A indiscutível ditadura dos banqueiros
por João Carlos Lopes Pereira
[*]
Diz-se que o direito de propriedade é o direito real que dá a uma
pessoa ou entidade (dito «proprietário») a posse de uma coisa,
em todas as suas relações e consequências. É, por
isso, o direito, ou a faculdade de usar, gozar e dispor dessa coisa,
além do direito de reavê-la de quem injustamente a possua ou
detenha. É um direito absoluto, perpétuo e exclusivo.
Por outro lado, segundo a filosofia política e económica, as
regras, as disposições e as directivas da União Europeia,
que são do mais neoliberal que podia haver, o Estado deve ser a entidade
que menos património pode ter. Aliás, nenhum património na
posse do Estado seria, para ela, UE, o ideal. Pelo contrário, os
privados pessoas e entidades podem possuir tudo aquilo a que
conseguirem deitar a mão, não havendo outro limite para a
possessão a não ser o céu. Tudo deve ser privado, a
começar na banca e a terminar no ar (logo que haja tecnologia que torne
o desiderato possível), passando pela água.
Mas serão as coisas exactamente assim? Será assim que elas se
passam, na prática, para todos nós e para toda a propriedade?
Logo veremos que não.
Comecemos pelo caso de um banco e de uma companhia aérea. Nacionalizar
um banco que esteja de boa saúde não é possível.
Diz a UE que é roubar o banqueiro. Mas nacionalizar um banco falido
é coisa perfeitamente aceitável. Os lucros para os banqueiros; os
prejuízos para os contribuintes do costume. Porém, assim que
nós, os contribuintes, resgatarmos o banco, nele investindo milhares de
milhões de euros, ele deverá ser entregue, a qualquer
preço, a um novo banqueiro. Aqui, os proprietários de facto
os tributados que salvaram o banco com o dinheiro dos seus impostos
não têm o direito de ser os seus legítimos donos,
pois esse direito é consignado a um outro banqueiro privado, ainda que
não tenha coberto, sequer, o valor que os contribuintes pagaram (vide
BPN, por exemplo). Significa que todos os cidadãos foram obrigados a
oferecer a outra pessoa o banco que compraram. A isto chama-se um acto de pura
espoliação, e por isso, totalmente desconforme com as mais
elementares bases e pressupostos não só do direito, mas de um
regime democrático. É saque desenfreado. Puro e duro.
É inquestionável, deste modo, que a noção de
propriedade, posse, utilização, gozo e tudo aquilo que resulta da
aquisição de um bem, varia de acordo com o proprietário,
podendo valer tudo, ou podendo nada valer. Foi o caso do Banif, como foi o caso
do BPN.
Ora, o Estado pôde investir o dinheiro dos contribuintes para salvar
bancos privados os tais BPN e Banif, por exemplo mas já
não pôde investir o dinheiro dos contribuintes para salvar uma
companhia aérea que era do Estado neste caso, a TAP. Ou seja: que
era dos contribuintes.
Chega-se à conclusão que o direito comunitário não
é assim tão direito quanto isso. Parece mais um direito feito
ou encomendado por banqueiros/Investidores, do que um direito
feito a pensar na vida, na saúde e na felicidade de milhões de
seres humanos.
Mas generalizemos ainda mais esta filosofia comunitária no que respeita
à consagração da dominação de tudo pelo
privado, para podermos ver até que ponto ela é ou
não é uma coisa séria e plena de regras equitativas
ou sérias, imparciais e, principalmente,
democráticas.
Vejo que os fundadores da União Europeia,
Maurice Schumann
(francês [nascido em Luxemburgo]),
Konrad Adenauer
(alemão) e
Alcide de Gasperi
(italiano), todos liberais convictos, eram todos eles, também,
democratas-cristãos. A sua visão do liberalismo considera a
liberdade individual (não de todos, como estamos a ver e melhor
veremos mais à frente) como sendo o mais importante valor cultural dos
europeus e do cristianismo. De acordo com essa visão segundo os
fundadores da UE a função dos estados soberanos europeus
é proteger os direitos de propriedade e a economia de livre mercado numa
Europa de fronteiras abertas, permitindo desta forma o livre comércio de
bens, serviços e ideias.
Tudo muito bonito, a principiar por isto:
"A função dos estados soberanos europeus é proteger os
direitos de propriedade".
Mas face ao que disse atrás, quando se fala nos direitos de propriedade,
o que apetece logo questionar é: mas direitos de propriedade, de quem?
E a razão da pergunta é muito simples. É que sendo todos
nós proprietários de alguma coisa uns, de muitas; outros,
de poucas, podendo ser, neste caso, uma pequena reforma, ou as poupanças
de uma vida parece-me que o princípio de protecção
dos direitos de propriedade só se aplica a quem for, realmente, um
proprietário gigantesco. Daqueles que dominam os próprios estados.
Será, por exemplo, que eu como qualquer um de nós
sou proprietário absoluto do meu dinheiro, legalmente adquirido, seja o
meu salário, seja a minha reforma, sejam as minhas poupanças?
Será que Estado protege o meu direito de proprietário desses
bens? Mas será mesmo?
Então, porque será que um banqueiro pode ser dono de um banco que
eu comprei, porque o paguei em sociedade com todos os outros cidadãos
contribuintes do meu país, mas que, feitas as contas, não posso,
sequer, tomar posse dele, ainda que, face à lei que defende o direito
à propriedade, ele deveria ser incontestavelmente meu? E o meu
salário, e a minha reforma, e as minhas poupanças serão
coisas minhas, privadas, sagradas, intocáveis? Mas serão mesmo?
Para se compreender o nexo de todas estas questões, enunciarei algumas
perguntas que me parecem legítimas dos pontos de vista social e
político, como legítimas e adequadas me parecem as respostas que
lhes dou. Assim:
Queremos acabar com as crises financeiras?
Queremos acabar com as "bolhas" disto, daquilo e daqueloutro?
Queremos acabar com a falta de investimento?
Queremos acabar com o défice e com a dívida pública?
Queremos acabar com o desemprego?
Queremos uma economia saudável?
Queremos?
Então, acabemos com a banca privada. Nacionalizemos a banca.
[NR]
Ponhamos a economia ao serviço do país e das pessoas, em vez de
pormos as pessoas e o país ao serviço da economia de mercado
dos mercados, querem eles dizer que é o outro nome do
Capital Financeiro (que não é o Sistema Financeiro) ou dos
Investidores.
Porquê?
Porque acabaremos, assim, com os mecanismos que permitem a transferência
da riqueza produzida no(s) país(es) para os bolsos dos chamados
Investidores, o que depaupera as finanças nacionais e obriga o(s)
país(es) a endividar(em)-se e a pagar(em) juros que o(s)
subjugará(ão)
ad eternum per secula seculorum.
Por outro lado, se a banca for estatal, o dinheiro não desaparece em
offshores, nem em rioforte nenhum, nem em créditos para os amigos (que
não é para pagar), nem em quadros Miró.
Acabem, em suma, com a ideia falaciosa, sofística, que os banqueiros e o
Sistema Financeiro são a mesma coisa. Um banco faz parte do Sistema
Financeiro, mas não passa disso. Um banqueiro não é dono
de outra coisa que não seja o seu capital. O Capital Financeiro. Os
banqueiros não podem, portanto, ser os donos do nosso dinheiro o
que lhes demos a guardar e o que a UE exige agora que lhes demos, transferindo
para nós as responsabilidades e os custos de crimes que não
cometemos.
De facto, desde o dia 1 de Janeiro de 2016, a mesma União Europeia que
defende que e cito outra vez: "
É função dos estados soberanos europeus proteger os
direitos de propriedade
", determina que as minhas poupanças (que são propriedade
minha), possam ser utilizadas para salvar o negócio privado de um
banqueiro. Isto é: para salvar um banco privado, deixo de ter direito
absoluto, perpétuo e exclusivo sobre a minha propriedade. Sobre o meu
património. Para isso, já o direito de propriedade deixa de ser
um direito real que dá a uma pessoa a posse de uma coisa, em todas as
suas relações e consequências. Deixa de ser um direito
absoluto, perpétuo e exclusivo.
Dizendo de outra maneira: eu não sou dono do meu dinheiro. Eu não
tenho protegido o direito de considerar meu e, portanto,
intocável aquilo de que sou proprietário (as minhas
poupanças, neste caso), já que a UE considera que esse
património está à mercê do banqueiro a quem as
confiei, seja para lhes dar descaminho (como deram nos BPN, no BPP, nos BES e
no Banif), seja, depois, para lhe salvar o negócio.
Não há prova mais clara, nem mais elucidativa, nem mais
acrescente-se descarada de como esta Europa não é uma
Europa dos cidadãos, nem uma Europa democrática. É uma
Europa do Capital Financeiro, o qual tem rédea solta para dominar o
Sistema Financeiro e o que é pior para ter nas mãos
o próprio Poder Político e, através dele, os povos e os
países.
Isto é: um banqueiro pode fazer desaparecer o dinheiro que lhe confiei;
um banqueiro pode ficar com um banco que eu salvei com os meus impostos; e um
banqueiro ainda pode, para além disso, ficar com os nossos
depósitos, acima de determinado valor, para resgatar o banco que ele
afundou.
Resumindo: um cidadão trabalhador não tem direito a ser
proprietário nem do fruto do seu trabalho; mas um banqueiro tem direito
a deitar mão ao meu património para seu proveito próprio.
Chamem a esta Europa o que quiserem. Mas, por favor, não lhe chamem
nem a brincar democrática.
A solução? Repito: retiremos ao Capital Financeiro o poder de
usar em seu proveito o Sistema Financeiro. Para os mais indecisos,
peço-lhes que pensam no que nos aconteceu nos últimos anos e que
me respondam:
- A Economia Portugal, os portugueses pode estar nas mãos
de gangsters engravatados e de colarinho branco?
- Portugal e os portugueses podem estar nas mãos de gente como Oliveira
e Costa, Dias Loureiro, João Granadeiro, Ricardo Salgado e de bandos
nebulosos como os que dominaram o Banif?
- O
CAPITAL FINANCEIRO
a banca privada e os investidores podem, por isso, ter o
SISTEMA FINANCEIRO
nas mãos?
- Os políticos podem ser tão desonestos e mentirosos ao ponto de
fazer-nos acreditar que salvar um banco é salvar o Sistema Financeiro,
em vez ser, apenas, salvar o Capital Financeiro?
Só pode haver, creio eu, uma resposta honesta para isto: NÃO!
NÃO PODEM!
E, finalmente, se o meu dinheiro, apesar de meu de ser minha propriedade
me pode ser retirado para salvar a propriedade de um banqueiro,
será que a sociedade em que vivo é uma democracia? Ou não
será, se quisermos chamar às coisas os nomes que se lhes adequam,
que vivo em ditadura?
- A ditadura? Mas ditadura de quem? Perguntará alguém
muito ingénuo, ou muito distraído.
Francamente! A ditadura de quem?! A Ditadura dos Banqueiros, ora de quem
haveria de ser?
05/Janeiro/2016
[NR] A nacionalização da banca é condição
necessária mas não suficiente. Será preciso também
retirar à banca o poder que ela tem actualmente de emissão
monetária (através da concessão de crédito a partir
do nada) o qual terá de ser devolvido ao Estado.
Além disso será indispensável o controle dos fluxos
transfronteiriços de capital, bem como muitas outras medidas.
Ver também:
A punção das contas bancárias já foi legalizada
Lei 23A/2015, de 26 de Março
EU Bank Recovery and Resolution Directive (BRRD)
[*]
Ex bancário e autarca
, autor de "A mosca na vidraça" e
outras obras.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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