A ética do dinheiro e o dinheiro da ética (1)
por Daniel Vaz de Carvalho
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"Não está no poder dos ricos fornecer aos pobres
ocupação e pão e consequentemente os pobres pela
própria natureza das coisas não têm obrigação
de lhos pedir. Os pobres não têm quaisquer direitos a serem
mantidos".
R. Malthus. História das Ideias Políticas, J. Touchard, Ed.
Europa-América, T II, p. 198.
Mas quê, meu Jacinto! A tua Civilização reclama
insaciavelmente regalos e pompas que só obterá, nesta amarga
desarmonia social, se o Capital der ao Trabalho, por cada arquejante
esforço, uma migalha ratinhada. (
) E um povo chora de fome, e da
fome dos seus pequeninos, para que Jacintos, debiquem bocejando, sobre pratos
de Saxe, morangos gelados em champanhe e avivados de um fio de éter.
A Cidade e as Serras, Eça de Queiroz, Ed. Círculo de Leitores, p.
76
Agradecimento.
Ao Exmo. Sr. Dr. Medina Carreira pelo valioso contributo prestado pelos seus
escritos e dissertações televisivas para a
elaboração deste texto.
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1 OTIMISMO E PESSIMISMO
O sr. Medina Carreira (MC) é considerado um pessimista. Mário
Soares qualificou-o de "cassandra" (profetiza da desgraça de
Troia). Acho justamente o contrário. O sr MC é um otimista: o
mais panglossiano que possamos imaginar. Para Pangloss, com o qual Voltaire
ridicularizava as teses de Leibnitz, no mundo embora exista o mal, este
é compensado por um bem sempre maior, superior ao de qualquer outro
mundo possível, este é portanto o melhor dos mundos
possíveis e o mal que contém não é argumento contra
a bondade de Deus. Substitua-se Deus pelo mercado (é o novo deus ao qual
querem que a humanidade se curve) e eis-nos na ética atual. O argumento
satisfez totalmente a nobreza do passado, tal como satisfaz hoje a oligarquia e
seus epígonos.
O sr. MC tem uma vantagem sobre os comentadores-propagandistas que pululam como
cogumelos sobre matéria apodrecida: é sincero, diz muito
honestamente o que pensa ao contrário de outros cuja missão
é passar ilusões e adormecer consciências. Isto não
impede que no essencial exiba um conservantismo social extremo e uma
arrogância própria da nobreza reacionária de outros tempos.
2 - CONSERVADORES E REACIONÁRIOS
Um conservador diz: "Assim deveriam ser construídas as sociedades
em tempo de paz: uma força esmagadora e opressiva da parte da classe
dominante, inumeráveis objeções à
utilização de qualquer parte dessa autoridade".
[1]
Um reacionário suprime a segunda parte da frase.
Um conservador dirá: "fico satisfeito por ter tido a minha parte de
responsabilidade em toda aquela estrutura de pensões e seguros
especialmente pensada para elas"
[1]
(mulheres velhas e pobres). Um reacionário dirá que não
há dinheiro para o "Estado Social", que isso acabou, que
pobres e pensionistas são o estigma do Estado "asilo", enfim
"o mundo mudou".
Para o reacionário, sindicatos, direitos laborais, normas
constitucionais, são "privilégios",
"obstáculos ao progresso", como já foram
"forças de bloqueio" ou, na visão do sr César
das Neves, "os poderes" que obviamente é preciso abater, como
a troika mais ordena, já não é o povo, para
o
"progresso", este entendido como o poder absoluto da classe
dominante: a oligarquia monopolista e financeira.
O reacionário dirá: a economia não tem nada que ver com
conceitos morais. Claro que não, se assim o definirem à
partida
Mas do que querem falar não é de ciência
económica e sim de econometria "ciência" de
manipulação de dados económicos. Porém quando se
trata de países, de nações, o que tem de se considerar
é a economia política e aqui sim, é a ética, ou a
falta dela, que conduz a gestão económica.
3 O MUNDO MUDOU
Ao usar-se o argumento de que o mundo mudou para justificar todas as
iniquidades, está-se à partida a afastar a ética da
discussão.
Desde o final da Idade Média (para não ir mais longe) que o mundo
está sempre em mudança. E esta mudança sempre se fez
limitando o poder dos poderosos, fosse pelos títulos
nobiliárquicos, fosse pelo dinheiro. Para o reacionário a
"mudança" é o retorno ao passado, instituir sem
"objeções" a "força esmagadora e opressiva
da classe dominante". Isto é, destruir o presente, substitui-lo
pelo passado, impedir o progresso a que humanamente cada pessoa aspira e tem
direito.
Com a tese, que tudo pretende justificar, "o mundo mudou, é como
é" e tudo o que fizermos para o contrariar só piora, nunca
teríamos tido Erasmo, Giordano Bruno, Galileu, o "nosso"
Espinosa, Hobbes, Helvetius, Voltaire, Montesquieu, Diderot. Viveríamos
ainda com o "direito divino dos reis" de Bossuet ou Robert Filmer, a
jornada de trabalho seria de 14 ou 16 horas, vigoraria a lei Chapelier, que
criminalizava a formação de sindicatos.
Se o mundo mudou para melhor não foi porque nobres ou banqueiros
fizessem alguma coisa por isso, foi porque o povo (artesãos e
comerciantes juntos com o proletariado) lutou e porque intelectuais
progressistas lhes mostraram as vias do progresso humano e os acompanharam nas
suas lutas, como Owen, Hodgskin, Fourrier, Sain-Simon, Marx, Engels, entre
tantos outros, não esquecendo os artistas.
O que importa é questionar, como seres racionais e gregários, se
o mundo mudou para melhor coletivamente ou se foi para pior. E se não se
fizer esta pergunta cai-se no campo do amoralismo para alguns do
oportunismo.
Uma simples digressão pela História europeia mostraria como os
países não se engrandeceram sujeitando-se ao poder temporal da
burocracia da Cúria Romana, ao poder de Carlos V e Filipe II, da Santa
Aliança, dos nazis. Nem os portugueses teriam sido o que são se
não lutassem contra Castela, contra o fascismo, pela sua liberdade.
Diz-se que o Estado perdeu instrumentos de intervenção
económica, que as soluções keynesianas estão
esgotadas. É tomar como axioma a conclusão a que se quer chegar.
É recusar uma avaliação qualitativa de uma
situação social e sociológica.
Além do mais é falso. O Estado, submetido ao neocolonialismo da
UE dominada pela Alemanha, usa os poderes de intervenção no
sentido de proteger a especulação e desregulação
financeira, a dependência dos mercados, com Bancos Centrais a funcionarem
ao serviço da finança privada, colocando os povos à sua
mercê. Não, "o mundo não é o que
é", o mundo está a ser o que as oligarquias querem que seja.
4 - ÉTICA E ECONOMIA
Dizia o ministro Pires de Lima que a trajetória de crescimento
económico do país se traduzirá em melhores
condições de vida dos portugueses e que os empresários
não precisam de estar à espera do governo para melhorar
salários.
Assim fala um ministro de um governo que se comprometeu com a troika a garantir
que com a redução do desemprego não aumentam os
salários, a encorajar a flexibilidade salarial e sem pejo
reduzir incentivos para contestar demissões individuais em tribunal.
"Estas propostas serão discutidas na 11ª
avaliação".
[2]
Que dizer em termos políticos? Inconsciência, ignorância ou
hipocrisia? Enfim, esta é a ética do dinheiro. Se nos dizem que a
"economia é cega e surda" para que serve a política? E
qual o lugar da ética? Não, a economia só não
vê nem ouve as desigualdades, nem a injustiça fiscal, submetida
aos dogmas neoliberais, em que "os ricos nunca são demasiado ricos
para investir, nem os pobres demasiado pobres para trabalhar mais", como
bem disse John Kenneth Galbraith.
Se um Estado em nome da dita "economia" ignora ou compromete o futuro
dos seus jovens, despreza os seus idosos tratando-os como parasitas do
"Estado asilo", deixou de ser o garante da felicidade coletiva, como
aspiravam os primeiros liberais, o garante do contrato social e da igualdade,
como proclamava o iluminismo do século XVIII, passou a ser um opressor
ao serviço de interesses espúrios.
A economia política, que deveria traduzir o conceito social e agregador
do Estado, é mascarada com uma escolástica neofascista baseada
nos ditames ideologicamente pervertidos e desumanizados do neoliberalismo, para
eliminar os conceitos e as práticas da democracia real e, entre
nós, do espírito do 25 de Abril.
5 NÃO HÁ DINHEIRO?
Se o "mundo é o que é" nunca há dinheiro. A
questão é saber para quem. Dizer que não há
dinheiro, pode parecer uma evidência quando é repetida à
exaustão pelos teólogos neoliberais. Porém, é uma
evidência do tipo segundo a qual é o Sol que se move à
volta da Terra. A questão é: para onde vai o dinheiro, como
é distribuído?
Se não há dinheiro como é que, em 2013, 870
multimilionários deste país aumentaram as suas fortunas em 11,1%,
atingindo 100 mil milhões de euros? A pobreza e o desemprego efetivo
aumentaram, a recessão continuou e o investimento regrediu.
O "sucesso" de "estar a ser feito o que tinha de ser feito"
avalia-se pelo facto da pobreza atingir em 2012, 24,7% da
população em relação ao nível de 2009; 661
694 pessoas tinham prestações em atraso; 15% das famílias
corria o risco de ficar sem nada por dívidas. Depois disto a
situação só terá piorado.
Para se ter uma perceção para onde vai o dinheiro, podemos
verificar com base nos relatórios do Banco de Portugal que o saldo do
que sai do país em juros privados, dividendos, lucros e
transferências com a UE atingiu de 2000 a 2013 (inclusive) um total de
cerca de 11 mil milhões de euros, isto é, em média cerca
de 715 M, porém de 2007 a 2013, atinge o dobro, mais de 1 400
M por ano.
[3]
A estes valores devemos somar os juros pagos pelo Estado: entre 2000 e 2013, 69
500 M, uma média de mais de 4 600 M ano, agravando-se nos
três anos de "ajuda" da troika para 7 100 M. Note-se que
desde a entrada para o euro em 2000, os défices do Estado acumulados
atingiram 118 200 M, o Estado pagou de juros 69 500 M, porém
a dívida pública passou de 61 500 para mais de 210 500 M!
Chamam a isto "ajustamento". É tão só o processo
aplicado em países sujeitos ao neocolonialismo.
6 CORTAR NA DESPESA
E não aumentar impostos, proclamam propagandistas da austeridade.
Para estes "cortar na despesa" é reduzir salários da
função pública e prestações sociais do
Estado, ao mesmo tempo que com o aumento de impostos e taxas cresce a pobreza e
se destroem as camadas médias. Eis o que é repetido à
exaustão, pois não há alternativa. A CGTP e os partidos
à esquerda do PS têm apresentado propostas de cortes na despesa
sem causar austeridade. Alguém as viu serem apresentadas e discutidas na
comunicação social?
Vejamos. A renegociação da dívida permitiria libertar 5
600 M (Paulo Sá, PCP, na AR em 22/11/2013); em 2013 foram
entregues por conta das swap 1 008 M existindo 1 200 M de perdas
potenciais neste instrumento financeiro que o Supremo Tribunal de
Justiça confirmou ser uma dívida ilegítima. Em 2012 os
benefícios fiscais às SPGS, escondidos pelo governo, mas revelado
pelo Tribunal de Contas, ascenderam a 1 045 M.
Relativamente ao orçamento de 2014 a CGTP elaborou um estudo em que sem
a conhecida "austeridade" poderia haver um aumento de receita do
Estado de 10 313,5 M. Tratava-se nomeadamente de tributar o grande
capital, grandes lucros, as transferências financeiras, progressividade
do IRC. O documento previa também um desagravamento fiscal sobretudo
sobre o IRS e o IVA permitindo aumentar o rendimento disponível das
famílias em 3.482,4 M, ou seja, um saldo de 6.831,1 M.
[4]
Mesmo que apenas 80% daquele montante se concretizasse, não seria
necessária mais austeridade em 2014, seria possível para repor o
que foi anteriormente cortado ("roubado") e concretizar investimento
público produtivo. Em abril de 2013 também a CGTP tinha elaborado
um estudo com um aumento da receita (então 10 198 M) e
redução da despesa, no valor de 10.373 M, com
poupança nos juros da dívida, eliminação da
sobretaxa da "ajuda" da troika (1.744,9 M),
eliminação de potenciais perdas do Estado com o BPN,
eliminação dos benefícios fiscais e da
dedução de prejuízos no sector financeiro,
redução da TIR das PPP rodoviárias.
[4]
Perante tudo isto, o que perturba os que "falam verdade", são
os "asilados do Estado": os funcionários públicos e os
que têm direito a pensões e outras prestações
sociais. Trata-se de uma total insensibilidade não entendendo que o que
dizem é um insulto à dignidade de quem trabalha ou trabalhou toda
a vida. É esta a ética do dinheiro e o dinheiro da ética.
Notas
1- Os meus primeiros anos, Winston Churchill, Ed Guerra e Paz, p. 142 e 82
2-
Tenth review under the extended arrangement and request for waivers of applicability of end December performance criteria
, staff report; p. 23, 25, 21, 24, 32, 34, etc. ;
FMI / Troika: prosseguir a destruição do país
, Daniel
Vaz de Carvalho,
3- Com base em dados elaborados por Carlos Carvalhas para um
colóquio sobre a renegociação da dívida, na AR,
promovido pelo PCP, segundo Relatórios do Banco de Portugal.
4 - Propostas da CGTP-IN Para a Política Fiscal, Por uma
repartição justa dos rendimentos e da riqueza, Contra a
Exploração e o Empobrecimento, 25 de Outubro de 2013; Propostas
da CGTP in Contra a Exploração e o Empobrecimento, Abril 2013.
[*]
Autor de "Girassóis", uma saga de antes,
durante e depois do 25 de Abril. A obra pode ser obtida na secção
livros para descarregamento
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Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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