Um lugar para o socialismo. Socialismo, porquê
por Daniel Vaz de Carvalho
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"A República não será uma realidade se não
tiver por fim prático a reforma social e por instrumento a liberdade
plena garantindo a iniciativa popular dento e fora do governo. Para nós
só é real e séria a República em que houver
garantido para o Socialismo um lugar seu".
Antero Quental, A República e o Socialismo, 1873
[1]
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1 - Porquê o socialismo
Em 1949 Einstein escrevia um texto intitulado "Porquê o
socialismo"
[2]
.
Um texto absolutamente atual. Dizia então, que sob o sistema capitalista
os impulsos sociais se deterioram progressivamente. "Os seres humanos,
seja qual for a sua posição na sociedade, sofrem este processo de
deterioração, Inconscientemente prisioneiros da sua
subjetividade, sentem-se inseguros, sós, e privados do prazer simples e
não sofisticado da vida".
"O capital privado tende a concentrar-se em poucas mãos, em parte
por causa da concorrência entre os capitalistas e em parte porque o
desenvolvimento tecnológico e a crescente divisão do trabalho
encorajam a formação de unidades de produção
maiores à custa de outras mais pequenas. O resultado destes
desenvolvimentos é uma oligarquia de capital privado cujo enorme poder
não pode ser eficazmente controlado mesmo por uma sociedade
democraticamente organizada." "A anarquia económica da
sociedade capitalista como existe atualmente é, na minha opinião,
a verdadeira origem do mal". "O homem pode encontrar sentido na vida,
apenas dedicando-se à sociedade. A clareza sobre os objetivos e
problemas do socialismo é da maior importância na nossa
época de transição".
Einstein via a discussão livre e sem entraves destes problemas
prisioneira de um poderoso tabu, embora considerasse a abordagem dos temas do
socialismo um serviço público importante.
O Grande cientista tinha e tem razão. Passadas seis décadas e
meia, o tema socialismo como que desapareceu do debate
político-ideológico. Raros são hoje os partidos a
nível europeu, que apresentam o socialismo como objetivo
estratégico. Vários partidos embora apresentem críticas
à austeridade e ao neoliberalismo, colocam-se à margem do
processo histórico, fogem à questão de que uma
política alternativa impõe um lugar para o socialismo.
Na realidade, acabam por não pôr em causa o capitalismo,
permanecendo numa linha social-democrata de querer gerir "melhor" o
capitalismo, "salvá-lo dele próprio" ou torna-lo
socialmente menos danoso.
E no entanto o capitalismo tem de ser substituído: Mas
substituído porquê?
2 Um sistema disfuncional
O capitalismo tornou-se um sistema que apodreceu por dentro.
As fraudes, a manipulação das taxas de juro e de câmbio por
grandes bancos ditos de referência, as falências fraudulentas e os
resgates com dinheiros públicos retirados aos salários, reformas
e prestações sociais, tornaram-se políticas recorrentes. O
dinheiro do crime organizado, os horrores do tráfico de seres humanos,
da prostituição, da droga, é absorvido pelo sistema
bancário sem reais problemas.
"Os bancos ganham milhões com o tráfico de droga.
As entidades reguladoras são relutantes em investigar o enorme processo
da lavagem de dinheiro da droga, levada a cabo pelos bancos europeus e
norte-americanos. "
[3]
Escandalosos arranjos financeiros com bancos envolvidos na lavagem do dinheiro
sujo provam que o combate aos tráficos de droga e seres humanos
não passa de uma farsa.
[4]
Como afirma Michael Hudson
[5]
, uma classe cleptocrática, os "banksters", gangsters
bancários, assumiu o poder económico. A economia foi capturada
por um poder capaz de fazer fortunas, mas sem "criação de
riqueza" da forma que a maioria das pessoas a reconhece.
O sistema capitalista mergulhou o mundo em quatro avassaladoras crises, crises,
insuperáveis neste sistema que apenas as agrava: a crise
económica e financeira, a crise social, a crise ambiental e a crise
militar-belicista. O capitalismo chegou a uma situação em que
não tem soluções para resolver os problemas e as crises
que criou.
O capitalismo atravessa a pior crise da sua existência. Crise que
apresenta características diferentes das anteriores e que põem em
perigo a própria Humanidade: atingiu os limites ecológicos da sua
reprodução; a amplitude dos meios de violência e controlo
social é sem precedentes; atingiu os limites da sua expansão
extensiva; um excedente de população cresce num "planeta de
favelas"; a economia globalizada tornou-se incompatível com o
Estado-Nação baseado num sistema de autoridade política
[6]
O que temos hoje no chamado "mundo ocidental" é o
neoliberalismo, uma incoerente e dogmática aplicação ao
capitalismo monopolista de princípios do liberalismo dos fins do
séc. XVIII. A política de austeridade não funciona em
parte alguma, mas não têm outra. As políticas do FMI e da
UE, são um exemplo da desconexão da realidade que o sistema
capitalista impõe em benefício da uma minoria de 1%.
Recentemente, o chefe da delegação do FMI que mantém
Portugal sob vigilância (?!) afirmou que a "dívida
pública, o fraco investimento, a falta de dinamismo do mercado de
trabalho, o endividamento das empresas são problemas que
persistem". Insistiu nas "reformas estruturais": "cortar
salários e pensões, cortar na despesa pública". Mas
não foram estas mesmas "medidas" que impõem há
quatro anos (sem contar com os PEC
) que resolveriam todos aqueles
problemas?!
"As sociedades estão vergadas ao absurdo de um sistema
económico que é uma pura especulação
matemática sem referência com o mundo real". "Esta crise
de metodologia é ao mesmo tempo um sintoma e um dos elementos da
decadência da economia atual e a sua transformação em
apologética".
[7]
No seu horizonte define-se um "ótimo". Mas este ótimo
de eficiência e este equilíbrio, não é nem um
ótimo nem representa um equilíbrio social. Nem se prova que esses
estados de equilíbrio são socialmente justos, possíveis,
éticos.
[9]
O pseudo cientismo vigente necessita de negar a existência do social. A
democracia está efetivamente condicionada por esta
"ciência" com o absurdo de as suas leis serem pretensamente
válidas universalmente, independentemente das circunstâncias
históricas e sociais. Na realidade, a dita "ciência
económica" está reduzida à facilitação
de negócios: ao Estado reserva-se o papel de os assegurar. Como dizia um
deputado PSD acerca da privatização da TAP, sem mais argumentos:
"é preciso deixar a economia funcionar".
A pobreza aumenta na UE, todas as medidas para "crescimento e
emprego" mostraram-se contraproducentes. O reformismo social-democrata
afunda-se numa espiral de contradições internas e externas, mas
persiste em ter como objetivo salvar o sistema e impedir uma alternativa
política em que o socialismo tenha lugar.
3 A UE, um desconexo conjunto de povos sem controlo
Num espaço economicamente desenvolvido como a UE, praticamente toda a
capacidade de decisão popular foi usurpada. Vive-se um totalitarismo,
mas a social-democracia pretende dar ainda mais competências à UE
"para aumentar a competitividade relativamente a outros blocos" ou
ultimar a "união bancária" com as finanças
nacionais a serem geridas por burocratas às ordens da oligarquia dos
países dominantes.
Estas políticas colocaram a generalidade dos países da UE, e em
primeiro lugar os do euro, à beira da catástrofe. Portugal
mergulhou na estagnação económica, aumento da pobreza,
desemprego, ausência de investimento, emigração que se
transformou em fuga do país para os mais jovens. O PIB está ao
nível de 15 anos atrás, apesar de mantido pelo turismo e
imobiliário de luxo (em parte pelos "vistos gold").
Tudo o que poderia beneficiar o país, mesmo tímidas medidas como
a intervenção pública na economia, o controlo da banca,
efetiva regulação financeira, etc, não é permitido
pelas instituições europeias sob pena de represálias que
os seus sequazes nacionais repetem à exaustão. O poder
democrático foi usurpado pelos organismos da UE contra os interesses
nacionais. Sem colocarem a questão de verificar se as regras da UE e do
euro são boas para Portugal e os portugueses o único argumento
que os propagandistas dispõem é o da cedência às
ameaças e chantagem das burocracias europeias,
Em quatro anos de dito "ajustamento" a dívida pública
aumentou 54 mil milhões de euros, os juros pagos atingiram cerca de 35,5
mil milhões de euros e em termos líquidos, o país perdeu
nos últimos quatro anos, 25,5 mil milhões de euros
(diferença entre PIB e RN). Estes números expressam a natureza
neocolonial das políticas impostas pela UE. Face a isto, os papagaios de
serviço falam em "atrair capitais e investimento como prioridade
absoluta"
A catástrofe é permanecer no euro e seguir as regras da UE. Os
países poderiam criar moeda sem juros, mas o euro é o instrumento
privilegiado para o domínio alemão sobre a Europa, uma
liderança imposta custe o que custar aos outros povos. Na UE as
liberdades democráticas estão subordinadas aos interesses da
gestão dos negócios dos oligarcas. A democracia cessa na
austeridade, na legislação antilaboral, na
comunicação social controlada, na submissão às
burocracias selecionadas pela oligarquia e pelo imperialismo.
A social-democracia está ao serviço desta tragédia e aviva
os seus preconceitos anti socialismo, mostrando-se afligida com uma
hipotética "ditadura de esquerda". Vejam-se as atitudes para
com Cuba, Bolívia, Venezuela, ao mesmo tempo que apoia o nazi-fascismo
de Kiev.
A UE tornou-se um espaço neocolonial. Porém, verdadeiramente
colonizado é apenas o povo que para se identificar com o colonizador e
esquece as suas raízes. Verdadeiramente colonizados, são os que
se deslumbram e curvam perante os modelos políticos e sociais do
colonizador.
4 O socialismo como imperativo histórico
O sistema capitalista espalhou o caos em regiões inteiras do
Afeganistão à Líbia, à Somália. O
capitalismo atingiu a sua fase senil incapaz de resolver os problemas que cria.
Nenhum problema pode ser resolvido com a mesma forma de pensar que está
na sua origem. Deste modo, é necessário compreender que os
partidos que nos trouxeram à situação de descalabro atual,
PS, PSD, CDS, não serão capazes de nos tirar dela. O capitalismo
é pois um sistema que tem de ser substituído.
O socialismo é de facto a alternativa à barbárie
capitalista.
[9]
A barbárie atual surge como produto da ascensão de uma classe
dominante financeira, parasitária e militarista. Governam e perseguem
agressivamente uma agenda que está continuamente a reduzir os
padrões de vida, a transferir a riqueza pública para os seus
cofres privados, a violar direitos constitucionais no exercício de suas
guerras imperiais, a segregar e perseguir milhões de trabalhadores
imigrantes e a promover a desintegração e o desaparecimento do
trabalho estável e da classe média.
[10]
A luta de classes existe e foi exacerbada, mas a social-democracia mascara-a
com as noções de competitividade e de "atrair
capitais". A propaganda, a manipulação podem parar a
história? Não, mas atrasam-na, pois só se pode mudar o que
se compreende. Procuram criar uma opinião pública confundida,
talvez revoltada, mas passiva.
Perante o poder avassalador da finança e do imperialismo, seria
fácil admitir que nada pode ser alterado, por mais que os povos abominem
o sistema em que vivem. Assim seria se o materialismo dialético
não nos permitisse compreender e interpretar os fenómenos da vida
tanto individual como coletiva e suas correlações. Tudo pareceria
empiricamente perfeito ao capitalismo, sem a análise dialética.
Mas por maior que seja o poder ao serviço da oligarquia, nada pode
contra as leis económicas e sociais objetivas, inerentes a cada modo de
produção, nada pode para anular as contradições que
as estratégias de sobrevivência do capitalismo agravam.
O materialismo dialético, o marxismo, permite-nos compreender o caos que
nos cerca e suas causas, mas também definir e estimular as
soluções para o superar. Permite-nos compreender que as
transformações quantitativas dão origem às
transformações qualitativas. Tal como o capitalismo sucedeu ao
feudalismo, o socialismo sucederá ao capitalismo, como
solução para as suas contradições e antagonismos.
A alternativa parece-nos clara: socialismo ou barbárie. O socialismo
é dirigido para um fim sócio ético, como escreveu
Einstein. O socialismo representa a superioridade de um poder alicerçado
numa base social alargada em relação a um poder submetido a uma
minoria ultraprivilegiada.
A construção do socialismo, quaisquer que sejam as variantes do
seu processo de transição, deverá consistir numa
alternativa que defenda os interesses nacionais e populares, que lute pela
soberania económica, monetária e jurídica, do país.
Uma alternativa que se afirme contra as quatro crises capitalistas e o espectro
do neofascismo do século XXI.
Notas
[1]
Seara Nova,
agosto, 1973
[2]
Porquê o Socialismo?
, Albert Einstein
[3]
Western banks 'reaping billions from Colombian cocaine trade
, Ed Vulliamy,
[4]
Le scandaleux arrangement financier avec la banque HSBC prouve que la guerre contre la drogue n'est qu'une farce
, Marc Taibby
[5]
The Market and the Terminator Machines America's Own Kleptocracy
, Michael Hudson
[6]
Crisis of Humanity and the Specter of 21st Century Fascism
[7]
Les Trous noirs de la science économique
, Jacques Sapir, Ed. Seuil, 2003, p. 93 e 43
[8] Idem, p. 83 e 85
[9]
Sobre a barbárie imperialista, A crise do capital e a luta dos povos
, Miguel Urbano Rodrigues
[10]
A tendência à barbárie e as perspectivas do socialismo
, James Petras
Ver também:
Ser de esquerda
A alternância e seus consensos
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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