Rumo ao domínio corporativo global
Os Estados Unidos estão a implementar uma nova arquitetura de
domínio empresarial global através duma série de tratados
de investimento que, neste momento, estão a negociar com vários
países. Quando todos esses tratados entrarem em vigor, a extensão
da sua jurisdição cobrirá 80% do PIB global, ou seja,
praticamente toda a economia mundial. Estes tratados incluem um conjunto de
Tratados Bilaterais de Investimento (TBIs), a Parceria Transatlântica de
Comércio e Investimento (TTIP) e a Parceria Trans-Pacífico (TPP).
Como a Índia está a ser pressionada para aderir a estes tratados,
é importante que estudemos cuidadosamente a sua arquitetura.
Três características significativas
Há, pelo menos, três características significativas nestes
tratados. Dessas três, a mais significativa é o mecanismo
ISDS
, o mecanismo de resolução de conflitos investidor-estado.
Segundo ele, os investidores privados poderão processar um estado
soberano num tribunal arbitral privado. Por outras palavras, o estado soberano
prescinde do seu direito de agir livremente no interesse público para
restringir as operações dum investidor estrangeiro. Caso o
faça, não será levado a um tribunal que esteja situado no
seu país e que funcione de acordo com a sua Constituição;
será levado a um tribunal que funcione de acordo com o tratado em
questão e esteja mandatado para proteger o investidor
privado de ser prejudicado pelo estado.
Vejamos o que isto significa. Na Índia, no início dos anos 70,
foi aprovada a Lei Regulamentadora do Mercado Cambial (LRMC), que estipulava
uma série de restrições às empresas estrangeiras.
Se a Índia tivesse assinado nessa altura este tratado de investimento,
as empresas estrangeiras poderiam ter levado o governo a um tribunal privado,
com poderes de jurisdição sobre o e Estado, e acima da
Constituição, para contestar qualquer redução dos
seus direitos e, muito provavelmente, teriam ganho o processo. E, claro, dada
essa hipótese muito provável, o governo nem se atreveria a
aplicar a LRMC, porque teria visto a inutilidade de o fazer.
O que se segue, portanto, é que qualquer governo que suceda ao que
entrou num contrato destes, fica preso ao que o governo anterior assinou; e o
tribunal que decide sobre a propriedade de qualquer ação desse
governo posterior não está obrigado a cumprir a
Constituição desse país, ou seja, de acordo com o
espírito a ela subjacente (o que certamente levaria a decidir a favor do
governo, com base em que estava a servir o interesse público, de acordo
com a Constituição), mas com a letra instituída no
tratado. Por outras palavras, um tratado de investimento destes não
só representa uma grosseira intromissão na soberania do
estado-nação, mas impede em princípio a capacidade de o
Estado cumprir o seu mandato constitucional.
Nem é preciso dizer, representa também uma grosseira
violação do princípio da soberania do povo que é o
fundamento da democracia. O povo pode eleger um governo que tome medidas para
melhorar as suas dificuldades económicas, mas o governo ficará
impossibilitado de tomar essas medidas, se elas colidirem, seja por que forma
for, com os interesses dos investidores estrangeiros. É difícil
imaginar
qualquer
medida económica significativa que não tenha nenhuns efeitos,
quer imediatamente quer potencialmente, nos investidores estrangeiros.
Até a redistribuição de terras ficará
excluída com um tratado destes, porque provavelmente significará
uma apropriação de terras de investidores estrangeiros que as
possuam, ou, no mínimo, a impossibilidade de eles poderem adquiri-las.
Os investidores sempre pretenderam que o Estado não coloque
restrições à proteção dos seus
interesses, atenuando a possibilidade da afirmação
democrática do povo. Encurralar o país no vórtice dos
fluxos financeiros globalizados tem sido uma forma óbvia de garantir
isso; porque qualquer Estado que tome ação contra investidores
estrangeiros corre o risco da fuga de capitais. Mas esta
salvaguarda não parece ser suficiente para os investidores
estrangeiros. Vale a pena assinalar que, em 2004, quando o governo de Vajpayee
foi derrubado,
The Wall Street Journal
comentou que a decisão de escolher um governo não devia ser
deixada apenas ao eleitorado do país, mas a todo o grupo de
acionistas desse país, incluindo os investidores
estrangeiros. Os tratados fomentados pelos EUA destinam-se a garantir que,
mesmo que o eleitorado escolha um novo governo, os investidores estrangeiros
estão protegidos de quaisquer possíveis efeitos adversos dessa
mudança.
A segunda característica destes tratados é que se por acaso o
governo recuperar a propriedade de investidores estrangeiros fica obrigado a
dar uma compensação imediata, adequada e eficaz. Os
tratados normalmente especificam que essa compensação deve ser
feita à taxa preponderante do mercado, e não apenas a uma taxa
justa. Mesmo que o investidor estrangeiro tenha inicialmente obtido
uma faixa de terreno a um preço de saldo, se esse terreno tiver que ser
entregue ao governo, a compensação terá que ser feita
à taxa do mercado.
Isto torna muito difícil para o governo adquirir quaisquer terras ou
propriedades, visto que, habitualmente, não tem os recursos para pagar
uma compensação elevada. Recuperar terras de
plantações de estrangeiros para redistribuição
entre os sem-terra, por exemplo, será impossível em qualquer
país amarrado a um tratado destes, porque os recursos financeiros para
pagar as compensações dificilmente estarão dentro das
disponibilidades do governo.
Para além disso, qualquer
redistribuição
de ativos, pela própria definição, deve significar
apropriar-se dos ativos de uns com o objetivo de os distribuir por outros. Por
outras palavras, tem que significar uma
redução
na posse dos ativos de uns e um
aumento
na posse dos ativos por outros. Se todas as situações de
apropriação de ativos tiverem que ser acompanhadas por uma
compensação ao valor do mercado, não há
redução
na posse dos ativos para os abastados, mas apenas uma mudança na
forma
da posse do ativo: um ativo sob a forma de terras converte-se em dinheiro, sem
que o seu proprietário sofra qualquer redução no seu
valor. Em resumo, a
redistribuição
de ativos fica excluída, pelo menos no que se refere ao capital
estrangeiro, em qualquer país que assine um tratado destes.
A terceira característica destes tratados, que, por exemplo, caracteriza
o TPP, é que os investidores estrangeiros devem ser tratados em
pé de igualdade com os investidores nacionais, sob todas as formas,
incluindo a questão da posse de terras e de recursos minerais de um
país. Como o termo investidores estrangeiros aqui
também inclui os investidores do setor público, isso significa
que, nestes tratados, fica excluída qualquer tentativa de fomentar a
autonomia, dando preferência às unidades do setor público.
Um país não pode exprimir preferência pela tecnologia
desenvolvida internamente, em relação à que o investidor
estrangeiro tem; não pode atingir a autonomia tecnológica;
não pode fazer qualquer tentativa para preservar as divisas
estrangeiras, restringindo a repatriação de dividendos para os
donos duma empresa estrangeira, de pagamentos de juros a credores estrangeiros,
ou de pagamento de
royalties
e emolumentos à companhia mãe das filiais estrangeiras que
funcionam no país.
Serve para perpetuar a desigualdade
Dado o facto de que o mundo já se caracteriza pelo controlo monopolista
da tecnologia pelos países capitalistas avançados; por uma
tendência por parte dos ricos na periferia para enviar a sua riqueza para
a metrópole; e pelas relações de poder desigual entre os
países metropolitanos, por um lado, e a periferia, por outro; o que esta
condição significa basicamente é que a dicotomia entre os
dois segmentos do mundo será perpetuada.
Em resumo, os tratados que estão a ser impostos pelos EUA a uma
série de países do terceiro mundo, insistindo na
igualdade de tratamento
entre investidores nacionais e estrangeiros, servem na verdade para perpetuar
a
desigualdade
que existe entre os dois segmentos do mundo.
O capital exige, sempre que funciona, o apoio e a proteção do
Estado. Quando o capital funciona globalmente, normalmente exige uma
proteção global. Mas os estados-nações individuais
não estão em posição de proporcionar essa
proteção global. Nem mesmo o mais poderoso dos
estados-nações, os Estados Unidos, estão numa
posição de proporcionar essa proteção, porque isso
acarretaria empenhar níveis de mão-de-obra e de recursos
extremamente altos, por todo o mundo, o que não se pretende. Não
há no horizonte nenhum estado-nação, nem sequer um
consórcio de estados capitalistas avançados, que possam assumir o
papel de proteção do capital globalizado. Além disso,
mesmo que existisse esse consórcio, seria necessário para os seus
objetivos um qualquer aparelho legal, um qualquer quadro de
regulamentações acordadas, para poder atuar.
Os tratados de investimento que estão a ser implementados pelos EUA
destinam-se a criar esse aparelho; representam uma transição para
um conjunto de instituições acima dos
estados-nações que servirão as necessidades do capital
globalizado, oferecendo a sua proteção onde quer que
funcionem. Mas o que é de assinalar é o facto de que não
são
instituições de qualquer consórcio de
estados-nações
(como, por exemplo, o Tribunal Internacional de Justiça); são
instituições privadas
. Por outras palavras, não estamos a assistir a uma
transição para
instituições governamentais
acima de estados-nações; estamos a assistir, por
intermédio destes tratados, ao nascimento de um conjunto de
instituições privadas
acima dos estados-nações. A globalização do
capital está a gerar atualmente uma tendência para o
domínio empresarial global.
15/novembro/2015
Ver também:
O Vietname entrega o seu futuro soberano à TPP
Documentos do TISA revelados pela Wikileaks
O Acordo TPP: o tratado de comércio livre mais agressivo da História
[*] Economista marxista e comentarista político indiano. Lecionou no
Centro de Estudos de Economia e Planeamento da Escola de Ciências
Sociais da
Universidade de Jawaharlal Nehru, em Nova Delhi e foi vice-presidente do
Conselho de Planeamento do estado indiano de Querala entre 2006 e 2011. Ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2015/1115_pd/towards-global-corporate-rule
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Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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