O pior que há em nós
por João Carlos Lopes Pereira
[*]
Todos nós ou quase temos um aparelho de televisão
em casa. Pelo menos. Suponho que a grande maioria dos que possuem essa
máquina, terá acesso a mais do que o serviço
básico, pelo que poderá assistir às diversas séries
que canais como o FOX e o AXN, entre outros, transmitem, praticamente 24 horas
por dia. Também o National Geographic se vai transformando numa coisa
que já pouco tem que ver com o
Geographic,
mas muito isso, sim com o
American Way of Life,
passando, cada vez com mais frequência, séries onde o tema
é, assim, ou assado, a cavalgada dos norte americanos, já
não pelas pradarias da América do Norte, empurrando os
peles-vermelhas os selvagens para fora das suas terras,
condenando-os metodicamente à penúria, à doença e
à extinção (ficaram uns resíduos decorativos, ou
folclóricos), mas a cavalgada é a que hoje fazem por esse mundo
fora, que encaram como aquela planície onde, como faziam há
duzentos e tal anos, têm o direito de afastar da frente de
exterminar seja lá como for, quem se opuser aos seus
desígnios, coisa que tem, na génese, um apetite desenfreado por
deitar a mão ao do alheio.
Aqui chegados, convém acrescentar que estes e outros canais, ditos de
entretenimento, também nos oferecem filmes, invariavelmente
norte-americanos, onde a história é sempre a mesma. No lugar dos
peles-vermelhas já estiveram, em tempos, os terríveis
soviéticos, com espiões do pior que havia naquela altura, tendo
as nacionalidades dos
maus
variado, ao longo dos tempos, conforme a conjuntura internacional o aconselha,
passando por pérfidos orientais e pela guerrilha sul-americana
onde os cubanos, por exemplo, são pintados como gente do piorio
até que se chegou, nos dias que correm, aos árabes desalinhados,
tanto mais malvadões quanto mais petróleo tiverem no quintal e
não quiserem oferecê-lo aos brancos civilizados. Nunca há,
por exemplo, sauditas maus, só os que degeneraram, como o Osama Bin
Laden, mas esse, mesmo assim, era uma excelente pessoa quando combatia, no
Afeganistão, os malditos soviéticos.
Como pano de fundo destas coloridas injecções ideológicas,
a mais desbragada violência, mas diga-se, porque é verdade, que
nem sempre foi assim.
O antigo herói norte-americano, aquele que nos vendiam a partir do
início da segunda metade do século passado, era um herói
romântico, fosse ele sorridente ou carrancudo. Tinha os seus defeitos,
é certo, mas as virtudes vinham sempre ao de cima mesmo no final.
Às vezes, até morria em nome dos valores(?!) norte-americanos,
forma diga-se relativamente inteligente de nos entrar nos
neurónios e anestesiá-los.
Hoje, não. Hoje, impera a mais absoluta indigência mental. O
guião é sempre o mesmo. De um lado, os bons ou seja: os
norte-americanos e os seus amigos; do outro lado, os maus, dependendo do que
interessar no momento, sendo que o está na moda, como já se
disse, são os árabes; o cenário, tanto pode ser uma cidade
iraquiana, ou afegã, mas, também, pode ser uma grande cidade dos
EUA, onde os desalmados querem fazer detonar uma bomba maior do que a de
Hiroshima (que, juntamente com a de Nagasaki foram as únicas que,
realmente, mataram alguém); a acção, já se sabe,
mete sempre e obrigatoriamente várias
perseguições com imensos automóveis, por entre um
tráfico intensíssimo, despiste brutais, cento e trinta e nove
explosões, setenta e oito colisões e nunca menos de oitenta e
dois capotamentos, podendo um ou outro ser o mesmo, filmado de vários
ângulos. Muito sangue, tiros, socos, pontapés, golpes altos,
baixos, médios, não interessa, o que interessa é que
tenham a estética e a eficácia dos mestres em golpes. A
história; havendo os bons e havendo os maus, sendo também de
bom-tom incluir um ou dois traidores norte-americanos normalmente muito
feios, ruins e estúpidos e desde que as explosões sejam
muitas e enormes e, no fim, o herói fique com a rapariga, mais nada
é preciso.
Agora, a National Geographic anda a transmitir uma coisa destas, com uns
simpáticos rapazes norte-americanos, homens muito normais e educados,
alguns até usam óculos e tudo, casados com senhoras
gentilíssimas, um ou outro já com filhinhos pequeninos e
amorosos, e que, para salvar a humanidade (a humanidade, os valores ocidentais
estão a perceber? não os interesses vitais dos
ianques), se vêem obrigados, coitados, a prejudicar a sua vida para irem
todos, como irmãos, combater num país árabe que
está infestado de árabes muito maus, da espécie que
já nasceu com aquela de odiar tudo o que é branco, especialmente
se
sepikar ingliche
e tomar banho todos os dias.
E lá vem a violência das explosões, dos seus estragos nas
viaturas lindíssimas dos invasores que disse eu?! Invasores?!
Perdão! Queria dizer: salvadores tudo por culpa dos maus, por
inveja, por capricho, gente que não tem filhos, nem mulheres loiras e
muito bem penteadas e muitíssimo elegantes, como têm os
heróis brancos que estão ali, apenas, para matar em nome do
BEM
.
Já perceberam? Não? Então esperem pela próxima
acção de «libertação» que esta
série anuncia. Creio que a TV, depois, quando for a sério,
dará em directo. As audiências serão enormes e, pelo menos
por cá, pela nossa santa civilização, a
destruição do
MAL
que a série tão bem caracterizou será
aplaudida de pé.
Mas nas restantes séries que andam por aí a granel, com uma ou
outra variante, o sumo é sempre igual. Mesmo naquelas em não
entram os maus ou quando os maus são as réplicas dos
criminosos que os norte-americanos têm por lá aos pontapés
a constante visual é sempre a extrema e a mais brutal
violência. Para o norte-americano comum, a violência, o
músculo, o desprezo pelo outro, pela vida, é a base do sucesso.
Está-lhes nos genes.
- Vai-te a eles, campeão! Esmaga-os! É assim que os pais
estimulam os filhos nos EUA.
E o pior é que este modo de ver a vida ou o mundo, ou a
espécie está a ser exportado dos EUA, em toneladas
inimagináveis, para dentro de cada um de nós.
Desde o estarmos a enxertar o nosso idioma com um número cada vez maior
de vocábulos do dialecto que os norte-americanos usam enchia uma
página inteira reproduzi-los aqui até ao assimilarmos os
seus usos e costumes, onde matar ou agredir faz parte do caminho de um homem,
caso almeje ao sucesso a violência transformada numa coisa
banalíssima eis que nos estamos a transmutar, clara e
inequivocamente, em autómatos ao serviço de um Império
que, de certo modo, a ficção norte-americana já antecipou.
Não me espanta, por isso, que muitos portugueses se estejam a
transformar em seres cada vez mais básicos, mais gordos e mais violentos.
Já não se trata, meus amigos, de
lavarem-lhes
os cérebros. Trata-se, autenticamente, de
levaram-lhes
os cérebros.
Se não reagirmos a isto, vai sobrar, apenas, o pior que há em
nós.
Do mesmo autor:
A indiscutível ditadura dos banqueiros
Terror, terrorismo, terroristas
[*]
Ex bancário e autarca , autor de "A mosca na vidraça" e
outras obras.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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