo porque a luta
de classes no Brasil está colocando novas questões e reclamando a
constituição de novos instrumentos para conduzir as
transformações no País.
As ocupações realizadas pelos estudantes secundaristas de
São Paulo, ao contrário do que ocorreu com as lutas da juventude
em 2013, foram marcadas surpreendentemente por elevado nível de
organização e originalidade, mesmo levando em conta que esses
estudantes eram crianças e adolescentes entre 13 e 18 anos, com quase
nenhuma experiência, posto que estavam debutando na luta de classes.
Alguns meses atrás, quem previsse que esses jovens seriam capazes de
derrotar um governo arrogante e truculento, blindado pela mídia, com
apoio das camadas médias conservadoras e que tratava a questão
social como caso de policia, seria tachado de louco ou visionário. Mas
as lutas sociais sempre surpreendem aqueles que não atentam aos meandros
da conjuntura.
Em termos práticos, os secundaristas conseguiram uma proeza pouco
verificada nos últimos anos: uniram um amplo leque de forças
políticas e sociais, que envolveu os professores, os pais e mães
de alunos, os movimentos sociais, os artistas e vários segmentos da
população. Criou-se quase que espontaneamente uma rede
solidariedade em torno do movimento, que aumentava à medida que as
ocupações se ampliavam e a repressão se intensificava. A
população levou comida, água e refrigerantes, os
sindicatos ofereceram colchões e barracas, os professores deram aulas
alternativas, os artistas cantaram e tocaram gratuitamente nas escolas ocupadas
e criou-se até uma guarda informal, os
Guardiãs das Escolas,
uma articulação que mobilizava rapidamente, através das
redes sociais, centenas de pessoas na frente das escolas diante de qualquer
tentativa de repressão da polícia nas ocupações.
Além disso, as ocupações demonstraram que o mito de bom
moço construído pela mídia em torno do governador Geraldo
Alckmin, do PSDB, partido que está há mais de 20 anos no poder em
São Paulo, foi por água a baixo. A mídia corporativa
sempre procurou apresentar o governador como homem trabalhador, propenso ao
diálogo, preocupado com os problemas da população, mas a
própria mídia foi obrigada a veicular imagens de
truculência da Polícia Militar contra crianças e
adolescentes dentro das escolas, mesmo com a justiça tendo proibido a
polícia de entrar nestes estabelecimentos de ensino, e também as
barbaridades repressivas nas ruas, com espancamento e prisões de menores.
A imagem de bom moço foi-se deteriorando e a prova maior disso pode ser
refletida em uma pesquisa do
Instituto Data Folha,
que mostrou a queda brusca da popularidade do governador. Preocupado com as
futuras eleições presidenciais, onde é um dos
pretendentes, Alckmin jogou a toalha e revogou o decreto de
reorganização das escolas, que foi a causa das
mobilizações estudantis e das ocupações. Mesmo
assim, o governo ainda tentou cinicamente esconder a derrotar ao aparecer na
imprensa dizendo que a revogação do processo de
reorganização ocorreu em respeito à mensagem dos
estudantes, familiares e da comunidade. É risível, mas cada um
tem o direito de esconder seus fracassos da maneira que melhor lhe
convém.
A reorganização e os objetivos do governo
Sem consultar os alunos, nem os professores, nem a sociedade, o governador
anunciou um decreto que iniciava um processo de reorganização da
rede estadual de ensino, através do qual haveria um grande remanejamento
de alunos e escolas, de forma a que a rede escolar fosse estruturada por
ciclos. Os alunos de cada ciclo (fundamental I, fundamental II e ensino
médio) seriam agrupados em unidades específicas, de acordo com
cada ciclo. O secretário de Educação dizia que a
reorganização visava não só racionalizar o ensino,
mas também melhorar a qualidade da educação. Junto ao
pacote, também era anunciado sorrateiramente o
fechamento de 94 escolas
e cerca de 311 mil alunos deveriam ser remanejados e centenas de professores
perderiam seu emprego. O governo também divulgou que as mudanças
estavam baseadas em estudo de uma consultora especializada, mas espertamente se
recusou a divulgar os fundamentos nos quais o estudo estava baseado. Foi
necessário que um órgão de imprensa apelasse para a
Lei de Acesso à Informação
a fim de obter a íntegra do estudo.
Tão logo se tomou conhecimento do estudo, começou um intenso
processo de discussão, especialmente porque, quando o documento ficou
conhecido na íntegra, pôde-se verificar a inconsistência de
seus fundamentos. Todas as Faculdades de Educação do Estado (USP,
Unicamp, Unesp, Unifesp, Federal do ABC, UFSCAR), justamente as
instituições que formam a maior parte dos professores da rede
pública do Estado, lançaram documentos criticando a medida e
buscando revelar os verdadeiros motivos que levavam o governo a realizar a
chamada reorganização. Esses motivos eram o corte de gastos com a
educação e o início do processo de
privatização do ensino público no Estado, através
das terceirizações e concessões, como já vem
ocorrendo em outro Estado, Goiás, onde o PSDB também detém
o governo estadual.
Para os professores dessas Faculdades, o estudo encomendado pela Secretaria de
Educação do Estado não apresentava elementos
científicos que fundamentassem o processo de reorganização
da rede escolar. Tratava-se de um documento frágil, mal elaborado, de
péssima qualidade técnica, que visava apenas dar uma
satisfação à sociedade. Por isso mesmo, o governo
não divulgou o documento. Os professores também condenaram o fato
de que uma medida desta natureza, que vai envolver centenas de milhares de
estudantes, pais e mães de alunos, além de professores,
não tenha sido debatida com os interessados antes de ser anunciada.
O argumento de que a reorganização por ciclo iria melhorar a
qualidade de ensino é de uma pobreza franciscana, pois nas escolas
privadas de ensino médio, tidas como de excelência e as que
aprovam o maior número de alunos nos vestibulares das universidades
públicas, os estudantes dos diversos ciclos frequentam o mesmo
prédio, como acontece atualmente no ensino público. Ou seja, a
segregação é empobrecedora na formação dos
jovens. Se o governo estivesse preocupado realmente com a qualidade do ensino,
deveria fazer o inverso do que anunciou, ou seja, reduziria o número de
alunos por sala, que hoje estão superlotadas; melhoraria as
condições físicas das escolas, cujas
instalações são precárias; modernizaria as
bibliotecas, compraria laboratórios e equipamentos audiovisuais e
contrataria os professores que passaram no último concurso e até
hoje não foram chamados e aumentaria os vergonhosos salários
pagos aos docentes. Melhorar a qualidade do ensino fechando escolas é
uma aberração.
Vale lembrar que um dos governos do PSDB, o de Mario Covas, em 1995,
também realizou um processo de reorganização da rede
estadual de ensino, com o fechamento de 150 escolas e cerca de 10 mil salas de
aulas, tudo com o mesmo argumento da necessidade de melhoria da qualidade da
educação. Mas se avaliarmos 20 anos depois o resultado dessa
medida, poderemos observar que se constituiu num verdadeiro fracasso: a
qualidade do ensino continuou precária e muitas das escolas fechadas
viraram depósitos para vários órgãos da
administração pública. Ou seja, a
reorganização era apenas um pretexto para cortar gastos com a
educação.
Na verdade, o objetivo dessa pretensa reorganização era a
implantação de um modelo de gestão educacional
empresarial, tudo dentro do figurino elaborado pelo Banco Mundial, para o qual
a educação é uma mercadoria e por isso deve ser paga. Como
ressalta o documento dos professores, o objetivo final é fazer com que
cada escola seja gerida como se fosse uma pequena empresa, com metas,
produtividade, bonificações por desempenho, redução
permanente de gastos e flexibilidade para demitir professores, afinal a
estabilidade no emprego dos professores é uma heresia para o dogma
neoliberal. Todo esse conjunto de metas teria por objetivo, como nas empresas
privadas, alcançar maior eficiência possível e as escolas
que não se enquadrarem nesse modelo deveriam ser fechadas.
O processo de reorganização de São Paulo era também
um balão de ensaio para uma contrarreforma profunda na já
precária educação pública do Estado, como já
acontece em Goiás, onde as escolas estão sendo geridas pelas
organizações sociais. O plano era o seguinte: primeiro,
reorganizava-se as escolas por ciclos e fechavam-se as 94 escolas; em seguida,
reduzia-se o ensino noturno e a Educação Para Jovens e Adultos.
Depois, terceirizava-se a gestão para ONGs, OCIPs (as chamadas
organizações sociais), desviando dinheiro da
educação para mãos privadas. Posteriormente,
implantavam-se os chamados sistemas de ensino, no qual as disciplinas seriam
apostiladas (padronizadas ideologicamente), como já ocorre em
vários colégios privados. As organizações sociais
deixariam de fazer concursos para professores e passariam a contratá-los
pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), eliminando a
estabilidade no emprego. Assim, seria bem mais fácil demitir aqueles que
contestassem a nova ordem ou os grevistas.
Essas etapas do que deveria ser o processo de privatização do
ensino em São Paulo não significa nenhum exercício de
criatividade ou futurismo. Como enfatiza o documento dos docentes, a
política educacional de São Paulo é orientada por um grupo
de empresários neoliberais, com apoio de instituições
privadas. Em outras palavras, o passo final seria a privatização
das escolas, com a concessão de
vouchers
para os alunos mais carentes, como aconteceu no Chile de Pinochet, onde
praticamente toda a estrutura educacional do País foi privatizada.
A resistência dos estudantes
Do alto de sua arrogância, Alckmin imaginava que essa medida iria ser
implantada tranquilamente, com apenas pequenos protestos de alunos e
professores, mas no final tudo seria implantado conforme o figurino, como
aconteceu com outras medidas antipopulares que foram implementadas no Estado.
Ao longo dos mais de 20 anos de poder do PSDB na principal unidade da
Federação do País, o governo sempre tratou as lutas
sociais como caso de polícia, as greves como coisa baderneiros e
agitadores, buscando desqualificar, criminalizar e derrotar os trabalhadores em
luta. Portanto, para o governo, as ocupações realizadas pelos
adolescentes parecia brincadeira de criança e logo seriam derrotadas. O
vício da impunidade impediu o governo de entender a conjuntura, afinal
esse mesmo governo tinha recentemente derrotado a mais longa greve dos
professores do Estado, que durou 95 dias. Mas por ironia, de onde menos se
esperava, surgiu o movimento que levou o governo a uma derrota acachapante,
até mesmo humilhante, colocando um basta a mais de duas décadas
de truculências no Estado.
Antes das ocupações, as manifestações contra a
reorganização já demonstravam que algo de novo estava
acontecendo. Os manifestantes não eram apenas militantes que comumente
estão nas ruas contra o governo: aquelas manifestações
contavam com a presença de pais e mães de alunos, coletivos dos
mais diversos tipos e militantes em geral, mas com algo inovador
professores com os alunos de suas escolas, a maioria deles entre 13 e 18 anos,
quase todos participando pela primeira vez de uma manifestação de
rua. Essas passeatas eram realizadas quase todas as semanas e envolviam
milhares de pessoas. Foi um aprendizado importante que depois se materializou
na organização das ocupações.
Cansados de tanto protestar e não serem ouvidos, os estudantes decidiram
realizar um enfrentamento mais direto contra o projeto de
reorganização do governo. No dia 9 de novembro ocuparam a
primeira escola, na cidade de Diadema, na Grande São Paulo. Essa foi a
chama que imediatamente se espalhou por todo o Estado, especialmente na
capital. Nos outros dias as ocupações foram sendo realizadas em
proporções geométricas, tanto que vinte dias depois mais
de 200 escolas já estavam ocupadas no Estado, o que demonstra que a
revolta juvenil estava latente e que o aprendizado das
manifestações cumpriu um papel fundamental. A grande maioria das
ocupações foi realizada de forma espontânea, mas
também houve participação de coletivos autônomos, de
professores, movimentos sociais e organizações políticas.
O processo de ocupação era relativamente simples: os estudantes
entravam nas escolas munidos de correntes e cadeados escondidos nas mochilas e,
no momento combinado, anunciavam a ocupação, colocavam cadeados
novos no portão e a partir daí passavam dirigir todas as
atividades da escola. Na maioria das escolas só poderiam permanecer na
parte de dentro os estudantes da própria escola, medida que era
fundamental para evitar que o governador do Estado, como várias vezes
tentou fazer, acusasse o movimento de ser dirigido por partidos
políticos de oposição. De posse da escola, realizavam as
assembleias e organizavam as comissões de gestão da
ocupação: limpeza, cozinha e alimentação,
segurança, eventos, sempre enfatizando que todas as principais
decisões seriam tiradas em assembleia. Logo os alunos perceberam uma
série de irregularidades, como montanhas de livros que não eram
distribuídos, bibliotecas mal cuidadas, escola com infraestrutura
precária. Com a ocupação, todas as escolas se tornaram
mais organizadas, mais limpas e com uma vida cultural muito mais rica.
Com a massificação das ocupações, o governo
utilizou o mesmo padrão repressivo, intercalando medidas judiciais,
administrativas e repressão direta. A Secretaria de
Educação pressionou os diretores a fazer com que os alunos
desocupassem as escolas. Como não conseguiram, então montou-se
uma equipe que ligava diretamente para os pais e mães dos alunos dizendo
que era perigoso os adolescentes ficarem nas ocupações, pois
lá estavam consumindo drogas e as meninas poderiam ser estupradas. Esse
método também não obteve resultados satisfatórios.
A polícia se postava diariamente na frente das escolas com
provocações e prisões de apoiadores, que acampavam em
frente dos estabelecimentos de ensino. Posteriormente, o governo entrou na
Justiça com um pedido de reintegração de posse, que era a
senha para a invasão policial e desarticulação do
movimento. No entanto, a justiça também negou o pedido de
reintegração.
No início de dezembro, com o movimento plenamente consolidado e com
apoio social e sem que a Justiça atendesse à
solicitação do Executivo, o governo resolveu partir para o tudo
ou nada. O chefe de gabinete da Secretaria reuniu secretamente os diretores de
ensino para traçar uma estratégia de desocupação
das escolas. Disse que a partir daquele momento seria iniciada uma guerra
contra as ocupações e anunciou a tática que deveria ser
executada em cada unidade de ensino ocupada. Mas a conversa do chefe de
gabinete foi gravada por alguém e vazou para a imprensa, através
dos
Jornalistas Livres,
uma articulação da mídia alternativa que teve um papel
importante na contrainformação à mídia corporativa.
O vazamento quebrou o efeito surpresa da ofensiva governamental, mas mesmo
assim eles tentaram implementar o seu plano.
O governo escolheu para a desocupação uma escola símbolo,
a Maria José, no centro de São Paulo, pois lá estava o
presidente da União Municipal dos Estudantes Secundaristas. Logo cedo o
chefe de gabinete da Secretaria de Educação veio à escola,
acompanhado de um grupo de pessoas que se diziam pais de alunos
(depois verificou-se que eram funcionários da secretaria) que queriam a
escola de volta. A polícia quebrou os cadeados, invadiu a escola junto
com os pais e começou o espancamento dos alunos, que
resistiram bravamente. Imediatamente começou a funcionar o esquema de
proteção das escolas ocupadas, através dos
Guardiãs das Escolas,
e dezenas de pessoas foram para a frente da escola em solidariedade aos
estudantes. Como os alunos resistiram e muitos dos pais não
suportaram o gás de pimenta lançado pela polícia, a
invasão fracassou e os alunos reocuparam a escola, para a alegria e
comemoração de todos. Ocorreram tentativas de
desocupação em outras escolas, mas foram derrotadas
[2]
.
A essa altura os alunos resolveram mudar de tática também e
passaram a ocupar as ruas e avenidas na hora do
rush
para chamar a atenção da população, além de
realizar aulas públicas. Essas manifestações foram
brutalmente reprimidas pela polícia. Cenas de espancamento de
crianças e adolescentes se tornaram comuns em São Paulo, mas a
batalha da opinião pública o governo já estava perdendo.
Além de todas as faculdades de educação, agora
também a Justiça estava contra a maneira como foi implementada a
reorganização, além de artistas, movimentos culturais e
professores e a maioria da população. Até as torcidas de
futebol se manifestaram contra a medida do governo. A brutalidade da
polícia fez o governo perder a opinião pública e
até mesmo a mídia corporativa já não podia mais
esconder a repressão. Para complicar ainda mais a situação
do governo, o
Instituto Data Folha
divulgou uma pesquisa na qual 61% da população apoiavam o
movimento, bem como a popularidade do governo tinha caído aos
níveis mais baixos. Sem escolha, o governo suspendeu a
reorganização e o Secretário de Educação
pediu demissão. Estava selada a vitória do movimento.
As redes de solidariedade
Um dos momentos mais ricos dessa jornada de lutas dos secundaristas foi a ampla
rede de solidariedade espontânea que se articulou para apoiar o
movimento. Tão logo se iniciaram as ocupações, as pessoas
começaram a acampar em frente das escolas para evitar a repressão
policial e provocações dos agentes policiais infiltrados. Os
pais, mães e amigos dos alunos levavam comida, água,
colchões e barracas para garantir a ocupação, além
de se revezarem em frente das escolas. Como as ocupações duraram
cerca de um mês, não é difícil imaginar a
dificuldade que os estudantes tiveram para manter a logística de
revezamento no interior das escolas, dormindo em condições
precárias, cozinhando o próprio alimento, limpando e cuidando da
escola. E também a dificuldade que os apoiadores tiveram para se manter
noite e dia em frente das escolas. Mas o sacrifício valeu a pena, pois
todos saíram vitoriosos nessa jornada de lutas.
Os estudantes também conseguiram organizar um cadastro de
Guardiãs das Escolas,
via redes sociais, no qual estavam inscritos milhares de pessoas
voluntárias, dispostas a defender as escolas. Toda vez que uma unidade
escolar estava ameaçada os
Guardiãs
eram acionados e rapidamente dezenas de pessoas compareciam à frente da
escola para defendê-la e evitar repressão, arbitrariedades e
prisões de estudantes. Este esquema funcionou razoavelmente bem e
cumpriu um papel importante na vitória do movimento porque quanto mais
pessoas se postavam em frente das escolas, mais difícil se tornava a
repressão.
Outro papel importante foi o dos
Advogados Ativistas,
uma articulação de jovens advogados voluntários que
estavam à disposição a qualquer hora do dia e da noite
para comparecer não só nas escolas onde estivessem ocorrendo
arbitrariedades, mas principalmente no acompanhamento das passeatas (a
presença de advogados muitas vezes reduz a fúria repressiva), e
na ida às delegacias de polícia soltar os garotos presos e evitar
espancamentos. Também foi importante nesse processo a presença
dos
Jornalistas Livres,
uma organização de jornalistas independentes que buscava de
todas as formas, especialmente nas redes sociais, documentar a
repressão, denunciar as arbitrariedades e divulgar tudo o mais
rapidamente pelas redes sociais. Foram os
Jornalistas Livres
que vazaram o áudio com a estratégia da Secretaria de
Educação para desocupar as escolas e, com isso,
contribuíram para a derrota da estratégia repressiva do governo.
Os artistas, escritores e professores também tiveram um papel
fundamental na solidariedade ao movimento dos secundaristas. Todo dia nas
escolas tinha aulas alternativas sob os mais variados assuntos. Para tanto,
também foi realizado um cadastro de professores voluntários
dispostos a doar aulas nas ocupações, o que funcionou de maneira
muito satisfatória. Os saraus eram realizados quase que diariamente. Os
cantores e músicos em geral, os artistas de teatro faziam shows e
apresentavam peças teatrais gratuitas nas escolas ocupadas. No auge do
movimento ocorreu até uma
Virada Cultural
com a participação de artistas famosos como Chico César,
Titãs, Maria Gadu, entre outros. Até mesmo Chico Buarque de
Holanda e vários artistas do Rio de Janeiro gravaram um
clip
de apoio ao movimento.
As escolas ocupadas se tornaram um ambiente vivo, criativo, com diversidade
cultural, os mais variados debates, com democracia participativa, com uma
relação mais estreita com a comunidade, muito diferente do
período normal de aula. Além disso, as ocupações
demonstraram que as escolas geridas pelos estudantes funcionaram melhor do que
quando administradas pelo governo. Essa experiência das
ocupações de São Paulo de certa forma aponta para a
necessidade de construção de uma nova escola, fora dos
padrões burocratizados e repetitivos da escola tradicional, uma escola
crítica. que proporcione os mais avançados conhecimentos
específicos para os estudantes, mas que também forme um
cidadão com capacidade de entender o mundo.
A luta dos estudantes secundaristas de São Paulo, comandada por
adolescentes, significou uma grande vitória para o movimento social,
porque pela primeira vez um movimento derrota de maneira clara a
truculência de um governo neoliberal. Os jovens também derrotaram
o governo em 2013, mas essa foi uma luta nacional, que envolveu cerca de 600
cidades. A luta dos secundaristas foi uma queda de braço entre um
governo arbitrário e os estudantes, na qual eles venceram com galhardia.
Essa jornada aponta também o rumo da luta popular no País, pois
demonstrou que a organização, a combatividade e a luta, em
aliança com a população, é o único caminho
para se conquistar as reivindicações populares. Os estudantes
saíram dessa luta de cabeça erguida, com moral alta, e logo mais
estarão nas ruas engrossando as lutas populares.
[1]
Brasil: extraordinárias jornadas de lutas
e
A explosão social bate às portas do Brasil
[2] O autor desse texto, um dos
Guardiãs das Escolas,
esteve presente na Escola Maria José no dia em que os alunos
derrotaram a estratégia do governo do Estado. Um relato dessa
experiência foi postada no facebook (Relato sobre a
reocupação da E.E. Maria Jose, no Bexiga, pelos estudantes
secundaristas).
[*]
Doutorado em economia pela Unicamp, com pós-doutoramento no Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição. É
autor, entre outros, de A globalização e o capitalismo
contemporâneo (Expressão Popular) e A crise econômica
mundial, a globalização e o Brasil (Edições ICP),
diretor do Instituto Caio Prado Junior e um dos editores da revista
Novos Temas.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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