A luta contra a UE e a libertação dos povos:
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"Só quem se mexe sente as correntes que o prendem".
Rosa Luxemburgo
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A solidariedade internacionalista para com o povo grego e a sua justa luta
contra a austeridade (nome comummente atribuído às
imposições imperialistas da União Europeia) não se
exprime de forma correcta se tivermos uma posição
sectária, de crítica pela crítica, para com o Governo do
Syriza. É uma verdade indiscutível. Como é verdade que
também não se é internacionalista defendendo esse mesmo
Governo contra todas as evidências de capitulações, recuos,
e traições a promessas eleitorais e a princípios
óbvios de uma política de esquerda. A unidade das forças
de esquerda, indispensável à derrota da investida capitalista,
deve conservar-se com firmeza, certamente. Não deve conservar-se a todo
e qualquer preço. E o preço de abdicar da crítica ao
abandono de elementos incontornáveis e indiscutíveis de uma
política de esquerda
[1]
devemos, todos os que nos reclamamos da esquerda e nos posicionamos contra a
opressão ao lado dos dominados, recusar-nos terminantemente a pagar.
Vamos a factos: logo no dia 11 de Fevereiro, na reunião do
Eurogrupo,
quando o Governo grego contava meros 16 dias de vida, Yanis Varoufakis
esclarecia os parceiros europeus de que "[n]o que respeita às
privatizações, o executivo liderado por Alexis Tsipras afirma-se
"totalmente não dogmático". "Estamos prontos e
dispostos a avaliar cada projeto pelos seus próprios méritos.
Notícias como aquelas que anunciam a reversão da
privatização do porto Pireus não poderiam estar mais longe
da verdade""
[2]
Nesse mesmo documento, Varoufakis fez ainda saber que o aumento do
salário mínimo nacional grego, medida proclamada pelo Syriza no
dia a seguir à sua eleição, seria afinal de contas
aplicado gradualmente, apenas a partir de Setembro, de comum acordo entre
trabalhadores e patrões, e com compensações fiscais para o
patronato em sede de contribuição para a segurança social,
de modo a conservarem a sua competitividade, enquanto brindava os seus colegas
com uma declaração de amor, rica de significado e de
consequências, a que adiante regressaremos: "a Europa é
una e
indivísivel, e o Governo grego considera que a Grécia é um
membro permanente e inseparável da União Europeia e da nossa
união monetária (...) Alguns de vós, sei-o, ficaram
desagradados com a vitória de um partido de esquerda, de esquerda
radical. A esses, tenho a dizer: seria uma oportunidade
desperdiçada
verem-nos como adversários. Somos europeístas dedicados.
Preocupamo-nos profundamente com o nosso povo, mas não somos populistas
que prometam tudo a toda a gente. Mais do que isso, podemos levar o povo grego
a um acordo que seja benéfico para o europeu médio"
[3]
. Se já encontrávamos aqui diversas cedências e
traições às justas aspirações do povo grego
na sua luta pela emancipação do garrote da troika, e a
insinuação de uma predisposição a todos os
títulos inadmissível, a carta seguinte de Varoufakis, escrita a
18 de Fevereiro, é já um resvalar absoluto, indecoroso,
vexatório, para a capitulação em toda a linha:
Varoufakis,
eleito para derrotar a troika, propõe a "supervisão no
quadro da UE e BCE e, no mesmo espírito, com o FMI durante a
vigência do atual acordo"; o Syriza, uma semana antes propunha um
plano de aumento salarial já tíbio, já amedrontado,
já antipopular (pois compensava os aumentos de salários com menos
impostos para os patrões), deixa implicitamente cair essa medida quando
se compromete a evitar "ações unilaterais que
enfraqueçam as metas fiscais, a recuperação
económica e a estabilidade financeira"; o Syriza, que durante anos
e anos batalhou e fez elemento central da sua luta o combate à ditadura
da dívida, a usura, a especulação, em nome de uma
reestruturação que expusesse e levasse ao repúdio da
componente ilegítima da dívida grega, recua, nesta carta, ao
ponto de prometer que as "autoridades Gregas honram as
obrigações financeiras para com todos os credores"
[4]
! Todas e cada uma das medidas do Syriza são deitadas por terra no
período ínfimo de uma semana, sem que tenha faltado sequer a
suprema vergonha de o Syriza ter proposto, e feito eleger como Presidente da
República, Prokopis Pavlopoulos, militante da Nova Democracia, grande
promotor do FRONTEX e de uma política de mão pesada contra os
imigrantes ilegais. Trata-se ainda do homem que estava em funções
quando foi assassinado a sangue frio pela polícia o jovem de 15 anos
Alexandros Grigoropoulos, durante uma onda sublevações
anarquistas.
Mesmo dentro do Syriza, algumas vozes se têm levantado contra este rumo
político. O membro do Comité Central do Syriza, Stathis
Kouvelakis, escreveu num artigo recente que "a implementação
das medidas fundamentais do programa eleitoral do Syriza de Salónica
ficam sujeitas à aprovação prévia dos credores, o
que corresponde de facto à anulação do programa.
Além disso, reconhece os termos odiosos dos acordos com os credores,
dessa forma enfraquecendo a posição negocial da Grécia
sobre essa questão". O mesmo autor faz ainda um reparo que,
cotejado com a "declaração de amor" europeísta
de Varoufakis citada acima, nos fornece a chave para deslindarmos o problema
crucial da derrota do Syriza: "[t]odos os argumentos
tranquilizadores que
circularam nos últimos anos acerca de um bluff europeu, acerca da
possibilidade de derrotar a austeridade dentro da eurozona, de separar os
acordos com os credores dos memorandos, de soluções na linha da
conferência de Londres de 1953 sobre a dívida alemã (quer
dizer, de uma reestruturação favorável ao devedor com o
acordo do credor) por outras palavras, os elementos constituintes da
narrativa do "bom euro" entraram todos em colapso."
[5]
Aqui chegados, encontramos o ponto fundamental da discussão. É
extremamente simplista, e em nada elucida quem acompanha o debate, reduzir o
que se passa na Grécia a uma discussão moral sobre a falta de
coragem do Syriza. Há traições, recuos,
capitulações e derrotas que devem ser tratadas pelo nome. Isso
é uma questão. Outra, que é a que importa, é a
análise dos motivos subjacentes a essa mesma derrota. E é de todo
evidente que o motivo central da derrota do Syriza foi, e será no caso
de qualquer partido que perfilhe a grelha de leitura da euro-esquerda, a
crença, que francamente chega a ter semelhanças com a
religiosidade, nas instituições europeias, no projecto europeu,
na natureza intrinsecamente solidária da União Europeia, e demais
patacoadas. A União Europeia, digamo-lo com todas as letras, é um
utensílio de subjugação, de dominação, de
exploração e de desapossamento da liberdade e da soberania dos
povos periféricos pela burguesia dos seus potentados centrais, sobretudo
a alemã. Qualquer luta que se trave contra ela pressupondo a bondade da
UE, ou simplesmente a neutralidade da UE, levando a discussão para as
suas instituições, promovendo alterações dentro do
seu circuito de tratados, acordos, e demais parafernália
jurídico-diplomática, apelando ao bom coração dos
seus burocratas e à solidariedade dos Governos do centro imperialista
para com os povos dominados, vai espatifar-se contra uma parede. Dentro da UE
é-se, e ser-se-á sempre, escravo da burguesia alemã. A
libertação implica romper com a UE. A discussão de como se
pode permanecer na UE e ser um Estado livre e soberano roça o
ridículo.
Que a derrota da euro-esquerda grega, forçada a recuar em toda a linha,
elucide o povo grego, e elucide todas as organizações em luta
contra a opressão da chamada austeridade, para esta
evidência:
nenhuma luta em nome dos interesses dos trabalhadores, em nome dos interesses
das classes populares, em nome da sua libertação, da garantia de
que viverão numa sociedade mais justa e poderão almejar a
construir o socialismo e o comunismo será possível sem que,
primeiro e antes de mais, tenham quebrado as correntes que os prendem à
União Europeia. Bem sabemos que, como dizia Rosa Luxemburgo, só
quem se mexe sente as correntes que o prendem. Os gregos mexeram-se. E
sentiram-nas nos pulsos, nas pernas, detendo-os e mantendo-os no redil. Sabem
que existem. Sabem que importa parti-las para que se livrem do cárcere
em que a UE se tornou. Para com essa luta, para com essa
consciencialização, a minha mais absoluta solidariedade
internacionalista.