A historiografia branqueada do semanário Expresso

Uma história em fascículos

por Manuel Loff [*]

Manuel Loff. O Expresso está a oferecer gratuitamente aos seus leitores uma História de Portugal dividida em nove fascículos, apresentando-a como "um dos livros mais vendidos de sempre" entre os que se dedicaram à nossa história. O Expresso acha (eu não) que este é "hoje reconhecido como um dos melhores livros sobre a História de Portugal", e terá querido disponibilizá-lo a dezenas de milhares de leitores para quem é apetecível uma síntese em 900 páginas da "história de um grande país".

O livro é coordenado por Rui Ramos (RR), um historiador especializado na Monarquia Constitucional e na I República portuguesas mas que se encarregou nesta obra de cobrir também o período entre 1926 e a atualidade. As épocas medieval e moderna estiveram a cargo de dois historiadores (Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Monteiro) cujo trabalho não comentarei. Dedicarei esta e a próxima crónicas especificamente ao trabalho de RR, que concebeu e coordenou a obra e disse há dois anos que ela pretendia ser meramente "uma porta de entrada na História", e "aguçar o apetite do leitor", descrito como "exigente" (Prólogo, p. II), e "fazer com que as pessoas queiram ir ler mais" (Público, 31/5/2010). Esperemos que sim.

RR não é um historiador qualquer; a sua visibilidade pública é ajudada, como em pouquíssimos casos, pelo seu acesso às tertúlias televisivas e à imprensa, onde se tem destacado como uma das penas mais sólidas da direita intelectual portuguesa, que reivindica "o prazer da provocação intelectual e reconhece um aguçado espírito de contradição, sobretudo quando o alvo é a esquerda" (Ler, janeiro 2010). Para percebermos o que RR entende por "provocação", e em resposta a quem acha — como eu — que o seu trabalho é puro revisionismo historiográfico política e ideologicamente motivado, ele entende que "toda a História é revisionista" e nela "é necessário afirmar originalidade" ( Público, 31/5/2010).

Centremo-nos hoje na narrativa que RR faz do papel de Salazar na história. Para ele, o Estado Novo era "um regime assente (…) no monopólio da atividade legal por uma organização cívica de apoio ao Governo", e esta é a forma como ele classificará sempre o partido único da ditadura, com "a chefia pessoal do Estado" entregue a "um professor catedrático introvertido", um homem "de outra espécie", com "nada de uma personagem ditatorial" como a dos líderes da Europa fascista do tempo (pp. 627 e 638-39). Neste campo, a primeira das suas preocupações é a mais comum entre os historiadores da área de RR: desenhar um Salazar sensato e algo neurasténico, que não gostaria de uniformes (apesar da origem militar do regime e do seu caráter inevitavelmente policial e repressivo) e que nada teria a ver com Hitler, Mussolini ou Franco. O "pobre homem de Santa Comba", como o ditador se definiu a si próprio, teria "para Portugal objetivos simples" pois propunha-se "fazer viver Portugal habitualmente" e "queria instituir uma "ditadura da inteligência" para "fazer baixar a febre política" no país e "reencontrar o equilíbrio" (p. 639).

A segunda originalidade de RR decorre daqui e descola totalmente da realidade: oferecer-nos um Salazar liberal, por oposição aos republicanos de 1910 (um dos ódios de estimação de RR), que, praticamente totalitários, teriam estado empenhados em fazerem da sua "revolução" uma "transformação cultural violenta" feita por um "Estado sectário" (pp. 585-86)! Salazar, pelo contrário, queria "assentar o Estado, não na "abstração" de indivíduos desligados da sociedade e arrastados por ideias de transformação radical, mas no que chamou o "sentimento profundo da realidade objetiva da nação portuguesa"". Para RR, "a "missão" do líder" era a de "reconciliar os portugueses com essa "realidade", e ao mesmo tempo ajudá-los a adotar modos de vida sustentáveis". Em resumo, "o seu modelo implícito era o que no século XIX se atribuíra aos "ingleses", prático, "pouco sentimental": "Eu faço uma política e uma administração bastante à inglesa"" (pp. 639-40) — isto é, um Salazar primeiro-ministro da rainha Vitória... Se acompanharmos as suas crónicas no Expresso, a lição da História para a análise da crise atual parece evidente. Hoje, "a austeridade é, no fundo, a vida depois de desfeitas as últimas ilusões do passado" – exatamente como Salazar, que "tinha ambições, mas não ilusões" (RR, in Sábado, 14.1.2010), se havia empenhado em "reconciliar os portugueses com a realidade" e em "ajudá-los a adotar modos de vida sustentáveis"! E o que é que, na opinião, de RR foi insustentável no nosso passado recente? "Uma classe média de funcionários (…), uma economia de trabalhadores e empresários protegidos, e a estatização de grande parte dos serviços (educação, saúde) e da segurança social" ( Expresso, 28/7/2012).

RR leva à prática o que ele próprio estabeleceu como o fim "desta História de Portugal [o de] despertar a atenção para a importância da História como meio de dar profundidade à reflexão e ao debate público sobre o país." Para ele, "a História (…) é uma maneira de pensar" (Prólogo, p. IV). Tem toda a razão. E a sua está bem à vista.

Uma história em fascículos (2ª parte)

O Expresso decidiu oferecer gratuitamente aos seus leitores a História de Portugal em 9 fascículos, coordenada por Rui Ramos (RR). Nela, apresenta-se-nos uma ficção sinistra e intelectualmente cínica sobre a ditadura salazarista, procurando aquilo que, até hoje, ninguém na historiografia séria e metodologicamente merecedora do nome tinha tentado: desmontar a natureza ditatorial do Estado Novo. Como comecei a expor aqui há duas semanas atrás, é inaceitável que se pretenda consagrar uma leitura tão manipulada da História.

Para RR, o salazarismo era "uma espécie de uma monarquia constitucional, em que o lugar do rei era ocupado por um Presidente da República eleito por sufrágio direto e individual" (pp. 632-33), que "reconhec[ia] uma pluralidade de corpos sociais (...) com esferas de ação próprias e hierarquias e procedimentos específico", mas que só "não admitiu o pluralismo partidário" (p. 650). Nada se diz sobre o papel das eleições como simulacro de legitimação popular ou a fraude generalizada, realizada mesmo quando nenhuma candidatura alternativa se atrevia perante a do partido único, para inflacionar artificialmente a votação e simular um consenso que não existia.

É inacreditável ver produtos típicos da fascização da sociedade, importados diretamente do fascismo mussoliniano, como foram os sindicatos nacionais, as casas do povo (verdadeiras "associações de socorro e previdência" que "desenvolviam atividades desportivas e culturais") e os grémios corporativos, descritos como meras "associações" de "representação da população ativa" (p. 644), sem se escrever uma linha sobre a guerra total aberta aos sindicatos livres do período liberal, feita de prisões, deportações e mortes.

Para RR, a repressão, definidora de qualquer ditadura, "tem de ser colocada no contexto do uso da violência na manutenção da "ordem pública"". Sem citar documentos, Ramos faz aquilo que ele próprio diz que "os salazaristas fizeram sempre questão" de fazer: "Comparar os métodos repressivos [de Salazar] com a 'ditadura da rua' do PRP" (p. 652), sustentada sobre o "trabalho sujo" de "gangues chefiados por 'revolucionários profissionais'" (p. 591), empurrando o leitor a achar que a I República fora muito mais violenta que a ditadura. Esta teria sido tão generosa que muitos "conspiradores e ativistas conservaram as suas posições no Estado em troca de simples abstenção política"; contrariando quase tudo quanto se escreveu na História social e da educação do salazarismo, diz-se que "não houve saneamentos gerais de funcionários" (p. 653)! Pior terá sido a Revolução de 1974-75, em que "20 mil pessoas [se] viram afastadas dos empregos" e "pelo menos 1000 presos políticos" terão sido detidos, "7 vezes mais do que no fim do Estado Novo" (p. 732)...

Espantados? Para RR, o salazarismo, afinal, "não destoava num mundo em que a democracia, o Estado de Direito e a rotação regular de partidos no poder estavam longe de ser a norma na vida política". A democracia não existia nem na "Europa ocupada [sic] pela União Soviética", nos "novos Estados da África e da Ásia" ou "mesmo na Europa democrática", que "produziu monopólios de um partido (...), sistemas de poder pessoal (...), restrições e perversões" como "a proibi[ção] de partidos comunistas" ou "tortura e execuções sumárias" (p. 669). Em 1968, substituído Salazar por Marcelo, "a democratização não estava na ordem do dia" no mundo. Os "constrangimentos policiais", justificados "no resto do Ocidente" pela "'luta armada' da extrema-esquerda" (pp. 697-98) que se inicia no final dos anos 60, eram semelhantes aos do Estado Novo. Eis aquilo que me parece puro cinismo: a democracia, afinal, não existia em lugar nenhum, o que esbate qualquer diferença entre ditaduras e sistemas liberal-democráticos, onde a violência do Estado e de classe coexiste com um mínimo de liberdade de ação para partidos e movimentos que contestem o Estado e os ricos.

Da violência colonial, dos massacres perpetrados contra africanos, nem uma palavra! E a guerra? "A opção [de recusa de sair das colónias] não pareceu inicialmente excêntrica na Europa" porque "a retirada europeia de África só começou em 1960", omitindo que ela começara dez anos antes. Se a guerra colonial (nunca assim designada, claro) "foi o maior esforço militar de um país ocidental desde 1945" (p. 680), as "guerrilhas" tiveram "reduzido impacto", a guerra "não foi demasiado cara" e era "pouco mortífera", e, "talvez por isso, o recrutamento nunca foi um problema" (pp. 684-85), o que é talvez o erro factual mais despudorado de todos quantos RR comete! Em resumo, "a guerra foi aceite" (p. 685) pelos portugueses.

Dedução lógica: o que nos habituámos a chamar uma ditadura não era mais do que um regime semelhante aos que por lá fora havia, melhor até, no campo da repressão, do que muitos, a começar pela I República e o 25 de Abril! Em tempos de transição do Estado Social para o Estado Penal, como designa o sociólogo Loïc Wacquant à criminalização dos dominados que se opera nos nossos dias, o salazarismo voltaria a ser um regime para o nosso tempo!

Ver também:
  • Uma História contemporânea de Portugal (segundo um moderno cronista da Corte) , João Varela Gomes
  • Memória ideológica no centenário da República , João Varela Gomes

    [*] Historiador, http://www.letras.up.pt/dhepi/default.aspx?m=65


    O original encontra-se no jornal Público , edições de 2 e 16/Agosto/2012.


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 26/Ago/12