Democracia, participação, revolução
três vértices de um triângulo
por Miguel Urbano Rodrigues
Amigos e companheiros:
O tema deste painel A luta pela Democracia na América Latina hoje
coloca uma questão prévia. A palavra democracia tem
significados tão diferentes e ate contraditórios, consoante
aqueles que a utilizam, que me parece indispensável lembrar que no mundo
actual o vocábulo serve para designar regimes políticos e
comportamentos incompatíveis, alguns dos quais, paradoxalmente,
antidemocráticos.
Georges Labica, um dos mais lúcidos filósofos marxistas
contemporâneos, afirmou, em recente Encontro promovido na Espanha pela
Corriente Roja, que uma revolução autêntica somente pode
optar pela democracia participativa como forma de governo. Identifico-me com
essa opinião do autor do Dicionário Critico do Marxismo. Ela
implica uma conclusão: o objectivo principal da verdadeira democracia
é a transformação radical das sociedades onde o povo,
tornado sujeito, se mobiliza para destruir as estruturas de
dominação criadas pela burguesia.
A clarificação é imprescindível, porque, quando
falamos da luta pela democracia na América Latina, corremos o risco de
nos perdermos num labirinto se não ficar transparente desde o inicio que
1. A democracia é uma ausência na quase totalidade do
Hemisfério.
2. Instituições formalmente democráticas funcionam na
prática, em quase todos os países a Sul do rio Bravo como
instrumento de concretização das estratégias e interesses
do imperialismo e das burguesias locais.
O controle da mídia pelas forças do capital impede, com
raríssimas excepções, as grandes maiorias de tomarem
consciência da caricatura de democracia que serve de moldura a sistemas
de poder que excluem na pratica a participação do povo nas
decisões de que dependem o seu presente e o seu futuro.
A intelectualidade burguesa gosta de recordar que a Revolução
Francesa se inspirou na democracia aristotélica. Mas omite que na
democracia aristocrática de Atenas, como em qualquer polis grega,
somente uma ínfima percentagem da população tinha acesso
às assembleias.
A Revolução Americana, que se tornou quase objecto de culto para
a burguesia brasileira, como criadora de um modelo de democracia, produziu uma
Constituição que apenas concedia o voto a uma minoria de
cidadãos. Esse direito, erigido em privilégio, nascia da riqueza.
A farsa democrática não é identificável somente na
América Latina. Em
artigo de comentário ao NÃO francês
, publicado no sítio web http://resistir.info
, chamei a atenção para o facto, com frequência esquecido,
de que a chamada democracia representativa não passa hoje na Europa de
uma figura de retórica. Nos 15 países que integravam a
União Europeia antes do seu alargamento os regimes existentes adquiriram
progressivamente os contornos de ditaduras da burguesia, empenhadas em aplicar
as receitas do neoliberalismo globalizado. Nos novos membros da Europa Central
e do Leste os governos alguns com tendências fascizantes
actuam como satélites de Washington.
Obviamente, existem diferenças profundas entre os regimes supostamente
democráticos de países como a França e o Reino Unido
apenas um exemplo e os existentes na Colômbia e no Peru.
Elas resultam do desenvolvimento da história, da cultura dos povos, do
funcionamento das instituições e também da presença
de heranças imperialistas complexas.
Mas a diferenciação não impede a convergência no
tocante a um objectivo que pode ser apontado como denominador comum: na
Europa, tal como na América Latina, as políticas dos governos
eleitos "democraticamente" são elaboradas e executadas
com duas únicas excepções à revelia da
vontade dos povos que os viabilizaram. Os mecanismos institucionais são
utilizados em benefício das classes dominantes, para excluir a
participação em vez de a promoverem.
Este alerta inicial justifica-se num Seminário em que nos reunimos para
reflectir sobre a luta pela Democracia no espaço latino-americano.
Coloco ênfase na palavra luta.
Em Julho pp, o escritor José Saramago, meu compatriota, em entrevista
concedida em San Salvador, divulgada pelo sítio
Rebelión
, afirmou que hoje "não se trata de substituir um governo por
outro, mas de refundar o conceito de democracia".
No mundo globalizado sublinhou "estamos vivendo todos numa
espécie de
Apocalipse Negro
no qual não parece haver solução imediata e é isso
que representa a maior afronta à humanidade".
Segundo o Prémio Nobel de Literatura, para superarmos a crise de
civilização e evitarmos o colapso, é urgente "colocar
no centro da discussão o tema da democracia, da democracia autentica, de
refundar o conceito a partir das necessidades reais em que vivem as
pessoas".
Reflectindo sobre a alternativa, conclui que a exigência para todos,
diária, terá que ser "a reinvenção da
democracia".
Creio que todos estamos de acordo com Saramago quando nos recorda que "se
não chegarmos a uma democracia plena (
) o poder tende a
concentrar-se mais no político, subordinado ao económico e ao
financeiro, e será autoritário, e então, se não se
mudar essa relação de poder, a situação se
agravará".
Na prática já é autoritário, funcionando como
ditadura da classe dominante. E essa realidade força a uma tomada de
consciência de todos quantos rejeitam o sistema: a luta não pode
esperar pelo debate teórico sobre os contornos da democracia
autêntica. Antes de podermos definir com rigor o que queremos, somos
forçados pelo movimento da história a lutar contra o que
não queremos, contra aquilo que recusamos.
A democracia participativa, revolucionária, tal como a define Labica,
será o desfecho natural de um confronto de duração
imprevisível com o monstruoso sistema de dominação
planetária do capitalismo, hegemonizado hoje pelos EUA.
O capitalismo, como Istvan Meszaros e Samir Amin, entre outros pensadores,
têm demonstrado, atravessa uma crise estrutural que o imperialismo
estadunidense procura superar, em opção irracional,
através das chamadas guerras preventivas e do saque dos recursos
naturais de povos do Terceiro Mundo.
Coloca-se portanto uma questão de prioridades: a primeira tarefa, em
defesa da humanidade contra a barbárie, deve ser portanto a
participação dos povos numa luta solidária, tão
globalizada quanto possível, contra a engrenagem imperial que os oprime.
Na América Latina, essa difícil luta pela Democracia, em
desenvolvimento, tende a assumir dimensão continental, assumindo
características peculiares, mas muito diversificadas.
UM PANORAMA MUITO CONTRADITÓRIO
A América Latina é uma diversidade. Entre os países que a
constituem existem abismos culturais e económicos. O denominador comum
é a dependência de um sistema de poder imperial e a herança
resultante com excepção do Haiti e de algumas ilhas- de
terem sido colonizados pela Espanha e por Portugal cujos idiomas são
hoje aqui falados por mais de 500 milhões de pessoas.
Foram diferentes as estratégias dos colonizadores. Mas, com poucas
excepções, ficaram assinaladas por políticas de
genocídios. Os de Tenochtitlán, no México, e o posterior
à conquista do Tahuantinsuyo, no Peru do Incário, deixaram
memória pela sua amplitude.
Essas chacinas (dois séculos após a conquista, a
população desses territórios não atingia 20% da
existente antes da chegada dos espanhóis) deixaram marcas profundas no
imaginário dos povos mestiços contemporâneos, filhos de
culturas antagónicas.
A independência política não conduziu à
independência real. Os ideais de Bolívar não se
concretizaram. Nos países por ele libertados, no México, no
Prata, no Brasil, em toda a vastidão latino-americana, a um tipo de
dominação sucedeu outra. Durante mais de um século, o
imperialismo britânico, aliado às oligarquias locais, exerceu
sobre a América do Sul uma hegemonia económica ostensiva. A
partir do final da Primeira Guerra Mundial, o imperialismo estadunidense, que
já dominava no México, na América Central e nas
Caraíbas, ocupou o seu lugar. Com a agravante de que os mecanismos da
dominação política, em muitos casos, acompanharam a
penetração do capital, reduzindo alguns países à
condição de colónias de novo tipo.
Não cabe aqui recordar a história contemporânea da
América Latina. Mas, para reflectirmos sobre as lutas do presente,
é oportuno lembrar que, a partir do inicio da Revolução
Cubana, o sentimento anti-imperialista, que permanecera na consciência
dos povos, cresceu torrencialmente, emergindo como elemento fundamental nas
lutas contra o sistema de opressão generalizado. Cuba demonstrava que
era possível derrotar o inimigo interno e resistir ao imperialismo.
A incompreensão de que a revolução cubana se impusera em
circunstâncias excepcionais, gerou ilusões e esteve na origem de
uma época de aventuras guerrilheiras, que envolveram uma
geração de revolucionários românticos. O desfecho
desses desafios de gente generosa é conhecido. Em algumas
situações foram o prólogo da implantação de
ditaduras militares sanguinárias.
Chamarei apenas a atenção para duas questões.
1. Contra o que Washington proclamou após a morte do Che, a derrota das
guerrilhas rurais e urbanas no Sul do Continente não demonstrou que a
luta armada se havia tornado uma impossibilidade absoluta. A vitória do
sandinismo, na Nicarágua, em 1979 viabilizada pela
estratégia de Carlos Fonseca Amador, um grande revolucionário
quase desconhecido e a incapacidade do imperialismo para derrotar
militarmente os combatentes da Frente Farabundo Marti, em El Salvador, e os da
UNRG na Guatemala, desmentiram a tese imperialista. Simultaneamente a
insurgência colombiana tem sobrevivido a todas as tentativas
empreendidas para a aniquilar.
2. A persistência nos povos latino-americanos de um sentimento
anti-imperialista enraizado torna hoje possível na América Latina
o que na Europa, por múltiplos motivos, não tem estado ao seu
alcance. Refiro-me à possibilidade de conquista do poder Executivo
através de eleições por personalidades e forças que
se apresentam com programas anti-neoliberais e anti-imperialistas.
A reflexão sobre a segunda questão, isto é sobre problemas
e desafios colocados pela chamada via institucional, é muito importante
num Seminário como o nosso.
Uma revolução cuja meta seja o socialismo a curto prazo,
não é, com a actual relação de forças,
possível em sociedades como as latino-americanas. Mas a luta pela
conquista de parcelas do poder político, onde quer que isso seja
viável , apresenta-se como dever para as forças progressistas.
Lenine enunciou uma evidência ao afirmar que o governo em sociedades
capitalistas representa apenas as insígnias do poder. É parcela e
instrumento do Estado criado pela burguesia para lhe servir os objectivos.
A evolução e o desfecho da experiência socializante da
Unidade Popular, no Chile, lembram-nos que o governo de Allende nunca controlou
o Estado na sua totalidade o Legislativo e o Judiciário
hostilizaram-no permanentemente e muito menos o Poder económico.
O desenvolvimento da Historia nos últimos anos desmentiu, porém,
a tese segundo a qual a era das revoluções teria findado e o
neoliberalismo globalizado seria a ideologia definitiva.
Seattle serve de referência, assinalando o início de uma
época em que os povos começaram a mobilizar-se para expressar, em
manifestações marcadas pelo espontaneísmo, a sua recusa do
projecto de vida que o imperialismo lhes pretende impor.
No caso da América Latina, os seus povos infligiram derrotas importantes
ao poderoso vizinho do Norte.
As consequências desastrosas das políticas do chamado Consenso de
Washington na realidade um
diktat
geraram um descontentamento entre as massas que se traduziu em dois
tipos de
rejeição:
1. Gigantescas acções de protesto que desembocaram em
rebeliões populares que levaram ao derrubamento de Presidentes, como
ocorreu no Equador, na Bolívia e na Argentina.
2. A formação de alianças de forças
maioritariamente progressistas que, no âmbito de
instituições formalmente democráticas, levaram à
Presidência, utilizando os mecanismos eleitorais existentes, lideres com
programas anti-neoliberais e moderadamente anti-imperialistas. Foi o que
aconteceu na Venezuela, no Brasil, no Paraguai, no Uruguai e, embora em
circunstâncias diferentes, no Equador e na Argentina.
Essas experiências apresentam ensinamentos de grande significado ainda
insuficientemente estudados.
Não vou aqui, é óbvio, deter-me na análise, mesmo
superficial, dos êxitos e fracassos que assinalam o seu caminhar.
Permito-me apenas extrair algumas conclusões de ordem geral.
Washington compreendeu que a contestação dos povos da
América Latina às políticas neoliberais estava ganhando
uma amplitude que ameaçava a dominação imperial sobre o
Continente. A sua contra-ofensiva foi quase imediata.
A evolução dos acontecimentos demonstra que em países onde
as forças da direita tinham sofrido grandes derrotas, presidentes
eleitos por forças progressistas não respeitaram os compromissos
assumidos com o povo.
No Equador, Lúcio Gutierrez, numa guinada de 180 graus, passou a ser um
aliado preferencial de Washington. A entrega do comandante Simon Trinidad, das
FARC, a Uribe (que, por sua vez, o entregou aos EUA) foi um gesto abjecto que
suscitou indignação a nível continental. Lúcio
não terminou, entretanto seu mandato. O povo equatoriano, revoltado com
a sua política de vassalagem, derrubou-o, obrigando-o a fugir. Teve o
destino de Mahuad. Seria, contudo, uma ingenuidade acreditar que o seu
sucessor, o Presidente Palácios, vai dar início a uma
política que responda às aspirações populares
No Paraguai, o Presidente Nicanor Duarte, que na sua investidura pronunciou um
vibrante discurso de recorte anti-neoliberal com matizes anti-imperialistas,
cedeu rapidamente às pressões de Washington. Não somente
aceita agora a presença de tropas norte-americanas no pais, e portanto a
instalação de uma base militar, como promulgou a lei que atribui
imunidade a oficiais e soldados dos EUA acusados de crimes de guerra.
No Uruguai é cedo para se avaliar o resultado histórico da grande
vitória eleitoral da Frente Ampla. Mas o rumo do governo de
Tabaré Vasquez justifica a frustração crescente do povo de
Artigas perante as consequências de uma política inspirada nas
receitas neoliberais do Brasil, incompatível com as esperanças e
reivindicações das massas.
Na Argentina, o "capitalismo normal" de Kirchner, bem radiografado
por James Petras, não envolve também uma ruptura com os
objectivos do neoliberalismo. Com muita habilidade, o ex-governador da
Patagónia, esforça-se na Casa Rosada por humanizar o capitalismo,
como se isso fosse possível. Mas, sendo um populista talentoso, consegue
enganar milhões de compatriotas e a sua popularidade mantém-se
num nível elevado.
Quanto ao Brasil, serei brevíssimo. O país encontra-se mergulhado
numa crise gravíssima, de desfecho imprevisível. Neste painel
participa João Pedro Stedile, o destacado dirigente do MST na
minha opinião hoje o movimento social mais importante e combativo da
América Latina. É a ti, João, que cabe falar sobre as
frustrações, êxitos e desafios do povo brasileiro na luta
pela democracia no espaço latino-americano.
Direi apenas o obvio: o governo de Lula, longe de utilizar as
instituições em benefício do povo, desenvolveu desde o
início políticas que não ferem a lógica do
capitalismo e lhe serviram mesmo os interesses estratégicos. O facto de
a sua política exterior ter sido globalmente positiva, apesar de
manchada pelo envio de tropas para o Haiti, não altera o julgamento
negativo que a historia fará da sua passagem pela Presidência.
Na Região banhada pelo Caribe, Washington adoptou uma estratégia
particularmente agressiva, com a atenção concentrada no
triângulo Colômbia Cuba- Venezuela.
A sobrevivência das guerrilhas das FARC e do ELN na Colômbia
constitui um pesadelo para o Pentágono. A luta das FARC, sobretudo,
confirma que em situações históricas, geográficas e
sociais excepcionais, a luta armada continua a ser possível. Há
mais de quatro décadas que a oligarquia colombiana anuncia o fim
iminente da guerrilha de Manuel Marulanda. Entretanto o núcleo inicial
de 47 combatentes transformou-se num exército popular de 18 mil homens
que luta em 60 Frentes. No ano corrente, o ambicioso Plano Patriota, integrado
no Plano Colômbia , foi a pique. As FARC infligiram nos últimos
meses duras derrotas ao mais poderoso exército da América Latina.
É significativo que o presidente Álvaro Uribe, o melhor aliado de
George Bush no Continente, desenvolva uma política de contornos
fascizantes. E não menos esclarecedor que o governo de Washington, auto
proclamado campeão da luta contra o terrorismo, tenha aprovado os
sequestros no Equador e na Venezuela, dos comandantes Simon Trinidad e Rodrigo
Granda, actos terroristas realizados com a colaboração da CIA.
Cuba é outro vértice do triângulo caribenho que preocupa o
sistema de poder imperial.
O povo da Ilha não se submete. Não abdica do propósito de
construir e defender o socialismo. Na perspectiva da equipa de Bush a sua
revolução, após mais de quatro décadas de bloqueio,
oferece um exemplo perigoso para a América Latina. Cuba não
somente sobreviveu ao desmoronamento da URSS com a qual realizava mais de 80%
das suas relações comerciais, como está a caminho de
recuperar o nível económico quer tinha há 15 anos. Cuba
resistiu, seguindo o seu caminho. E isso é intolerável para
Washington. Cuba é o único país do Hemisfério onde
o direito à vida saúde à educação são
pilares de um conceito dos direitos humanos revolucionário, que
não é farisaico como das democracias formais do mundo capitalista.
Não creio que os EUA, atolados no Iraque e no Afeganistão,
estejam actualmente em situação de invadir Cuba. Mas o povo
cubano sente-se, com fundamento, ameaçado e agredido. A política
de Bush visa a asfixiar economicamente a Ilha, insistindo alias em financiar os
grupelhos terroristas de Miami. Daí a necessidade de ampliar a
solidariedade com o heróico povo cubano.
A SOLIDARIEDADE COM A VENEZUELA
No contexto da luta por uma democracia autêntica nos países da
Nossa América, a solidariedade permanente e ampliada com o povo da
Venezuela tornou-se um dever militante para as forças e personalidades
progressistas do Hemisfério.
Não é por acaso que no Continente e mesmo na Europa se
multiplicam os comités de solidariedade com a Venezuela Bolivariana.
Essas iniciativas traduzem a compreensão de que o povo de Bolívar
e Zamora se bate hoje não apenas em defesa de um processo
revolucionário original, como por todos os oprimidos da América
Latina.
A vitória de Chavez no referendo de Agosto de 2004 foi um acontecimento
de significação mundial. O povo venezuelano, assumindo mais uma
vez o papel de sujeito da Historia, voltou então a derrotar as
forças, unidas, da oligarquia e do imperialismo. Sem a sua
participação maciça não teria sido possível
a vitória alcançada no confronto com a engrenagem golpista que
pretendia tal como golpe de 11 de abril e no
lock-out
petrolífero derrubar o Presidente Chavez e restaurar a engrenagem
da ditadura oligárquica.
O I Encontro Mundial de Intelectuais em Defesa da Humanidade, reunido em
Caracas no final do ano passado, permitiu a amigos da Venezuela de dezenas de
países verificar a tensão criadora que varre o pais e,
transcendendo a realidade nacional, se traduz em projectos que reflectem o
espírito da integração dos povos latino-americanos, tal
como a concebia Simon Bolívar, uma integração
incompatível com a anexionista, de tipo ALCA, ideada em Washington.
É natural que iniciativas como a Telesur, a Petrosur, a Petrocaribe, a
Alba suscitem a oposição do governo Bush e contribuam para o
reforço das campanhas anti-Chavez na mídia estadunidense. Porque
cada um desses projectos, acusados de utópicos, está impregnado
do espírito solidário e revolucionário do bolivarianismo.
A Casa Branca e no Departamento de Estado, que não escondem a sua
simpatia pelas políticas neoliberais desenvolvidas pelo governo de Lula
e acompanham sem inquietação o que se passa na Argentina de
Kirchner, encaram como desafio intolerável o rumo tomado pela
experiência venezuelana.
E porquê?
Actualmente a Venezuela é um laboratório social onde se trava uma
luta de classes como o mundo talvez não conhecia desde as
revoluções russas de 1917. O processo bolivariano assume-se
já como incompatível com o capitalismo, por tímidas que
sejam as reformas ate agora implantadas. Ora Washington não aceita que a
meta seja a mudança radical da ordem social preexistente à
eleição de Chavez.
Companheiros
Os êxitos obtidos por Hugo Chavez e cito o líder porque a
dependência dele é transparente e excessiva não
devem, porem, levar a uma subestimaçao das dificuldades que ali se
multiplicam e renascem, inseparáveis da própria dialéctica
da vitoria.
A oposição saiu desmoralizada e dividida da derrota do referendo.
Mas trata de se reorganizar.
É muito positivo que a grande maioria do Exército esteja hoje
identificada com o projecto revolucionário, situação
inédita na América do Sul. Hugo Chavez insiste que a
revolução bolivariana, contrariamente ao que ocorreu no Chile da
Unidade Popular, não é uma revolução desarmada.
Essa evidencia não faz esquecer que mais de uma centena de oficiais
superiores das Forças Armadas estiveram envolvidos no golpe do 11 de
abril.
As grandes maiorias iniciais geraram no próprio governo ilusões
românticas. Foi muito mais fácil substituir uma
Constituição anacrónica por uma progressista do que
reformar políticos formados numa sociedade como era a venezuelana. Uma
parte dos que embarcaram inicialmente no navio da revolução
não aguentou as primeiras tempestades. Uns ficaram pelo caminho; outros
mudaram de embarcação.
O sociólogo Rodolfo Sanz, no seu lúcido livro
Dialéctica de una Victória
adverte que uma segunda Constituinte será necessária para
"transformar a estrutura do Estado, para derrubar o que permanece de
pé do antigo aparelho da Quarta Republica". Apesar de todos os seus
esforços, o governo não controla ainda a totalidade do Estado,
nem a Educação, nem a Saúde, nem o Poder Judicial,
baluartes onde elementos contra-revolucionários conservam ainda
importantes posições.
Companheiros:
Fica implícito que identifico na Venezuela bolivariana a vanguarda das
lutas que os povos da América do Sul travam hoje pela democracia
participativa.
Seria ingénuo concluir que o processo em curso , de ruptura com o
sistema de dominação imperial , vai desembocar numa futura
revolução socialista. O desfecho da revolução
libertadora, liderada por Hugo Chavez, é por ora, imprevisível.
Por isso mesmo a solidariedade com os que por ela se batem aparece como mais
necessária.
O panorama oferecido pela América Latina, no auge de uma crise de
civilização, é como já sublinhei muito
contraditório.
Pessoalmente sou optimista. O oportunismo e a capitulação de
dirigentes populistas que suscitaram grandes esperanças mas logo
esqueceram os compromissos com o povo não justifica atitudes de
desalento.
Do México à Argentina os povos da América Latina, com
raras excepções, demonstram uma disponibilidade crescente para a
luta. Temos o um exemplo comovedor de heroísmo do povo boliviano que, em
condições dificílimas, enfrentando dura repressão,
se levantou nos páramos andinos para derrubar dois presidentes que
actuavam como procônsules do imperialismo. Mas a recusa das
políticas neoliberais manifesta-se em todo o espaço
latino-americano, da América Central e das Caraíbas ao Peru e ao
Chile.
Neste quadro considero alentador que a direcção zapatista, pela
palavra do sub comandante Marcos, tenha há poucas semanas tornado
publica uma inflexão estratégica, atravessando a ponte que separa
a rebeldia da opção revolucionária. A partir de agora o
EZLN declara-se disponível para participar ao lado ao lado dos
trabalhadores mexicanos nas grandes lutas sociais do povo de Cuauhtemoc que
transcendem o âmbito do indigenismo.
Mobilizar para acções concretas, coordenadas, esse
formidável potencial de combatividade é um grande desafio para as
organizações e partidos revolucionários do Continente e
para os movimentos sociais progressistas que recusam o discurso dos
reformadores do capitalismo.
POR UM NOVO INTERNACIONALISMO
Sendo a América Latina uma área submetida à
dominação imperialista, a articulação das lutas dos
seus povo com as que se desenvolvem noutras Regiões do Mundo,
particularmente na Ásia e na Europa surge não apenas como dever,
mas como exigência da Historia.
A engrenagem de poder dos EUA, controlada hoje pela extrema-direita norte
americana, não tem soluções para a crise estrutural do
capitalismo. A opção de Bush & Cia para retardarem a
implosão do sistema agravou a crise global de civilização.
As guerras "preventivas" e o saque de recursos naturais de outros
povos accionaram mecanismos que ameaçam a própria
sobrevivência da humanidade.
Mas a irracionalidade, o assalto à razão, tal como aconteceu com
o III Reich nazi está a produzir efeitos contrários aos visados
por um sistema monstruoso que principia a adquirir os contornos de um IV Reich.
A guerra do Iraque é uma guerra perdida. O bombardeio mediático
perverso que nos apresenta como terroristas aqueles que do Tigre ao Pamir
resistem à ocupação não tem o poder de criar
historia através da mentira.
Os minutos de silêncio pelas vítimas inocentes do 11 de Setembro,
do Março madrilenho e do Julho londrino não apagam a
evidência: somente no Iraque a agressão estadunidense é
responsável por mais de 100 mil mortos civis. E a vida de um
norte-americano, de um espanhol, de um inglês não vale mais do que
a de um iraquiano.
A guerra do Afeganistão é outro conflito que terminará com
derrota dos EUA.
Que fazer, companheiros, pergunto?
Não temos receitas milagrosas para derrotar o imperialismo. Os debates
em torno da procura da alternativa para o neoliberalismo globalizado são
quase sempre estéreis, resvalando para o discurso escolástico. A
revolução é, por ora, uma esperança distante e o
socialismo do futuro alternativa à barbárie
assumirá forma no próprio decurso da luta; não pode ser
definido antecipadamente.
Mas podemos, sim, contribuir para apressar a derrocada do sistema imperial. A
solidariedade, nos seus múltiplos níveis, é uma arma muito
poderosa.
Carlo Frabetti recordou recentemente que Cuba não é uma Ilha nem
o Iraque, o Afeganistão, a Palestina. "A solidariedade
internacional e a indignação perante a barbárie
imperialista lembra abatem as fronteiras. Todas as fronteiras.
Em todos os sentidos. De todas as maneiras. Com todo o tipo de respostas,
desde as mais generosas às mais brutais".
O terror nasce hoje antes de mais do terrorismo de Estado do sistema de poder
imperial que o gerou.
O NÃO do povo francês à Constituição
Europeia, um projecto que institucionaliza o capitalismo, encerra grandes
lições para toda a humanidade. Exigindo o Sim, desfilaram por
Paris Blair, Schroeder, Zapatero, Berlusconi, presidentes e primeiro ministros
de toda a Europa. As burocracias sociais europeias eram favoráveis
à Constituição. A mídia exerceu uma pressão
permanente, maciça, a favor do Sim. A campanha assumiu facetas
delirantes. Um intelectual prestigiado escreveu que o NÃO teria um
significado comparável à ocupação da França
pela Alemanha na última guerra mundial.
Apesar do massacre desinformativo, a França uns país rico
com cinco milhões de pobres votou NÃO.
Volto a citar o filosofo marxista Georges Labica. Em Junho, numa conferencia
em Serpa, Portugal, ele afirmou que o NÃO do seu povo implicava
também solidariedade com os povos em luta do Iraque, da Palestina, da
Venezuela, da Colômbia, de Cuba, de toda a América Latina, de todo
o mundo. E acrescentou:
"A consciência da solidariedade entre todos os oprimidos é
algo muito forte, temos de criar condições para que essa
solidariedade se desenvolva, rumo a um verdadeiro internacionalismo".
Companheiros
Vou terminar.
No Brasil o povo vive sob cataratas de impossíveis.
Não pretendo cair em analogias. Mas acho oportuno recordar que o
NÃO francês transformou ali o impossível aparente num
possível real.
Lutar pela democracia participativa, a única autêntica, aquela que
abre a porta à transformação radical da sociedade é
o grande desafio simultaneamente nacional e internacionalista em defesa
da humanidade.
Cabe ao povo brasileiro, como sujeito da história, assumi-lo.
Serpa, Agosto/2005
[*]
Intervenção no II Seminário Internacional "Um outro
olhar sobre a América Latina", realizada no Departamento de
História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com o patrocínio da UFRJ,
em 29/Agosto/2005.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
. A versão em castelhano do mesmo encontra-se em
http://www.redasociativa.org/elinsurgente/
.
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