Organização popular e eleitoralismo
por João Vilela
A vitória do Syriza, enquanto facto político, vale muito pouco.
Mas vale enquanto elemento de um processo. Dificilmente sairá uma
transformação assinalável da política grega
e tanto menos da correlação de forças à escala
europeia desta vitória eleitoral: mas ela, e a
reacção a ela, elucidarão com rapidez aqueles que,
infundadamente, acreditam na possibilidade de uma União Europeia ao
serviço dos trabalhadores e dos povos, contanto que refundada no seu
projecto, ou devolvida a uma mítica pureza inicial.
Tenho escrito amiúde sobre a euro-esquerda e a perniciosidade da sua
tese de que a União Europeia é um instrumento que pode,
igualmente, ser utilizado a favor dos povos ou a favor dos capitalistas,
dependendo os beneficiários das suas políticas da boa vontade ou
falta dela de quem dirige a instituição
[1]
. Tal teoria, que escamoteia a existência de uma sociedade de classes e
uma permanente luta de classes, ou que imagina que a política, os
Estados, e as organizações inter-estatais são neutrais e
não estão nem ao serviço do capital nem ao serviço
dos trabalhadores, é o retomar na íntegra dos postulados
oportunistas da Segunda Internacional às portas da I Grande Guerra,
contra os quais Lenine se bateu com todas as forças. Retomada essa que,
de resto, tem motivos em muito similares: se naquela época, como Lenine
escrevia, "[o] caráter relativamente "pacifico" do
período de 1871 a 1914 alimentou o oportunismo primeiro como estado de
espírito, depois como tendência e finalmente como grupo ou camada
da burocracia operária e dos companheiros de jornada pequeno-burgueses.
Estes elementos só podiam submeter o movimento operário
reconhecendo em palavras os objetivos revolucionários e a tática
revolucionária. Eles só podiam conquistar a confiança das
massas através da afirmação solene de que todo o trabalho
"pacifico" constitui apenas uma preparação para a
revolução proletária. Esta contradição era
um abcesso que alguma vez haveria de rebentar, e rebentou."
[2]
, hoje vivemos novamente o fim de um período ainda maior de relativa paz
social na Europa, datando, com excepção de episódios de
irrupção violenta nos anos 60 e 70 sempre derrotados pela
burguesia, de 1945 até agora. Paz social, convém esclarecer,
mantida com férrea solidez por uma mesma "camada da burocracia
operária", empenhada num verbalismo pretensamente
revolucionário acompanhado de uma prática política
complacente com a exploração e adaptada a ele. Essa camada,
aliás, conseguiu inclusivamente transformar a sua complacência e
subjugação numa "via pacífica para o socialismo"
[sic], crismando-a com o nome de eurocomunsimo e inutilizando sem
remédio diversos partidos comunistas. Os "companheiros de viagem
pequeno-burgueses" não tardaram a juntar-se-lhes, mesmo se vinham,
como o Bloco de Esquerda em Portugal e algumas fracções do Syriza
na Grécia, de uma crítica pela esquerda ao movimento comunista
internacional. A natureza de classe de um movimento aflora, mais tarde ou mais
cedo, no seu posicionamento. Ou, como diz o ditado, "quem se quer bem,
sempre se encontra".
O que pretende esta tal camada da burocracia operária? Essencialmente,
na medida em que isso seja possível, conter os aspectos mais repulsivos
do capitalismo, sem comprometer a vigência desse mesmo capitalismo. A sua
função, a sua pulsão essencial, é para negociar, e
não para impor pela força da classe trabalhadora organizada. Em
razão disso, quando se vê numa posição em que chegou
ao poder com um programa que busca pateticamente propor à burguesia que
não revolucione permanentemente os meios de produção, e
permita à mal designada classe média não ir parar ao
salário mínimo, e ao merceeiro não bater com a porta da
loja para ir suplicar emprego ao dono do hipermercado com que não pode
competir que lhe dê trabalho, esta camada conciliatória da
burocracia operária e da pequena burguesia vê-se perante um
dilema: ou aplicar o programa que a burguesia já tinha, ou aplicar o
programa do proletariado revolucionário. E cederá sempre à
classe que tiver mais força para lho ditar.
A compreensão deste fenómeno é absoluta por parte da
burguesia e do imperialismo. Deram provas claras disso mesmo nos últimos
dias. Mesmo perante um Governo que só quer negociar, que promete honrar
todos os compromissos com o BCE e o FMI, que assegura querer ficar no euro, que
faz juras de amor eterno à União Europeia, e se aliou à
direita conservadora em busca de uma plataforma governativa cujo ponto de
unidade seja a reestruturação da dívida
[3]
, a reacção foi inclemente: Schäuble e Merkel dizem que a
Alemanha não se deixa chantagear; Vítor Constâncio
ameaçou fechar a torneira do BCE; o ataque especulativo à bolsa
ateniense, a fuga de capitais, as invectivas, as pressões, tudo, numa
reacção absolutamente destemperada a duas ou três medidas
que em nada comprometem o essencial das políticas prosseguidas pelos
governos anteriores (cessação das privatizações em
curso sem qualquer nacionalização, aumento gradual do
salário mínimo, fornecimento gratuito de electricidade a
famílias carenciadas), atestam que o que se passou efectivamente
não é o que realmente importa nas contas da burguesia, mas sim o
que está revelado no que se passou: o crescente descontentamento, ainda
desordenado, ainda desorganizado, ainda inconsciente das suas tarefas
históricas e do modo de as concretizar, que amplas camadas das classes
populares demonstraram ao votar expressivamente no Syriza. Na medida em que o
proletariado grego souber transformar o exaspero que esta votação
expressou em força material organizada, no plano da
organização sindical, das organizações de
moradores, das organizações de juventude, etc., conseguir
fazê-lo (o Syriza, prova-o o evidente eleitoralismo das suas proposta e a
irrelevância das suas posições na organização
popular, não o fará), o Governo pequeno-burguês, hesitante,
tremebundo, agora eleito, pode ser tentado a assumir de forma consequente a
causa do proletariado, com tudo o que isso comporta de ruptura
anti-imperialista com a UE e o euro. A burguesia percebe isso. O Partido
Comunista da Grécia, cuja linha de organização de
movimentos populares aparece bem expressa no seu Programa Político
[4]
, também percebe isso. Aquele que conseguir, primeiro, concretizar as
suas tarefas,sairá vitorioso.
Retira-se uma importante lição desta circunstância em que,
para pasmo de alguns, o partido vencedor de uma eleição se
vê ensanduíchado entre a necessidade de aplicar o programa ou de
um ou de outro dos partidos derrotados numa eleição
[NR]
. Como se revela descarnadamente como a aplicação de qualquer dos
dois programas depende de tudo menos da vontade desse mesmo Governo. O plano
político expressa e auxilia a luta de uma classe contra outra. O Estado
é o instrumento da dominação de uma classe por outra. E o
Estado burguês da Grécia está montado para dominar o
proletariado em nome da burguesia, e não para fazer o contrário:
o que torna ainda mais determinante que a organização de massas
dos trabalhadores e das classes populares da Grécia redobre
esforços se quer empurrar o Governo Syriza um milímetro que seja.
Porque a única arma que o proletariado tem, teve, e algum dia
terá, é a sua organização. O voto, o protesto, a
manifestação, a petição, a greve, seja que forma de
luta for, sem a organização de massas, serve-lhe de coisa
nenhuma. Organização voltada para a revolução, e
nunca, jamais, em tempo algum, apenas para a vitória eleitoral, a qual,
como vemos, nunca garante, por si só, a aplicação de
programa político nenhum. Um programa é um conjunto de ideias, e
as ideias quando são separadas das condições materiais em
vez de serem retiradas delas servem talvez para a literatura, mas não
têm nenhuma utilidade política.
01/Fevereiro/2015
(1) Conferir, por exemplo aqui:
conscienciavisceral.wordpress.com/...
(2) Lenine,
O Oportunismo e a Falência da II Internacional
. Disponível aqui:
www.marxists.org/portugues/lenin/1916/01/falencia.htm
(3) Muito à semelhança, de resto, ao que por cá foi feito
com
o manifesto dos 70: é bastante curioso verificar como, separados pelo
binómio do conservadorismo e do progressismo, diferentes representantes
de diferentes fracções da pequena burguesia se associam quando o
interesse objectivo da mesma classe é descarnadamente posto em cima da
mesa.
(4) "The labour movement, the movements of the urban self-employed and
farmers and
the form that their alliance takes on (the People's Alliance) with
anti-monopoly and anti-capitalist goals, with the vanguard activity of the
KKE's forces, in non-revolutionary conditions, constitute the first form for
the creation of the revolutionary workers' and people's front in revolutionary
conditions. The working class and popular masses, through the experience of
their participation in the organization of the struggle in a direction of
confrontation with capital's strategy, will be persuaded of the need for their
organization and confrontation to take on the character of a full and
multi-facetted confrontation with the economic and political dominance of
capital.". Tradução: "O movimento dos trabalhadores, o
movimento dos auto-empregados urbanos e do campesinato, e a forma que toma a
sua aliança (a Aliança Popular), com objectivos antimonopolistas
e anticapitalistas, com a actividade de vanguarda das forças do PC
Grego, em condições não-revolucionárias, constitui
a primeira forma da criação da frente revolucionária e
popular em condições revolucionárias. A classe
operária e as massas trabalhadoras, através da experiência
da sua participação nas organizações da luta numa
direcção de confronto com a estratégia do capital
ficarão persuadidas da necessidade de a sua organização e
confrontação tomarem o carácter de uma
confrontação multifacetada com a dominação
política e económica do capital". Ver aqui, em inglês:
inter.kke.gr/en/articles/Programme-of-the-KKE/
[NR] O programa do próprio Syriza, traduzido para francês, pode
ser visto em
www.legrandsoir.info/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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