A luta dos trabalhadores triunfa sobre o espectáculo
por James Petras
Durante décadas críticos sociais lamentaram a influência do
desporto e de espectáculos de entretenimento que
"distraíam" trabalhadores da luta pelos seus interesses de
classe. Segundo aqueles analistas, a "consciência de classe"
era substituída pela consciência de "massa".
Argumentavam eles que indivíduos atomizados, manipulados pelos mass
media, eram convertidos em consumidores passivos que se identificavam com
heróis milionários do desporto, com protagonistas de novelas e
celebridades do cinema.
O culminar desta "mistificação" a ilusão
em massa era os
campeonatos mundiais
observados por milhares de milhões por todo o mundo, patrocinados e
financiados por corporações bilionárias: as World Series
(baseball), a Copa do Mundo (futebol) e a Super Bowl (futebol americano).
Hoje, o Brasil está a viver a refutação desta linha de
análise cultural-política. Os brasileiros têm sido
descritos como "loucos por futebol". Suas equipes venceram o maior
número de Copas Mundiais. Seus jogadores são cobiçados
pelos proprietários das equipes mais importantes da Europa. Dizem que
seus torcedores "vivem e morrem pelo futebol" ... Ou assim nos diziam.
Mas foi no Brasil que os maiores protestos na história da Copa do Mundo
tiveram lugar. Já um ano antes dos jogos, programados para Junho de
2014, houve manifestações em massa de até um milhão
de brasileiros. Apenas nas últimas semanas, proliferaram greves de
professores, polícia, trabalhadores da construção e
empregados municipais. O mito dos espectáculos de mass media a
hipnotizar as massas foi refutado pelo menos no Brasil dos dias de hoje.
Para entender porque o espectáculo de massa foi um fracasso de
propaganda é essencial entender o contexto político e
económico no qual foi lançado, bem como os custos e
benefícios e o planeamento táctico de movimentos populares.
O contexto político e económico: A Copa do Mundo e as
Olimpíadas
Em 2002, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Lula da Silva, venceu
as eleições presidenciais. Seus dois mandatos (2003 2010)
foram caracterizados por um caloroso abraço do capitalismo de livre
mercado juntamente com programas populistas de [alívio da] pobreza.
Ajudado por influxos em grande escala de capital especulativo, atraído
por altas taxas de juro, e pelos altos preços das
commodities
para as suas exportações agro-minerais, Lula lançou um
programa maciço quanto à pobreza proporcionando cerca de US$60
por mês a 40 milhões de brasileiros pobres, os quais
constituíram parte da base de massa eleitoral de Lula. O Partido dos
Trabalhadores reduziu o desemprego, aumentou salários e apoiou
empréstimos com juros baixos ao consumidor, estimulando um "boom do
consumidor" que levou a economia em frente.
Para Lula e seus conselheiros, o Brasil estava a tornar-se uma potência
global, atraindo investidores de classe mundial e incorporando os pobres no
mercado interno.
Lula foi louvado pela Wall Street como um "esquerdista
pragmático" e como um
estadista brilhante
pela esquerda!
De acordo com esta visão grandiosa (e em resposta a um amontoado de
bajuladores presidenciais, de Norte e a Sul), Lula acreditou que a
ascensão do Brasil à proeminência mundial exigia que
"hospedasse" a Copa do Mundo e as Olimpíadas e embarcou numa
campanha agressiva... O Brasil foi escolhido.
Lula enfeitava-se e pontificava: o Brasil, como hospedeiro, alcançaria o
reconhecimento simbólico e os prémios materiais que uma
potência global merecia.
A ascensão e a queda das grandes ilusões
A ascensão do Brasil foi baseada em fluxos de capital estrangeiro
condicionados pelo diferencial (favorável) de taxas de juro. E quando as
taxas mudam, o capital flui para fora. A dependência do Brasil da alta
procura pelas suas exportações agro-minerais baseou-se no
prolongado crescimento económico com dois dígitos na Ásia.
Quando a economia da China arrefeceu, a procura e os preços
caíram e, assim, os ganhos do Brasil com exportações.
O "pragmatismo" do Partido dos Trabalhadores significou aceitar as
estruturas políticas, administrativas e regulamentares herdadas dos
regimes neoliberais anteriores. Estas instituições eram permeadas
por responsáveis corruptos ligados a empreiteiros de
construção notórios por derrapagens de custos e longos
atrasos em contractos com o estado.
Além disso, a
"pragmática"
máquinas eleitoral do Partido dos Trabalhadores foi construída
sobre comissões debaixo da mesa e subornos. Somas vastas foram desviadas
dos serviços públicos para bolsos privados.
Inchado pela sua própria retórica, Lula acreditou que a
emergência económica do Brasil na cena mundial era um
"negócio feito". Ele proclamou que os seus faraónicos
complexos desportivos os milhares de milhões de dinheiro
público gastos em dúzias de estádios e infraestrutura
custosa
"pagar-se-iam por si mesmos".
O fatal "efeito demonstração": A realidade social
derrota a grandeza global
A nova presidente do Brasil, Dilma Rousseff, protegida de Lula, concedeu
milhares de milhões de reais para financiar os maciços projectos
de construção o seu antecessor: estádios, hotéis,
auto-estradas e aeroportos para acomodar uma prevista inundação
de torcedores estrangeiros de futebol.
O contraste entre a disponibilidade imediata de quantias maciças de
fundos públicos para a Copa do Mundo e a perene falta de dinheiro para
deteriorados serviços públicos essenciais (transporte, escolas,
hospitais e clínicas) foi um enorme choque para os brasileiros e uma
provocação para a acção em massa nas ruas.
Durante décadas, a maioria dos brasileiros, que dependiam de
serviços públicos para transporte, educação e
cuidados médicos (as classes superiores e média podem permitir-se
serviços privados), foi dito que "não havia fundos",
que os "orçamentos tinham de ser equilibrados", que um
"excedente orçamental era necessário para cumprir acordos
com o FMI e atender o serviço da dívida".
Durante anos fundos públicos foram desviados por nomeados
políticos corruptos para pagar campanhas eleitorais, levando a um
transporte asqueroso, superlotado, frequentemente avariado, e a atrasos nas
viagens diárias em autocarros abafados e a longas filas nas paragens.
Durante décadas, escolas estiveram em ruínas, professores corriam
de escola em escola para compensar os seus miseráveis salários
mínimos levando a uma educação de baixa qualidade e
desprezada. Hospitais públicos eram sujos, perigosos e superlotados,
médicos mal pagos frequentemente aceitavam pacientes privados nas horas
vagas, medicamentos essenciais eram escassos nos hospitais públicos e
super-caros nas farmácias.
O público foi ultrajado pelo contraste obsceno entre a realidade de
clínicas dilapidadas com janelas partidas, escolas superlotadas com
goteiras e transporte de massa não confiável para o brasileiro
médio e os enormes novos estádios, hotéis luxuosos e
aeroportos para os torcedores e visitantes estrangeiros ricos.
O público foi ultrajado pelas óbvias mentiras oficiais: a
afirmação de que "não havia fundos" para
professores quando milhares de milhões de reais ficaram instantaneamente
disponíveis para construir hotéis de luxo e atraentes camarotes
nos estádios para torcedores ricos do futebol.
O detonador final para o protesto em massa nas ruas foi o aumento nas tarifas
de autocarros e comboios para "cobrir perdas" depois de
aeroportos e auto-estradas públicas terem sido vendidas a baixo
preço a investidores privados que elevaram as portagens e
comissões.
Os manifestantes que marchavam contra o agravamento das tarifas de autocarros e
comboios foram apoiados amplamente pelas dezenas de milhares de brasileiros que
denunciavam as prioridades do governo: Milhares de milhões para a Copa
do Mundo e migalhas para a saúde pública, educação,
habitação e transporte!
Desatento às exigências populares, o governo avançou na
tentativa de acabar seus "projectos de prestígio". No entanto,
a construção de estádio ficou atrás do programado
por causa da corrupção, incompetência e má
administração. Empreiteiros de construção, que
foram pressionados, reduziram padrões de segurança e pressionaram
trabalhadores mais duramente, levando a um aumento de mortes e lesões
nos estaleiros de obras. Trabalhadores da construção entraram em
greve protestando pela aceleração e deterioração da
segurança do trabalho.
Os esquemas grandiosos do regime Rousseff provocaram uma nova cadeia de
protestos. O Movimento das Pessoas sem Teto ocupou lotes urbanos
próximos a um novo estádio exigindo "habitação
social" para o povo ao invés de novos hotéis cinco estrelas
para estrangeiros ricos adeptos do desporto.
A escalada dos custos com os complexos desportivos e o aumento das despesas
governamentais atearam uma onda de greves sindicais para exigir salários
mais altos superiores aos objectos do regime. Professores e trabalhadores da
saúde foram apoiados pelos trabalhadores fabris e empregados
assalariados em greve em sectores estratégicos, tais como o transporte e
os serviços de segurança, capazes de desestabilizar gravemente a
Copa do Mundo.
A adopção pelo PT dos espectáculos desportivos grandiosos,
ao invés de enfatizar o
"arranque do Brasil como potência global",
pôs em destaque o amplo contraste entre os dez por cento ricos e seguros
nos seus condomínios de luxo no Brasil, em Miami e em Manhattan, com
acesso a clínicas privadas de alta qualidade e escolas privadas
exclusivas para seus rebentos, com a massa de brasileiros médios,
fincados durante horas em auto-carros cheios de suor e superlotados, em
encardidas salas de espera para conseguir meras aspiras de médicos
não existente e em dilapidar os futuros dos seus filhos em salas de aula
dilapidadas sem professores adequados e a tempo inteiro.
A elite política, especialmente o círculo em torno da
presidência Lula-Rousseff, caiu vítima das suas próprias
ilusões de apoio popular. Eles acreditaram que pagamentos de
subsistência (cabazes alimentares) para os muito pobres lhes permitiria
gastar milhares de milhões de dinheiro público em
espectáculos de desporto para entreter e impressionar a elite global.
Eles acreditaram que a massa de trabalhadores estaria tão fascinada pelo
prestígio de abrigar a Copa do Mundo no Brasil que ela passaria por alto
a grande disparidade entre despesas do governo para grandes espectáculos
da elite e a ausência de apoio para atender as necessidades quotidianas
dos trabalhadores brasileiros.
Mesmo sindicatos, aparentemente ligados a Lula, que alardeavam o seu passado de
liderança dos metalúrgicos, romperam as fileiras quando perceberam
que
"o dinheiro era para fora"
e que o regime, pressionado pelos prazos finais de
construção, podia ser pressionado a elevar salários a fim
de ter o trabalho feito.
Os brasileiros, sem dúvida, são voltados para o desporto. Eles
seguem entusiasticamente sua equipe nacional. Mas eles também são
conscientes das suas necessidades. Não se contentam e aceitar
passivamente as grandes disparidades sociais reveladas pela actual corrida
louca para encenar a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil. A vasta
despesa do governo com os jogos tornou claro que o Brasil é um
país rico com uma multidão de desigualdades sociais. Eles
perceberam que há vastas somas disponíveis para melhorar
serviços básicos da vida diária. Perceberam que, apesar da
sua retórica, o "Partido dos Trabalhadores" estava a jogar um
jogo esbanjador de prestígio para impressionar uma audiência
capitalista internacional. Perceberam que têm poder estratégico
para pressionar o governo e tratar de algumas das desigualdades em
habitação e em salários através da
acção de massa. E eles agarraram-na. Perceberam que merecem
desfrutar a Copa do Mundo em habitações públicas adequadas e
a preços acessíveis e viajar para o trabalho (ou para um jogo
ocasional) em auto-carros e comboios decentes. A consciência de classe,
no caso do Brasil, triunfou sobre o espectáculo de massa. O
"Pão e circo" cedeu aos protestos em massa.
03/Junho/2014
Ver também:
A explosão social bate às portas do Brasil
, Edmilson Costa
Brasil: O capitalismo extractivo e o grande salto para trás
, James Petras
O original encontra-se em
www.globalresearch.ca/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|