O capital fictício, como a finança se apropria do nosso futuro
por Daniel Vaz de Carvalho
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A crise de 2007-2008 com as "políticas de rigor" e
"reformas estruturais" fez cair a máscara à
social-democracia. (
)
A soberania dos mercados sobrepõe-se à dos povos
Cédric Durand
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1 Natureza do capital fictício.
A austeridade já tem sido considerada como o "vírus
capitalista". É uma imagem. Na realidade, trata-se do
remédio errado, como uma seringa infetada. O capitalismo está de
facto atacado de uma doença letal: o capital fictício. Sem
eliminar este "vírus" nenhum remédio será
verdadeiramente eficaz. É isto que Cédric Durand nos evidencia.
A importância deste livro reside na análise de um tema fundamental
do marxismo, o capital fictício, aliado a uma linguagem simples, mas
absolutamente rigorosa e factual, em que os dogmas do neoliberalismo são
totalmente desmontados. Só a escandalosa censura existente impede a
divulgação e discussão destas análises até
nas universidades.
A natureza do capital fictício reside em que os títulos
financeiros são apenas promessas de valorização real, o
que destrói o mito da autonomia do sistema financeiro como
variável determinante do sistema económico. O capital
fictício é uma ilusão e um desvio de recursos. (p. 56, 57)
Tem consistido no aumento vertiginoso da quantidade de valor validado por
antecipação à produção de mercadorias. (p.
90)
O capital fictício, é de facto um produto de
contradições económicas e sociais insolúveis. (p.
7) Encarna valor, mas não resulta da produção de valor,
resulta de transferências de rendimentos a partir de atividades
produtivas, isto é, rendimentos do trabalho e lucros tirados da
produção de bens e serviços. (p. 105)
Marx identifica três formas de capital fictício: a moeda
crédito, os títulos de dívida pública e as
ações. Cédric Durand desenvolve este conceito aplicando-o
à realidade atual, apresentando-o como uma apropriação da
mais-valia produzida na esfera produtiva, desmontando o aparente enigma dos
lucros sem acumulação, resultantes das operações
financeiras e do controlo das redes produtivas internacionais. (p. 178)
Podem ser caracterizados como lucros financeiros os juros, os dividendos e as
mais-valias realizadas com a venda de ativos. Como fontes dos juros
distinguem-se os resultantes do endividamento das famílias para terem
acesso ao consumo (lucros de alienação); os resultantes do
endividamento das empresas, que se tornam críticos nos períodos
de crise; os lucros políticos de dívida pública. (p.
106-112)
São também fontes de lucros financeiros a atividade como
intermediários; o chamado lucro dos fundadores (diferença entre o
preço dos ativos e valorização no mercado bolsista); os
lucros políticos obtidos com recapitalização,
nacionalização dos prejuízos, benefícios fiscais,
etc. (p. 119, 123)
Nos EUA a parte dos 1% mais ricos na detenção de dívida
pública passou de 16 para 40% entre 1970 e 2010. Em 1970 a dívida
dos 11 países mais ricos representava 30% do PIB, em 2012, nos EUA 114%,
no Reino Unido 137%. O valor financeiro obtido por antecipação do
processo de valorização futura não cessou de aumentar (p.
75)
Um estudo sobre subvenções públicas implícitas nos
lucros das grandes instituições financeiras concluía que
existia uma subvenção implícita de 233 mil milhões
de euros em 2012, 1,8% do PIB da UE e montantes da mesma ordem desde 2007. Sem
isto os bancos registariam prejuízos consideráveis. Os seus
lucros são portanto subvencionados. A privatização dos
benefícios das atividades financeiras é, pois, perfeitamente
ilegítima. (p. 122)
2 A financeirização e os "mercados eficientes"
A liberalização financeira conduziu à alta dos lucros
financeiros, donde a uma taxa mínima de rentabilidade nos investimentos,
ao aumento dos dividendos entregues aos acionistas, à
diminuição dos lucros retidos pelas empresas e consequentemente
ao abrandamento da acumulação, à
sobreprodução e ao desemprego. (p. 154) A
financeirização não conduziu (como propagandeado) ao
aumento do investimento, ao "crescimento e emprego", mas ao seu
declínio (p. 50). Os países da OCDE de rendimento elevado
detinham em 1990, 80% do PIB mundial, em 2012 reduzira-se para 61% (p. 8, 9).
Numa estrutura Ponzi (especulativa) o fluxo de rendimento acaba por não
permitir reembolsar nem os juros nem o principal da dívida. Por
conseguinte, o endividamento não pode senão aumentar e conduzir a
falências (p. 40). Algo de semelhante se passa com os Estados. Heyman
Minsk passou a maior parte da carreira a defender a tese de que os sistemas
financeiros estão por natureza sujeitos a acessos especulativos. Foi
considerado um "radical" (p. 37).
O otimismo na financeirização, ao qual não foram poupados
os reguladores, levou ao abrandamento das normas prudenciais e à
desregulamentação, potenciando os riscos. O paradoxo da
intervenção pública como tem sido realizada consiste em
que os operadores financeiros são tanto mais inclinados a assumir riscos
quando sabem que o banco central tudo fará para impedir o risco
sistémico de se concretizar (p. 42, 43).
Os defensores da linha de Hayek de que o mercado é um processo de
revelação de conhecimento disperso aplicável aos mercados
financeiros, negligenciam a dinâmica da criação e
preservação do capital fictício e os efeitos de
distorção de informação que daí decorrem (p.
138). O que conduz a má apreciação dos riscos e más
decisões de investimento. Desde 1980 a desregulação
financeira, criou períodos de expansão financeira que terminaram
sempre em crise (p. 45).
O capital fictício é tanto um acelerador do desenvolvimento
capitalista como fautor de crises, esta ambivalência dá aos seus
zeladores no dizer de Marx "o caracter híbrido de escroques e
profetas". (p. 63) Grandes bancos manipularam em seu benefício
durante mais de duas décadas as taxas Libor e as taxas de câmbio
das principais moedas. A procura do desempenho a qualquer custo teve como
corolário a fraude, a vigarice. "Os delitos estão presentes
desde sempre no mercado e raramente são objeto de procedimento
judicial" (B. Madoff, ex-presidente da NASDAQ) (p. 17).
A Golman Sachs que reconheceu ter cometido práticas fraudulentas, teve
em 2010 uma multa de 550 milhões de dólares, cerca de 14 dias dos
lucros desse ano (p. 19). Os sistemas de crédito paralelo contornam as
normas sobre reservas obrigatórias, representam canais de difusão
das crises a que as avaliações das agências de
rating
acrescentam riscos (p. 82).
A legitimação do liberalismo financeiro foi apoiada por
economistas e universitários. Larry Summers
[1]
havia recebido 20 milhões de dólares em anos em que defendeu
incansavelmente o liberalismo financeiro. Verificou-se que 19 eminentes
universitários diretamente implicados nas reformas financeiras estavam
também ligados ao sector privado sem nunca o terem declarado (p. 33).
Como aprendizes de feiticeiro os agentes financeiros foram apanhados na sua
própria armadilha e não anteciparam o desastre. Porém
(para eles) tudo continua como se nada se tivesse passado, continuando a serem
considerados racionais e omniscientes, A cegueira ao desastre e ao conformismo
dominam o sistema financeiro (p. 24).
3 A vingança dos rentistas
O aumento dos lucros financeiros poderia sugerir que a vingança dos
rentistas era a explicação para o paradoxo dos lucros sem
acumulação. Porém as (grandes) empresas também
obtiveram rendimentos crescentes das suas atividades financeiras (p. 158). No
entanto, em prejuízo da sua atividade produtiva, em detrimento do
"crescimento e emprego", a fórmula com que a direita e a
social-democracia procuram iludir as camadas proletárias.
A reconfiguração do tecido produtivo alinha-se em
função do interesse dos acionistas em termos de rendimento a
curto prazo. Consiste em "reestruturar e distribuir", isto é
reduzir o emprego e separar-se de atividades menos rentáveis,
estabelecendo subcontratos. O reforço do poder dos acionistas e a
globalização afetou negativamente o investimento estabelecendo
uma norma de rentabilidade mínima aquém da qual os projetos
produtivos são eliminados. (p. 170) Esta reconfiguração
visa libertar mais-valias bolsistas e dividendos, mais que o aumento da
eficiência económica, modificando a relação de
forças entre acionistas, gestores e trabalhadores (p. 158, 159).
É uma lógica predadora: trata-se de garantir que o capital
fictício seja sempre convertível em dinheiro, isto é, bens
e serviços (p. 188).
Nas vésperas da crise atual, 147 sociedades controlavam 40% do valor do
conjunto das TN, sendo elas próprias dominadas por 18 entidades
financeiras (p. 114). Estabelece-se uma hierarquia de capitais, na qual os
centros capitalistas diretamente ligados aos mercados financeiros
dispõem de um poder de mercado que lhe permite transmitir os choques
conjunturais às empresas da periferia com o objetivo de atingir e
ultrapassar os rendimentos garantidos aos acionistas. A pressão
traduz-se na degradação das condições salariais (p.
163).
O parasitismo dos países mais avançados estabelece como que um
tributo aos países mais fracos, sob a forma de produtos, recursos
naturais e lucros, verificando-se naqueles países uma parte crescente de
lucros recebidos do estrangeiro (p. 181). Porém, simultaneamente cresce
o peso de atividades cuja dinâmica tende a reduzir-se, crescendo aquelas
em que a produtividade estagna (p. 173).
4 Uma transferência de riqueza organizada a nível global
Os grandes bancos de investimento e os fundos especulativos organizam a
transferência de riqueza a nível global. Com a estabilidade
financeira visa-se fazer prevalecer as exigências do capital financeiro
sobre as aspirações das populações (p. 124).
Nos EUA os 1% mais rico apoderaram-se de 95% dos ganhos entre 2009 e 2013,
aumentando os seus rendimentos em 31,4%. O total dos montantes despendidos
pelos Estados para apoiar o sector financeiro (recapitalizações,
compra de ativos, nacionalizações", garantias,
injeções de liquidez) em 2008 e 2009 foi avaliado pelo FMI em
50,4% do PIB mundial! (p. 51)
Outro aspeto é a liberalização do comércio e dos
fluxos de capitais, estabelecendo um exército de reserva do trabalho a
nível global. A troca desigual proporciona a capacidade das TN dos
países dominantes para remunerar os seus agentes financeiros
através dos ganhos provenientes das relações mercantis
assimétricas com os seus fornecedores dos países dominados (p.
128).
Com o enfraquecimento do movimento operário o imperialismo e a
oligarquia financeira reforçaram o seu poder (p. 184). Em 2006 havia 66
milhões de trabalhadores, em países ou zonas em que impostos e
regulamentações são quase inexistentes, em particular as
do trabalho, com fiscalização submetida aos interesses e
exigências do patronato e salários de 1 por dia (p. 177).
Para Hayek as crises não são produzidas por excesso de
produção mas por excesso de consumo (p. 60). Justificando assim
os planos de austeridade que não são mais que créditos
sobre os montantes futuros dos impostos dos quais a finança se apropria
(p. 66).
Ganha, pois, uma atualidade nova a famosa afirmação de Marx
segundo a qual "numa certa fase do seu desenvolvimento, as forças
produtivas materiais entram em conflito com as relações de
produção existentes, ou, o que não é senão a
sua expressão jurídica, com as relações de
propriedade no seio das quais tinham existido até então. De
formas de desenvolvimento das forças produtivas estas
relações tornam-se no seu entrave" (p. 133).
Perante as crises o sistema tem necessidade de relançamento para um
rápido aumento dos lucros, recorrendo a choques exógenos, como
guerras, contrarrevoluções, derrota dos assalariados, descoberta
de novas fontes de matérias-primas (Ernest Mendel) (p. 139).
Esta política não conhece limites e só pode ser posta em
causa pela combatividade das camadas populares (p. 190). Eis o que resume as
mensagens que propomos reter do livro de Cédric Durand.
[1] Antigo presidente da Universidade de Harvard, conselheiro de Obama e
secretário do Tesouro de Clinton.
Ver também:
O Inverno vem aí...
, de Jacques Sapir
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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