Eurocomunismo, ou o render dos ideais
por Catarina Casanova
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"A não ser para troçar do senso comum e da história,
é claro que não se pode falar de "democracia pura"
enquanto existirem
classes
diferentes, pode-se falar apenas de democracia
de classe.
(Digamos entre parênteses que "democracia pura" é
não só uma frase
de ignorante,
que revela a incompreensão tanto da luta de classes como da
essência do Estado, mas também uma frase triplamente vazia, pois
na sociedade comunista a democracia, modificando-se e tornando-se um
hábito,
extinguir-se-á,
mas nunca será democracia "pura".)
A "democracia pura" é uma frase mentirosa de liberal que
procura enganar os operários. A história conhece a democracia
burguesa, que vem substituir o feudalismo, e a democracia proletária,
que vem substituir a burguesa".
(Lenine 1918, in "A Revolução Proletária e o Renegado
Kautsky") Obras Escolhidas em Três Tomos, 1977,
Edições Avante! - Lisboa, Edições Progresso -
Moscovo
"Assim, na revolução de 1917, quando a questão da
significação do papel do Estado foi posta em toda a sua
amplitude, posta praticamente, como que reclamando uma ação
imediata das massas, todos os socialistas-revolucionários e todos os
mencheviques, sem exceção, caíram, imediata e
completamente, na teoria burguesa da "conciliação" das
classes pelo "Estado". Inúmeras resoluções e
artigos desses políticos estão profundamente impregnados dessa
teoria burguesa e oportunista da "conciliação". Essa
democracia pequeno-burguesa é incapaz de compreender que o Estado seja o
órgão de dominação de uma determinada classe que
não pode conciliar-se com a sua antípoda (a classe adversa). A
sua noção do Estado é uma das provas mais manifestas de
que os nossos socialistas-revolucionários e os nossos mencheviques
não são socialistas, como nós, os bolcheviques, sempre o
demonstramos, mas democratas pequeno-burgueses de fraseologia aproximadamente
socialista".
(Lenine, 1917 in "O Estado e a Revolução")
in
www.marxists.org/portugues/lenin/1917/08/estadoerevolucao/index.htm
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É em Dezembro de 1968 na cidade de Champigny
que o Partido Comunista Francês (PCF) oficializa um programa (manifesto
de Champigny) que vê o socialismo como um sistema naturalmente decorrente
da
democracia burguesa, fruto de sucessivas e contínuas reformas.
O texto admite que existe uma espécie de contínuo entre estes
dois tipos de sistema: de reforma em reforma, sempre que a
correlação de forças for favorável ao trabalho, os
trabalhadores e a classe operária vão avançando rumo ao
socialismo.
Referem os "comunistas" franceses que para trás fica
progressiva e gradualmente a ditadura do capital. Passar-se-á do sistema
capitalista ao socialista com acções de massas que pura e
simplesmente vão "
limitar progressiva e sistematicamente as empresas monopolistas na economia
nacional, a enfraquecer o capitalismo monopolista de Estado nos seus meios
económicos e financeiros
", que os monopólios vão ser obrigados a "
ceder as suas posições
" - porque não vão contrariar a vontade popular - abrindo-se
assim a "
via do socialismo
". Defendem que "
isolando a grande burguesia, apoiando-se na colaboração
política dos partidos democráticos
" os trabalhadores chegarão ao sistema socialista. E os
"comunistas" franceses sustentam todo este edifício
"teórico" na tese de que a democracia é um valor
universal fazendo tábua rasa de todos os ensinamentos
marxistas-leninistas sobre o que é a democracia.
O manifesto de
Champigny
conclui, assim, pela possibilidade de uma rendição da burguesia
sem luta e sem recorrer à força. Não seria
necessária qualquer revolução. Pacificamente, o
capitalismo transformar-se-ia em socialismo pela acção de massas
dos "
partidos democráticos
" dentro do quadro legal.
Mas afinal qual é a natureza de classe das estruturas políticas
que vão assegurar o domínio da classe operária e dos
trabalhadores e que antes asseguravam a defesa dos interesses do capital?
O manifesto de
Champigny
passa qual buldózer por cima da natureza de classe do Estado, como se a
democracia não fosse sempre a forma de uma classe dominante exercer o
poder sobre a classe dominada.
Por outro lado, o documento tenta tranquilizar os comunistas ao juntar a esta
capitulação sem vergonha absolutamente nenhuma
afirmações como o facto do PCF continuar a ser
"marxista-leninista", e continuar a ser um partido
"revolucionário", de novo tipo. Isto é um
exercício de dissimulação. A verdade é que este
partido, ao defender que o papel da vanguarda, o papel do partido, é
"
sem se substituir aos órgãos do Estado, às
instituições representativas e às
administrações", "traçar em cada etapa as
perspetivas do desenvolvimento socialista nos diferentes sectores da vida
económica social, política e cultural
", está a negar a função da vanguarda. A vanguarda
aponta precisamente a via da revolução, educa e organiza os
trabalhadores para a fazer. Uma força política que se limita a
apontar "perspectivas de desenvolvimento" não é uma
vanguarda: é, quando muito, um departamento de qualidade da democracia
burguesia.
Na década seguinte assistimos ao transplante desta indigência
ideológica para a grande maioria dos partidos comunistas da Europa: o
PCF, em conjunto com o Partido Comunista Italiano (PCI) e o Partido Comunista
Espanhol (PCE) defendem abertamente aquilo que fica conhecido por
eurocomunismo
. Os secretários-gerais destes partidos de então (Marchais,
Santiago Carrillo e Berlinguer) abandonam as posições
marxistas-leninistas, os seus partidos deixam de ser revolucionários, e
defendem inclusive o abandono da perspectiva revolucionária
transformadora da sociedade demitindo-se do papel de vanguarda da classe
operária.
Com a derrota do campo socialista dos chamados países de leste, estes
partidos deixam de existir enquanto partidos comunistas e perdem a grande
maioria da sua influência de massas (e eleitoral). Embora ainda
ostentando a designação de "comunista" nos seus nomes,
o seu discurso e a sua prática é a de traidores de classe.
Estes partidos continuaram a trilhar caminhos revisionistas: renunciaram
à perspectiva marxista do Estado enquanto ditadura da burguesia,
traíram a visão leninista de um partido de novo tipo, e o PCF foi
ao ponto de defender a "economia social de mercado", no âmbito
da sua participação (destacada, como a dos restantes partidos
eurocomunistas) na organização retintamente reformista que
é o Partido da Esquerda Europeia aliás, Pierre Laurent,
secretário-geral do PCF, preside à organização.
Há muito que estes partidos não são comunistas, embora
só em 2013 o PCF tenha abandonado a simbologia comum aos partidos
comunistas (a foice e o martelo). No entanto, o PCE que votou cortes salariais
na Andaluzia e a Refundação Comunista que fez, em 2014, a
campanha eleitoral "Uma Outra Europa Com Tsipras", estão muito
longe dos tempos em que, de armas na mão, combateram as ditaduras
fascistas de Mussolini e de Franco. O PCF, que no final da 2ª Guerra
Mundial era conhecido como o "Partido dos Fuzilados" (não
apenas lutando contra o nazi-fascismo mas também contra o governo
colaboracionista de Vichy), transforma-se num partido da
capitulação sem vergonha, ao serviço da burguesia.
É essencial entender como se chegou aqui.
Da mesma autora:
Centrismo ou linha revolucionária
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Professora Associada da Universidade de Lisboa
O original encontra-se em
www.odiario.info/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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