UE, um modelo de capitalismo dependente
por Daniel Vaz de Carvalho
[*]
Quando Marx nota que "o comércio livre é a forma de uns
países enriquecerem à custa de outros" ele sublinha que o
comércio livre é o meio de que se serve o capital para destruir
os entraves nacionais e constituir-se ao nível da economia mundial.
[1]
1
Podemos imaginar que os historiadores no futuro se interrogarão
verdadeiramente espantados como foi possível tanta irracionalidade,
tanta insanidade na gestão das economias. É certo que "os
poderosos têm sempre admiradores imbecis que se esforçam por se
lhes assemelhar pelos lados maus".
[2]
O imperialismo, os países dominantes, também vivem disto
A anunciada e mais que prevista crise foi sempre negada pela troika nacional
até ao limite quando se tratou de impor a austeridade, culpabilizando as
vítimas da mesma. Devido às políticas da UE, Portugal
encontrava-se fragilizado, com um aparelho produtivo depauperado pelas
importações e privatizações. Entre 2000 e 2011 os
défices da BC acumulados atingiram um total de 194 100 M, uma
média anual de 16 200 M. Desde a entrada para o euro em 2000, os
défices do Estado acumulados atingiram 118 200 M, Estado pagou de
juros 69 500 M, porém a dívida pública passou de 61
500 para mais de 221 000 M.
Mais de metade do aumento da dívida correspondeu a pagamento de juros:
54% entre 2000 e 2009. A partir daqui a dívida disparou: com a
"ajuda" da troika passou de 94% do PIB em 2010 para 134% e o
défice, em termos reais, pode atingir este ano 10% do PIB!
[3]
Com o euro a indústria regrediu 15 pontos percentuais, o PIB ao
nível de 2000, consumo privado ao nível de 2001; investimento ao
nível de 1988. Eis o resultado da ação dos partidos
autoproclamados de "responsáveis" e do "arco da
governação" que nos conduziram a um retrocesso
económico e civilizacional só imaginável num país
sujeito a
um pacto de agressão.
Não deixa de ser espantoso ver a ginástica mental que a clientela
neoliberal faz para justificar "os cortes" e a austeridade deixando
intocável o grande capital. Apresentadores televisivos (salvo raras
exceções) pressurosos a interromper quem contrarie os dogmas
neoliberais, escutam aleivosias com o ar dos provincianos de antanho de visita
"à capital"
A graçola ignara vai ao ponto de se dizer que para resolver os problemas
da Segurança Social seria necessário pôr a trabalhar
pessoas com 80 anos. Isto num país em que o desemprego jovem, apesar da
emigração em larga escala, atinge
em termos reais atinge 500 mil jovens e 400 mil encontram-se em
situação de precariedade. (comunicado da CGTP de 05-08-2014)
2
Os tratados da UE e o euro são o culminar de um processo de
relações de capitalismo dominado face a um centro dominante, em
que são estabelecidos processos de troca desigual, devido aos
desequilíbrios da estrutura produtiva, diferenças de
produtividade e transferências de capitais, rendimentos e juros.
Segundo relatórios do B de P o saldo dos movimentos de juros de
privados, dividendos, lucros e transferências com a UE, atingiu de 2000 a
2013 um valor negativo de cerca de 11 000 M, uma média anual de
766 M, porém de 2007 a 2013, atingiu 1 430 M. A estes
valores somam-se os juros pagos pelo Estado: entre 2000 e 2013 uma média
anual de 4 964 M ano, agravada nos anos da troika para 7 130 M.
Só em juros da dívida pública Portugal pagará em
três anos e meio o que vai receber líquido da UE em sete, cerca de
26 000 M no quadro de apoio 2014-2017!
A UE foi estabelecida de forma a criar a base necessária ao
domínio e à exploração da "periferia" por
um "centro", ampliando as desigualdades entre Estados e
proporcionando uma repartição internacional de mais-valia da
forma mais favorável aos países dominantes.
A adesão ao euro foi propagandeada pela troika interna como um novo
"el dorado"; falências e desemprego foram considerados
vantajosos: tratava-se da "destruição criadora" que
iria permitir a convergência real. Os partidos da troika propagandeavam
que o que era obsoleto na indústria e agricultura daria lugar ao
"novo e dinâmico". Os portugueses teriam salários e
pensões iguais aos de outros países. Foi a mentira mil vezes
repetida
muitos acreditaram, hoje abstêm-se e dizem mal de "os
políticos".
Os tratados da UE e do euro representaram estagnação e
empobrecimento, provisoriamente mascarado pelo endividamento do Estado,
empresas e famílias. Desde a sua introdução o euro,
já de si valorizado em relação à moeda nacional,
valorizou-se mais de 30% relativamente ao dólar, enquanto a economia
portuguesa evidentemente estagnava ou regredia. Será
possível um país desenvolver-se, sobreviver mesmo, ancorado a uma
moeda deste tipo? Para não contrariar o dogma neoliberal da "moeda
neutra" os propagandistas do neoliberalismo atribuem os problemas
às prestações sociais.
O que se verifica é a distorção da estrutura produtiva por
atividades exportadoras de baixo valor acrescentado (pelo baixo nível
tecnológico ou pelos processos de sub e sobrefaturação das
transnacionais) mas também pelo crescimento desproporcionado das
atividades terciárias e das não transacionáveis. Desta
forma a integração dos países
"periféricos" da UE, entre os quais Portugal, é uma
mera falácia que se faz num processo de "desenvolvimento do
subdesenvolvimento" (Samir Amim, referindo-se ao neocolonialismo).
Os países ditos periféricos da
UE estão assim submetidos a uma terapia neoliberal tal como o FMI e
Banco Mundial aplicam aos países siubdesenvolvidos. "Os credores
privados e seus representantes conseguiram impor condições aos
governos. Pressionam para que sejam postas em prática políticas
brutais de ajustamento que se traduzem pela redução das despesas
públicas e redução do poder de compra da
população. Isto conduz as economias a uma situação
de recessão permanente".
[4]
3
A irracional (para não dizer criminosa) adesão ao euro e ao
Tratado Orçamental, visa a destruição do poder estatal e
eliminar das Constituições o que de alguma forma possa interferir
com os objetivos do país dominante. A UE constitui-se assim um
espaço de domínio económico que se procura impor como
domínio político a favor do país dominante. Esta a
natureza da "integração".
Os "europeístas" defendem um governo europeu, ou seja, um
imperialismo dirigido pelo "centro", e nesse centro pelo mais forte,
a Alemanha, que o vai gerir (como já o faz) em função dos
seus exclusivos interesses, mas também das suas muitas fragilidades.
Portugal torna-se, assim, um país de capitalismo dominado
(contrariamente ao que prescreve a Constituição) por um centro
decadente, em crise, eivado de interesses contraditórios. Mas este
centro está ele próprio dependente dos EUA e das suas
aspirações a império global.
[5]
Dizer que tudo isto é benéfico para o país coloca o
raciocínio ao nível das superstições medievais.
É como se Erasmo ou Espinosa nunca tivessem existido.
As políticas da UE significam: sejam vocês mais pobres para a
Alemanha (não o povo alemão) ficar cada vez mais rica e poderosa.
A Alemanha impõe aos outros o que ela própria não
conseguiu no passado apesar do seu potencial e em condições muito
favoráveis. Mesmo agora só o vai conseguindo e mal pelas
condições que impõe aos demais e pelo euro, a
frágil moeda do seu frágil imperialismo.
Este imperialismo procura constituir-se nos domínios económico,
político e militar. Os pés de barro desta
construção tentam ser disfarçados com tratados
irrealistas, absurdos, que se impõem apenas pela propaganda, pela
mistificação e ameaças políticas, isto é,
pela chantagem.
Os países dependentes ficam despojados do seu excedente, pelas
privatizações, pelos juros, pela livre transferência de
capitais, pelo domínio das transnacionais. O controlo do
comércio, a regulação financeira, os contratos
públicos, até os OE estão já sob o domínio
das burocracias de Bruxelas e de Frankfurt. A vontade popular é
sucessivamente rejeitada caso dos referendos sobre tratados europeus
ou iludida por políticos ao serviço dos oligarcas.
O funcionamento da UE reflete os interesses das oligarquias dos diversos
países e suas clientelas com vistas à acrescida
exploração dos trabalhadores. Nos países dependentes a
oligarquia caracteriza-se por perder as referências nacionais (veja-se
onde têm as sedes os seus grupos económicos e onde colocam os
lucros). Tornam-se "correias de transmissão" dos centros
imperialistas para conservar um certo domínio político e
económico no país e partilhar os seus recursos. Uma "correia
de transmissão" sem a qual a ação externa seria
ineficaz ou não rentável.
[6]
Os governos ao seu serviço falam então em "ganhar a
confiança dos mercados". Como se as oligarquias não se
estabelecessem na antítese do teoricamente livre mercado liberal.
Não compreender que o imperialismo é estrutural do modo de
produção capitalista é imaginar um capitalismo
"bom", altruísta (!) nas relações entre Estados
e sem contradições; é não entender que os
países dominantes procuram sempre resolver as suas próprias
contradições à custa dos países dominados. No
estádio monopolista o modo de funcionamento do modo de
produção capitalista é o imperialismo, que exprime de
acordo com a tese leninista a lei do desigual desenvolvimento capitalista
à escala mundial.
[7]
4
Os problemas dos países periféricos têm de ser entendidos
em termos de economia política, isto é, como se cria e se
distribui o valor. Portanto, também o papel de cada país nas
relações de troca internacionais e o seu posicionamento perante o
sistema imperialista. A social-democracia/socialismo reformista subverte a
noção de capitalismo dependente e de relações
imperialistas com a de "nossos parceiros". Eis como qualificam a
agiotagem e o neocolonialismo instituído.
Pelo endividamento, banqueiros e grandes capitalistas pilham sem
escrúpulos o bem comum, enquanto os partidos da troika e seus
propagandistas fazem campanha para o pagamento da dívida
"até ao último cêntimo", no dizer do sr.
José Seguro em "consenso" com o PSD e CDS.
Pela austeridade são impostos sacrifícios em benefício da
especulação financeira. É este o mecanismo do
enriquecimento pelo empobrecimento geral. Os países estão
reféns dos juros, perdem a sua soberania e submetem-se a
constrangimentos a troco de promessas que a vida permanentemente nega, num
espaço político e económico decadente e afetado por uma
crise crónica.
As privatizações permitem aos monopólios obter um
sobrelucro garantido politicamente não pelo mercado! para
contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro, acentuada pela crise. O risco
capitalista do grande capital é desta forma transferido para as MPME e
para os contribuintes, em última análise para o povo.
O excedente económico criado no país é livremente
transferido para paraísos fiscais, vigorando o argumento que "se
assim não fosse os mais ricos mudar-se-iam para a Suíça,
Dubai, Nova Iorque, etc." Que sociedade e que "eficiência"
é esta que se torna prisioneira da ganância dos "mais
ricos"?
As opções do governo PSD-CDS são claras: recusou uma
posição comum sobre o tratamento das dívidas dos Estados,
mesmo com governos de orientações idênticas, pois isso
beliscaria as intenções do governo alemão. O
secretário de Estado Bruno Maçães foi na altura
qualificado em Atenas de "o alemão".
Estão ainda na memória as imagens de subserviência do
ministro Vítor Gaspar perante o ministro das finanças
alemão. O ultra direitista deputado do CDS no PE, Nuno Melo afirmava em
entrevista à RDP: "deve haver uma discriminação
positiva para os países que cumprem as regras quanto ao défice e
os que são incumpridores, relapsos." Alinhava assim com as
intenções do governo alemão, exprimia a sua
"solidariedade" com os interesses da agiotagem internacional.
"Solidariedade" que, bem podemos dizer, sai da pele do povo
português e nos condena ao atraso permanente.
A libertação dos países dependentes depende da
consciencialização e da luta dos seus povos, mas não
só. A solidariedade internacional, a ligação aos povos e
aos países com problemas comuns é essencial, as lutas do
proletariado nos países dominantes são também
fundamentais.
O desenvolvimento exige que seja retomada a plena soberania do país,
incluindo a monetária, orientando os seus recursos para o
desenvolvimento industrial e tecnológico, na base de planos de curto,
médio e longo prazo. Só saindo do colete-de-forças imposto
pelos tratados da UE e do euro será possível o país entrar
numa via de desenvolvimento económico e social.
[1] Christian Palloix, A economia Mundial Capitalista, Vol. II, p. 24 ,Ed.
Estampa
[2] Guy Breton, autor de Histoires d' Amour de L'Histoire de France, acerca da
corte de Henrique III.
[3] Devido a despesas de recapitalização financeira ,BES, BPN
crédito, dívidas de EP's a privatizar, etc. (Relatório da
UTAO agosto 2014)
[4]
www.legrandsoir.info/...
[5] Ver "Obama subjuga a Europa: Sanções aprofundam a
recessão",
resistir.info/petras/petras_23ago14_p.html
[6] Christian Palloix, obra citada, Vol. II, p. 282.
[7] Christian Palloix, obra citada, Vol. I, p. 64.
Em continuação: "O destino de Portugal pode ser outro"
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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