A doença degenerativa da economia: o neoclassicismo
Um livro de Remy Herrera
por Daniel Vaz de Carvalho
O horizonte que se dizia inultrapassável, eterno, natural, o
capitalismo, foi mesmo á falência, desmoronou-se como um castelo
de cartas ou uma pilha de fichas de casino. Contudo, uma opinião
pública dramaticamente desinformada, desorientada, acima de tudo
despojada, verdadeiramente ainda não tomou disto consciência.
(p.210)
A questão hoje é saber como para além dos falhanços
e erros do passado os países podem esperar construir autênticas
estratégias de desenvolvimento e as condições do seu
futuro coletivo numa alternativa pós-capitalista quer se chame
socialista quer simplesmente social (p.174)
1 O pensamento único, zero pensamento
O livro de Remý Herrera
[1]
impressiona pela forma como alia a simplicidade
ao rigor de análise, a acessibilidade na abordagem dos temas à
densidade das ideias que expressa. É uma obra que desmonta totalmente o
absurdo em que se baseia o atual sistema económico e social. Só a
mais estrita censura impede que estes temas e autores como R. Herrera
entre outros divulgados neste site sejam conhecidos da opinião
pública, em particular dos jovens estudantes. Ao lê-lo não
podemos deixar de ver como se tornam indigentes, fruto ou da mais
acéfala superstição ou de obscuros interesses, os
argumentos das políticas de direita, as teses que suportam as
políticas do capitalismo atual.
RH define o neoliberalismo como o sistema doutrinal sobre o qual se desenvolve
a estratégia de domínio da Alta Finança moderna, munida
duma superestrutura institucional que comanda. (p.197) Uma corrente de
pensamento edificado sobre um paradigma fictício, feito de
equilíbrios ótimos e harmonias imaginárias que se pretende
científico e universal, mas sempre apologético. Fala-se em
sistema globalizado para não dizer "capitalista" e ainda menos
imperialista. (p.11)
Em termos científicos, falar em pensamento único não
é sequer pensável. Na economia só poderia tratar-se de
pensamentos dominantes, hegemónicos, mas sempre contingentes. Neste
pensamento alinharam os "jornalistas do mercado" e uma larga maioria
da "esquerda socialista" que já não é de
esquerda nem socialista e que é preciso resolver-se a ser chamada pelo
seu nome: uma "nova direita". (p.15, 16)
Estamos perante a pretensão de uma "economia pura" ignorando
os processos históricos e a condição humana como um todo
socialmente integrado, em proveito do subjetivismo e do individualismo como
metodologia. O "homo æconomicus", é a partícula
elementar necessária para estabelecer leis válidas em todo o
tempo e em qualquer lugar, segundo a maximização do lucro.
Trata-se de ciência-ficção económica cujo papel
antissocial é evidente. (p.33, 35)
O que nos propõe a ortodoxia é uma racionalização
da injustiça social e a aceitação duma violência nas
relações sociais. É a legitimação da
exploração e de uma "refeudalização" do
mundo (J. Ziegler) fixando comportamentos arbitrariamente num conjunto
codificado de hábitos discriminatórios. Como que uma sociedade
dividida em castas (p.74, 76)
2 As contradições sobre o papel do Estado
O neoliberalismo conduziu uma agressiva estratégia anti Estado, em que
as privatizações representaram uma mutação da
estrutura do capital a favor do sector privado, associada à
redução das despesas orçamentais, desmantelamento da
proteção social, rigor salarial, combate ao que designam como
"rigidez sindical", promovendo o comércio livre e a livre
transferência de capitais. (p. 21)
Garantindo a liberdade para o capital, este selecionaria o valor de
equilíbrio para assegurar o crescimento e o pleno emprego. Se o sistema
estivesse em equilíbrio aí permaneceria, se não os
mecanismos autocorretores garantiriam a estabilidade qualquer que fosse o
estado inicial. (p. 11) Nenhuma política económica do Estado
seria então necessária para além de garantir uma
série de "condições ótimas" sem as quais
"a regra de ouro" do crescimento e do emprego não seria
possível" (p. 112)
Para Hayek (um guru do neoliberalismo) "um mínimo de recursos deve
ser fornecido fora do mercado àqueles que por qualquer razão
são incapazes de ganhar no mercado de que subsistir". Para
Friedman, a caridade deveria regular a redistribuição. (p. 27)
Estes conceitos, que não andam longe do esclavagismo e do feudalismo,
são a confissão que o mercado não seria capaz de garantir
as subsistências. Mas isto, é apenas uma evidência
Charlatães da "modernidade" (tal como os eufemismos das
"reformas" e das "reestruturações")
não apresentam senão um panegírico idólatra da
dominação do capital financeiro. O resultado foi o Estado, cujo
caracter repressivo se acentuou, ser capturado pela dívida
pública e colocado sob o controlo duma aristocracia de rentistas.
(p.187,191)
Contudo, a ideia de que os modelos económicos do liberalismo formalizam
um "equilíbrio geral dinâmico" é pura e
simplesmente falsa. (p. 124) Os dados empíricos mostraram que o modelo
era inadequado para explicar o crescimento mantido num longo período.
(p. 113) Aparece assim uma nova tentativa de manter os modelos de equilibro com
a intervenção do Estado. Mas sem largar a velha lei de Say da
economia do "lado da oferta".
Depois de tanto teorizarem sobre os malefícios da
intervenção do Estado na economia, introduziram análises
defendendo essa intervenção
"quando o estado coopera
com a iniciativa privada (
) garantindo a estabilidade dos direitos de
propriedade e criando um cenário macro e microeconómico que
incite à eficiência do mercado". (p. 79) Estado que
não se mobiliza senão para a acumulação e a
remuneração privadas, já nem sequer promove uma
redistribuição dos rendimentos no quadro de uma sociedade
capitalista. (p. 129) As decisões públicas devem portanto
limitar-se a refletir as preferências dos "agentes privados".
A conceção de Estado é contraditória: por um lado
é omnipresente com diversas formas de intervenção para
restabelecer as condições "ótimas de
equilíbrio" através de subvenções e
benefícios fiscais a favor do grande capital; por outro, ausente
enquanto instituição autónoma, que o neoclassicismo
"reestrutura" de acordo com o que define como comportamento
ótimo (p. 127) Os interesses sociais são aqui totalmente
ignorados. Já não é apenas contra o Estado e seus
funcionários, "burocratas fora de controlo" dos
oligarcas obviamente! é a democracia que se torna
incompatível com o sistema.
3 - Incompatibilidade com a Democracia
Embora proclamem a "liberdade económica" como
condição do crescimento sustentável, quanto mais desta
"liberdade" menos crescimento e mais retrocesso social. (p. 85)
Considera-se então que para haver "pluralismo" dois partidos
bastam mesmo que estejam na mesma linha política ou quase
e que liberdade eleitoral significa ser manipulado pelos potentados do
dinheiro. Além disto combatem não apenas o "peso do
Estado", mas a excessiva participação dos cidadãos
nas decisões tendo em vista o futuro comum. (p. 88)
Preserva-se a ficção duma liberdade pelas livres escolhas
individuais, uma liberdade que ignora os efeitos do domínio de classes e
nações e a violência das relações entre
exploradores e explorados no fundo, as contradições
fundamentais do sistema capitalista. (p. 167) Que democracia pretendem governos
e instituições financeiras que limitam a expressão da
soberania dos povos perante a liberdade dos mercados, os pagamentos da
dívida externa e a livre transferência de capitais? (p. 152)
Considera-se então que maximizar os votos com promessas eleitorais
conduziria a situações "subótimas". Face
à incapacidade de gestão da crise pelo neoliberalismo e à
recusa das instituições internacionais em reconhecer a
urgência de uma alternativa, endurecem as críticas ao papel do
Estado, reclamando "reformas" e "boas
instituições", não para favorecer os povos, mas o
capital. (p.150, 151)
A dita "boa governança" não é para dinamizar a
participação democrática dos cidadãos nos processos
de discussão e decisão sobre o que lhes diz respeito e o seu
direito ao desenvolvimento, mas pressionar os Estados a desregular os mercados,
isto é, a re-regulá-los pelas forças do capitalismo
mundialmente dominantes, constrangendo ao extremo as margens de manobra dos
povos, recolonizando-os e chamando a isto o governo ideal. (p. 151) Eis
desmascarada a propaganda dos "europeístas".
A "boa governança", para além da retórica
anticorrupção, não impede nem impediu o FMI de financiar
regimes notoriamente corruptos e em sistemática violação
de direitos humanos. (p. 155) R. Barro um dos epígonos do
neoliberalismo afirma que as regras de direito e o funcionamento
concorrencial dos mercados tinham uma influência positiva na
"liberdade" enquanto o impacto da democracia tinha um efeito
negativo. O processo democrático acelerava o crescimento
económico para fracos níveis de liberdade política, mas
travava-o a para além de um nível julgado suficiente de
democracia. (p.135, 136)
Para R. Barro, na Colômbia (em 2004): "talvez haja demasiada
democracia". São sintomáticos os elogios a Pinochet,
considerando que a animosidade (!?) da esquerda se devia "ao seu
verdadeiro sucesso na economia". (?!) As recomendações aos
países são: liberdade dos mercados, diminuição do
poder dos sindicatos, redução das despesas públicas. (p.
137)
Defende, como Friedman, a liberdade de escolha na educação, baixa
de impostos sobre os altos rendimentos, regras de estabilidade
monetária, privatização da segurança social. As
funções limitadoras dos governos teriam ido demasiado longe: a
função chave do governo é defender os direitos de
propriedade. (p. 140) Como se vê, a sua doutrina faz escola não
só no governo do PSD-CDS, mas na UE
4 Falhanços, Reviravoltas e Crises
Os enormes lucros obtidos pela exploração capitalista não
foram capazes durante mais de três décadas de tirar o sistema da
sua crise estrutural. (p. 22) As políticas de "ajustamento
estrutural" não só se revelaram totalmente ineficazes para
resolver desequilíbrios internos como contribuíram mesmo para
propagar as causas da crise. A progressiva desregulamentação,
privatizações e livre circulação de capitais provou
o seu fracasso. (p. 154)
Os problemas teóricos resultantes das "expectativas racionais"
dos agentes económicos, tanto em concorrência perfeita como no
caso de mono e oligopólios, abrem brechas no paradigma
neoclássico, mas nunca são evidenciados nos inúmeros
trabalhos dos fiéis desta religião (p. 162) A "ideologia
científica" do capitalismo não toma a crise como objeto de
estudo e não está à altura de explicar em profundidade a
crise do capitalismo realmente existente. (p. 185)
A flexibilização de preços, salários e taxas de
juro, faria o sistema tender para o equilíbrio através da livre
concorrência. (p. 109). Tudo isto é negado pela prática e
os trabalhadores são obrigados a aceitar salários e
condições laborais abaixo do nível de pobreza, obrigados a
trabalhar em "estágios" e
"requalificações" ou a emigrar. Os desempregados
são sujeitos a toda uma série de obrigações,
considerados potencialmente golpistas e madraços, enquanto o grande
capital recebe milhares de milhões sem qualquer contrapartida. Tudo
coerente com esta economia política de degeneração social.
Perante os sucessivos falhanços das ortodoxias liberais, foram
produzidas novas abordagens aos "equilíbrios
automáticos": primeiro a clássica, depois
marginalista-neoclássica, a seguir keynesiana-neoclássica,
neoclássica-neoliberal, até aos diferentes modelos mais
sofisticados de concorrência imperfeita ou às nuances alambicadas
de conversa fiada não formalizada, de que fazem uso para consolidar as
suas posições ideológicas (p. 183) A linearidade existente
nestes modelos, por exemplo base do marginalismo, é alheia à
realidade. Como se sabe, para que a derivada seja real e finita é
necessário que a função não tenha descontinuidades.
Nada mais afastado de uma realidade feita de incontroláveis crises.
Como as crises existem evocam-se fenómenos "exteriores" aos
mercados, fatores que vêm perturbar os mecanismos de
correção automática dos preços. Teorias que voltam
as costas ao real, acientíficas, porque as crises são parte
integrante da dinâmica contraditória da reprodução
alargada do capitalismo (p. 188) Do mesmo modo, a rarefação dos
recursos energéticos ou as questões ambientais estão em
contradição com a análise custo-benefício da
ortodoxia vigente. (p. 171)
Contrariamente às "ilusões" de certa esquerda, as
receitas de Keynes já não são capazes de resolver os
problemas desta sobreacumulação movida pela finança cuja
procura de lucro confina com a loucura. O Estado como Keynes o concebia
não existe. São os oligopólios que ditam a lei, que fixam
taxas de juro, criam moeda e se necessário nacionalizam
prejuízos. (p. 213)
A baixa da taxa de juro, na aparência keynesiana, revelou-se incapaz de
transferir capital da esfera financeira para a produtiva. Apesar das variantes
e análises que se reivindicam de Keynes mesmo as mais avançadas
não formulam senão visões reformistas, consistindo em
introduzir modificações mínimas no funcionamento do
capitalismo. Nenhuma das versões keynesianas sugere superar o capital
enquanto instrumento de domínio e exploração. Estes
autores caem na crença de um Estado benfeitor e acreditam na boa vontade
dos capitalistas. (p. 213, 214)
Mas os resultados deste caos que leva a maior parte das economias do planeta
à catástrofe, agrada à oligarquia: 20% da
população mundial detém 85% dos rendimentos totais
enquanto os 20% mais pobres, não ultrapassam 1%. Mais de 3 000
milhões de pessoas sobrevivem na pobreza extrema. Os 85 mais ricos
detêm mais que os 3 500 milhões mais pobres. (p. 10) As
transnacionais, são entidades privadas sem fronteiras que gerem um
capitalismo sem cidadania. (Em tempos) falou-se dos "barões
ladrões" que controlavam o povo com dinheiro do povo, os mesmos que
os media e tantos manuais universitários apresentam como
"filantropos". (p.189)
Para RH, uma análise séria da crise não é
possível sem o conceito marxista de
capital fictício
. (p. 201) Um outro capitalismo "de rosto humano" não é
possível. O sistema tornou-se essencialmente destrutivo para a
humanidade e está condenado. Mas não cairá sem o impulso
das lutas de massas, progressistas, anti sistémicas e convergentes. Este
processo obriga a considerar alternativas de transformação social
pós-capitalistas começando por parar a máquina infernal
acionada pela Alta Finança que regula o mundo por meio da guerra e
instaurar um controlo público e democrático dos
oligopólios bancários e financeiros, a fim de responder às
necessidades dos povos. A referência a Marx parece então
incontornável. (p. 215)
[1]
La maladie dégénérative de l'économie, le
"néoclassicisme",
Ed. Delga
, 2015, ISBN 978-2-915854-73-2.
Remy Herrera é doutorado em economia, mestre em filosofia e
investigador do CNRS (Paris). Do seu vasto currículo destaca-se a
participação na Associação Nacional de Economistas
de Cuba, Fórum do Terceiro Mundo (Dakar) e o seu trabalho no Centro
Europa-Terceiro Mundo (Genebra) junto do Conselho dos Direitos do Homem da ONU.
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