por Miguel Urbano Rodrigues
O NÃO dos povos à Constituição Europeia e ao que
ela simboliza fustiga o Velho Mundo como um tsunami político.
Em meados do século XIX, o medo do comunismo percorria a Europa como um
fantasma, no dizer de Marx. Neste começo do século XXI outro
grande medo faz estremecer o Continente. A engrenagem de Poder da União
Europeia teme o despertar tempestuoso dos povos.
Habituados a impor a sua vontade através de governos neoliberais e dos
mecanismos comunitários, os senhores da Europa foram apanhados de
surpresa. Não esperavam que o povo da França rejeitasse a
Constituição por eles concebida para institucionalizar o
capitalismo. O NÃO dos holandeses, logo a seguir, tornou transparente a
falência do projecto do grande capital.
Em França, apesar das sondagens, a classe dominante não
acreditava seriamente na vitória do NÃO. Mais de 80% dos
media
defenderam o Sim. Chirac apresentou a hipótese do NÃO como um
apocalipse. O diário
Le Monde
e o
Liberation,
socialista, admitiram a impossibilidade de uma recusa da
Constituição. Em Paris, o Congresso Senado e Câmara
aprovou o texto pela esmagadora maioria de 92%. Por toda a Europa os
Parlamentos faziam a apologia do mal chamado Tratado Constitucional e votavam
por ele maciçamente.
Nunca se assistira em França a um desfile de governantes estrangeiros
similar. Chegaram de todos os azimutes para anunciar o caos se os franceses
não aprovassem o mostrengo da Constituição. Blair,
Schroeder, Zapatero, Berlusconi, e dirigentes satélites de países
do Leste pronunciaram o mesmo discurso, com variantes mínimas. Numa
linguagem dramática repetiram o discurso do caos, da angústia, da
tragédia. Não faltou sequer o presidente Sampaio, cuja
oratória acaciana começa a trazer à memória a do
almirante Américo Tomás.
É compreensível que o tsunami francês tenha gerado
pânico nas classes dominantes; o holandês trouxe a certeza de que o
projecto comunitário do grande capital recebera um golpe mortal.
Blair já anulou o referendo britânico, temendo um desastre. Em
Praga foi tomada idêntica decisão, nada de referendos.
As explicações dos analistas políticos da burguesia deixam
transparecer desorientação. Na televisão portuguesa
algumas mesas redondas que acompanhei foram espectáculos de
indigência mental.
Esconder as causas da derrota foi preocupação comum dos
governantes e dos seus epígonos.
Todos omitiram que o NÃO envolveu a condenação de uma
política comunitária de destruição de conquistas
históricas dos trabalhadores europeus, política que desrespeita
fronteiras políticas e geográficas. A recusa da
Constituição foi na França a resposta de um povo adulto
às privatizações, ao trabalho precário, às
ameaças de aumento do horário laboral, a transferência de
fábricas para outros países, a leis imaginadas para destruir a
Segurança Social.
Um coro de lamentações sobe do patronato francês. Eles
esperavam o Sim vindo de um eleitorado que viam como incapaz de resistir ao
bombardeamento mediático, como aconteceu em Espanha. "A Europa
é o nosso destino, não é de direita nem de esquerda",
tinha proclamado Jean Pierre Raffarin, o primeiro-ministro (agora ex.) de
Chirac.
Mas a insurreição dos cidadãos a expressão
é de Georges Labica com o voto de classe dos oprimidos fez ruir a
estratégia da ditadura da burguesia. O choque foi tamanho que ainda
não chegaram a acordo quanto a opções imediatas.
Escrevo antes da reunião do dia 16, em Bruxelas, convocada para que os
dirigentes da União Europeia elaborem uma política de resposta
à derrota que lhes foi infligida.
Seria uma ingenuidade esperar que ali sejam tomadas decisões positivas.
Georges Labica, num lúcido artigo publicado em
resistir.info
, reflecte sobre o quadro político resultante da vitória do
NÃO no seu pais e manifesta um optimismo sereno sobre as perspectivas de
luta por ele abertas aos povos.
Esse intelectual revolucionário francês estará connosco em
Serpa, no dia 24, para nos ajudar a
compreender melhor o significado do grande acontecimento.
Extrair lições úteis para Portugal do que se passou na
França e na Holanda é uma tarefa prioritária para as
forças progressistas do nosso país.
QUE FAZER?
O primeiro-ministro e os membros do seu gabinete que têm debitado
opiniões sobre o tema comportam-se como um grupo de comediantes amadores
em espectáculo de feira estival. Logo que foi conhecido o NÃO
francês começaram a bradar, com energia, que o referendo deve ser
mantido, blá, blá, blá, que isto aqui é Portugal e
que os espanhóis votaram sabiamente, etc, etc. Mas há fissuras.
O sr. Freitas do Amaral diz que respeitará o que for decidido, mas teme
o pior e vai adiantando que no seu entender a Constituição,
agora, não tem pernas para andar. O desabafo valeu-lhe logo reprimendas
vindas do PS.
Nos comentários dessa gente aflora o pânico da burguesia
portuguesa.
Os referendos da França e da Holanda iluminaram a
contradição entre os povos e os sistemas de poder que os
desgovernam. A democracia caricatural imposta através de
instituições concebidas pela burguesia para atingir os seus
objectivos ficou subitamente desmascarada.
O voto popular negou o voto dos parlamentos.
O enorme significado dessa contradição é entretanto
assimilado somente por uma minoria das vítimas da engrenagem neoliberal.
A situação existente é tão paradoxal que muitos
milhões de cidadãos que recusam a Constituição
Europeia não estabelecem uma relação de causa e efeito
entre a ideologia do sistema, os mecanismos que o servem e o aumento das
desigualdades, do desemprego, da exclusão social.
Em Portugal a grande maioria dos eleitores, confundida por um bombardeamento
mediático perverso, não tomou ainda consciência de que o
regime sob o qual vive tal como o existente nos demais países da
União Europeia lhe veda participar na construção do
futuro. A falsa democracia portuguesa não é representativa. Um
sistema de poder montado para servir a estratégia do grande capital
funciona na prática como ditadura de classe de fachada
democrática.
Aquilo que é uma realidade para o conjunto da Europa assume uma
gravidade maior em Portugal, porque a metamorfose da social-democracia assume
no pais de Abril facetas particularmente chocantes. Ao Partido Socialista
Português, criado artificialmente na Alemanha Federal por um punhado de
intelectuais burgueses, faltou desde o berço a base operaria que
permitiu a partidos como o SPD alemão e os da social democracia
escandinava desenvolver durante muitas décadas políticas
formalmente anti-capitalistas. Em Portugal o 25 de Novembro fez cair a
máscara ao PS de Mário Soares. As memórias desse
político e toda a sua intervenção no processo de
destruição das conquistas da revolução de Abril
iluminam com nitidez a sua incompatibilidade com qualquer projecto socialista.
Mas Soares não é excepção. Contrariamente ao que o
nome sugere, o PS é um partido cujos dirigentes se opõem a
qualquer política cuja meta seja o socialismo. Todos os seus governos
desenvolveram políticas orientadas para a recuperação e
expansão do capitalismo. Presentemente o PS actua como um partido
totalmente identificado com a estratégia do grande capital,
eufemisticamente auto intitulada de neoliberal. Essa evidência
transparece aliás do seu programa.
Quando no Governo, a política por ele executada pouco diferiu no campo
económico e financeiro da aplicada pelo PSD. Definir o PS como um
partido de esquerda é, portanto, um absurdo. Nega a realidade.
Entretanto todo o sistema mediático apresenta o PS como parcela da
esquerda. Não é inocente essa mentira. Ela contribui para
confundir milhões de cidadãos.
É um facto que alguns dirigentes do PS, como Manuel Alegre, cultivam um
discurso de esquerda. Mas esse jogo integra-se numa estratégia
mistificadora. Aquilo que separa fundamentalmente o PS do PSD é a sua
base social. Daí a necessidade de uma linguagem diferente. Uma
percentagem ponderável do eleitorado socialista tem
convicções democráticas e desejaria
transformações estruturais na sociedade portuguesa que reduzissem
a desigualdade, respondendo minimamente aos ideais de Abril.
Enganar essa massa de cidadãos o punho erguido, o uso das
palavras camarada e socialismo, o vermelho na bandeira, etc. tem sido um
objectivo permanente de todas as direcções do PS.
Umas das lições mais importantes do NÃO francês
encontramo-la precisamente na lucidez revelada por milhões de eleitores
conseguindo distanciar-se da posição assumida pelas
direcções dos Partidos em que costumam votar.
Os aparelhos ideológicos da burguesia exerceram uma pressão sem
precedentes sobre os cidadãos empurrando-os para o Sim. O presidente
Chirac e os seus colegas de outros países somaram-se aos canais de
televisão, aos grandes diários, às cúpulas
partidárias, às hierarquias das igrejas, a artistas famosos, ao
patronato, a dirigentes sindicais, à quase totalidade dos parlamentares
numa campanha frenética, alucinatória, para vender o Sim.
Mas a ofensiva fracassou. O povo francês, assumindo-se como sujeito,
disse NÃO!
Reflectir sobre a capacidade demonstrada por esse povo adulto para transformar
o impossível aparente em possível real é - repito
uma exigência da actualidade portuguesa.
É incerta ainda a manutenção do referendo marcado para a
data das eleições autárquicas.Mas a simples
insistência de Sócrates & Cia Lda na defesa da
Constituição Europeia é esclarecedora das
intenções do governo com o apoio maciço de toda a
direita - de desenvolver em Portugal uma campanha similar à francesa se
o referendo for adiante.
Reflectir sobre a capacidade demonstrada por esse povo adulto para transformar
o impossível aparente em possível real é repito
uma exigência da actualidade portuguesa.
É incerta ainda a manutenção do referendo marcado para a
data das eleições autárquicas. Mas a simples
insistência de Sócrates & Cia Lda na defesa da
Constituição Europeia é esclarecedora das
intenções do governo com o apoio maciço de toda a
direita de desenvolver em Portugal uma campanha similar à
francesa se o referendo for adiante.
Temos assim, pela frente, uma situação que abre ao nosso povo uma
oportunidade excepcional de seguir o exemplo do francês (e do
holandês), alterando, com a sua participação, o rumo da
história.
Cabe lembrar que em França, Jospin, o ex- primeiro ministro do PS
gaulês, foi um dos defensores mais esforçados do Sim, atitude que
acompanhou a tomada pela direcção do seu partido.
O apelo não foi ouvido. A grande maioria do eleitorado socialista votou
NÃO.
Contribuir para distanciar em Portugal os eleitores socialistas das
orientações capituladoras dos seus dirigentes será uma
tarefa prioritária na fase de intensas lutas sociais e políticas
que se inicia. É tempo de os portugueses compreenderem que tudo
continua sempre na mesma quer a maioria (e o governo) seja PS ou PSD.
O combate ao referendo é complementar do combate na frente das
autarquias.
A crise profunda que o pais enfrenta, agravada por uma cascata de medidas
reaccionárias que negam compromissos assumidos há poucos meses,
facilita a desmontagem dos mecanismos da engrenagem perversa da ditadura da
burguesia de fachada democrática.
Acreditar que a Assembleia da Republica, sendo instrumento do sistema de poder,
pode, no presente contexto, desempenhar qualquer papel relevante em
transformações estruturais positivas da sociedade portuguesa
é uma ingenuidade perigosa. O Parlamento é hoje uma peça
da engrenagem cuja tarefa, na perspectiva da classe dominante, consiste em
servir a estratégia do grande capital. A redução das
desigualdades, do desemprego, a luta contra a injustiça social
são objectivos incompatíveis com o seu projecto, com a
lógica do neoiliberalismo globalizado.
Em São Bento vão prosseguir as escaramuças verbais entre o
PS e o PSD e o CDS. Elas fazem parte da caricatura de democracia que a
burguesia nos impôs.
O PCP é a excepção, como partido de esquerda de
tradição revolucionária. Mas o funcionamento dos
mecanismos do sistema veda-lhe a possibilidade de inflectir, pela via
parlamentar, o rumo da história. A presença ali dos deputados
comunistas é importante. Mas desde que orientada para a
denúncia permanente do sistema, sem integração no mesmo.
Os comunistas estão conscientes de que não há reformas
que possam humanizar o capitalismo. A actual crise de
civilização confirma essa evidencia.
Somente a luta do povo, nas fábricas, nos sindicatos, nas escolas, nos
portos, nos serviços pode romper o círculo vicioso instalado pela
ditadura da burguesia de fachada democrática.
O NÃO francês sopra, entretanto, nestes dias pela Europa como um
vendaval de esperança.
Aquilo parecia impossível. Mas aconteceu!
Em Portugal também podem produzir-se situações que meses
atrás seriam inimagináveis.
Duas certezas:
1. A luta contra o referendo conduz ao desmascaramento do governo de direita do
sr. Sócrates e da sua política de submissão ao
imperialismo. Pode e deve funcionar como factor de unidade popular. Mesmo que
não haja referendo a luta dos trabalhadores deve ampliar-se e
radicalizar-se.
2. A próxima campanha das autárquicas abre grandes alamedas ao
povo português para que reassuma com uma participação
diferente o papel de sujeito da história.
Este artigo encontra-se em
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