O Egipto de Sisi expulsa os cães selvagens
As matilhas de mercenários que assolam a Síria já
não têm abrigo no Egipto
por M. K. Bhadrakumar
[*]
Yves Jego, prefeito de Montereau-Fault-Yonne, no subúrbio ao sul de
Paris, anunciou 2ª-feira que os proprietários de cães em sua
cidade serão doravante filmados por câmeras de vigilância.
Os que não tenham noção do dever cívico e
não recolham das calçadas o cocô dos seus animaizinhos
receberão multa de 35 euros (US$46).
O sr. Jego comparou esses proprietários irresponsáveis a
traficantes de drogas, que ameaçam a segurança pública.
Pode-se aplicar a analogia à Síria.
De fato, no instante em que o prefeito Jego falava à Agência
France-Presse, a mesma AFP distribuía notícias sobre uma
reunião discreta, marcada para meados da próxima semana, bem
distante dos holofotes da divulgação internacional, numa cidade
localizada a 468,7 km ao norte de Paris: Haia.
Há fiapos de esperança de que um acto de limpeza em
relação à Síria não possa ser descartado.
Cidade bizantina de cães selvagens
Segundo a AFP, a reunião prevista de altos funcionários de EUA e
Rússia em Haia foi concebida na reunião do dia 9/8 em Washington
dentro do formato "2+2" dos ministros de Defesa e
Relações Exteriores dos dois países.
Wendy Sherman subsecretária de Estado dos EUA para assuntos
políticos chefia a equipe norte-americana, que inclui
interessante! o embaixador dos EUA à Síria
Robert Ford
, que o presidente Barack Obama acaba de renomear seu próximo enviado
especial ao Cairo. E Lakhdar Brahimi, enviado da ONU-Liga Árabe à
Síria, também participará.
O objetivo declarado da reunião de Haia é discutir preparativos
para a sempre adiada conferência internacional para a paz na
Síria, apelidada "Genebra-2", que visa a aproximar o regime
sírio, aliados e a oposição.
Moscou ainda não divulgou o nível da representação
que enviará à reunião de Haia. Os russos estarão
ansiosos por dar a impressão de que a reunião é rotina nas
relações com Washington, apesar do bruaá sobre o alertador
Edward Snowden, ex-CIA, e o subsequente cancelamento, por Obama, de
reunião "bilateral" com Vladimir Putin prevista para o
mês que vem.
A presença de Ford na reunião de Haia pode parecer
desconcertante, se se pensa em sua controversa folha-corrida como diplomata no
Iraque e na Síria, por onde deixou montanhas de cocô de cachorro
espalhadas pela calçada. Mas Moscou não deixará de
considerar ideia sempre aproveitável , que esse tipo de
gente pode ser bem aproveitada no serviço de limpeza de vias
públicas, dado que sabem, melhor que qualquer outro agente, de onde
provém toda a imundície.
E há movimento muito evidente, que está crescendo, a favor de
conversações de paz para a Síria. Por um lado, os
cães da guerra na Síria começam a ver-se cada vez mais
apertados entre sete varas. O general Abdel Fattel al-Sisi, homem-forte do
Egito, odeia cachorros; já ordenou que toda a matilha dos cães de
guerra sírios desapareça totalmente da cidade do Cairo.
Está pronto para seguir as pegadas do Sr. Jego e fazer instalar
câmeras de vigilância pelas margens do Nilo. A melhor parte da
história é que, sendo ele homem pobre, a nova empreitada de
expulsar cachorros se autofinanciará... agora que recebeu generosa
contribuição financeira que lhe veio dos mesmos xeiques
riquíssimos aos quais pertenciam, até há pouco tempo, os
mesmos cães de guerra sírios.
Aqueles xeiques estão cada dia mais preocupados: se o vento carregar o
fedor das calçadas sírias para o Egito, diretamente para os
salões dos palácios deles, e empestear as suas belas paisagens
desérticas, nem todos os perfumes de toda a Arábia
bastarão para encobrir a fedentina.
Um Sisi já fortalecido pretende agora extrair do retiro o ex-ditador
Hosni Mubarak, homem no qual os xeiques confiam implicitamente e cujas
legendárias competências na gestão de cocô de
cachorro são legião.
Seja como for, a matilha síria rapidamente identificou em Sisi sinais
de incômodo; e os cães de guerra sírios fugiram do Cairo
para Istanbul, aproveitando-se, a seu favor, de um momento em que as
autoridades turcas e egípcias, pelo menos por hora, não se
conversam.
Mas Istambul tampouco será por muito tempo paraíso seguro para
eles, porque, antiga cidade bizantina, ali também há cães
selvagens. A matilha síria é uma variedade relativamente
delicada, sobretudo na comparação com os cães do
Curdistão e da Mesopotâmia mais profunda,que são mastins
sedentos de sangue e alguns deles, ao que se diz, canófagos (cães
que comem cães).
Há também indicações embora ainda vagas de que
é questão de tempo, e o patrão turco seguirá ele
também os passos de Sisi e decidirá livrar-se de todos os
cães que fluem para a Anatólia vindos de regiões
circundantes e poluem seu belo conjunto arquitetônico.
Queda trágica, mas potencialmente catártica
Expliquemos. O primeiro-ministro turco Recep Erdogan telefonou a Putin
há duas semanas e propôs encontro entre os dois, à margem
da reunião do Grupo dos 20 no início de setembro em São
Petersburgo: conversa de homem para homem, sobre a Síria. Erdogan,
político hábil, já entendeu que perdeu a disputa pela
Síria; e que Putin tem em mãos todos os trunfos, inclusive a
assustadora "carta curda".
Dentre crescentes indícios de que há uma entidade curda tomando
forma no norte da Síria, ao longo da fronteira turca, nas linhas do
Curdistão Iraquiano, Moscou sugeriu, sem piscar nem baixar os olhos, que
os curdos sírios poderiam também enviar
representação independente às conversações
Genebra-2.
Erdogan imediatamente captou a mensagem. O xeique Hamad bin Khalifa al-Thani
do Qatar e Mohamed Morsi do Egito sempre foram íntimos associados de
Erdogan no projeto sírio. Mas já foram aliviados da carga do
poder um abdicou, o outro foi deposto.
Por outro lado, o golpe egípcio encontra Erdogan em
posição de cavaleiro sem escudeiro no tabuleiro do xadrez
regional, enquanto Arábia Saudita e aliados do Conselho de
Cooperação do Golfo, o Iraque, a Síria, Israel e
até o Irã já resolveram negociar com a junta militar no
Cairo.
Para Erdogan, a parte mais dura de engolir é que Obama o está
ignorando. Do alto pedestal em que foi aclamado líder modelar para o
novo Oriente Médio, Erdogan tombou, "queda shakespeariana"
trágica, mas ao mesmo tempo potencialmente catártica.
Erdogan sabe que o Egito ocupará todo o tempo de Obama, até o
fim de seu mandato na Casa Branca, o que implica que os EUA estão sendo
virtualmente obrigados a desengajar-se do projeto sírio. E, seja
lá como for, não se atravessa momento muito adequado para
pressionar a favor de "mudança de regime" no Oriente
Médio.
Em resumo, Erdogan compreende perfeitamente bem que Moscou avalia que, na
Síria, a maré virou.
A insistente campanha de propaganda, de Moscou, falando do espectro da
al-Qaeda que estaria erguendo as garras na Síria, entrou fundo no
consciente ocidental, e ao mesmo tempo, Bashar al-Assad pressiona em casa, a
cavaleiro da vantagem que obteve no campo de batalha; e vai-se aproximando cada
vez mais de ser reeleito presidente da Síria nas eleições
de 2014.
Males portentosos estão para acontecer
[1]
Dito de modo simplificado, a Rússia pós-soviética
está de volta, pisando firme, ao tabuleiro de xadrez no Oriente
Médio. De fato, coisas estranhas já acontecem por toda a
Região.
O representante do Conselho Nacional Sírio em Istanbul, Khaled Khoja,
disse com amargura, em entrevista publicada no jornal turco
Hurriyet
no fim de
semana:
O movimento da oposição síria no Egito está sendo
expulso [pelo governo de Sisi], e figuras da oposição
síria já começam a deixar o Egito. Estamos transferindo a
sede da Coalizão Nacional Síria, do Egito para a Turquia.
Politicamente, Bashar al-Assad está convertido em ditador exemplar para
todos os ditadores árabes. O que al-Assad e a Shabiha [militantes
armados, em trajes civis, que apóiam al-Assad] são para a
Síria, [o general Abdel Fatteh] al-Sisi e seus grupos armados são
para o Egito.
Cresce entre muitos ditadores árabes a convicção de que
é possível parar a Primavera Árabe. Entre esses, os
líderes da Arábia Saudita, Jordânia e Emirados
Árabes Unidos, que estão no grupo dos Amigos da Síria.
Todos esses apoiaram al-Sisi.
Depois de um sítio de nove meses, quando as forças de
oposição tomaram o aeroporto próximo a Aleppo, encontraram
foguetes da Arábia Saudita destinados ao regime. Os Emirados
Árabes Unidos estão no Grupo Amigos da Síria, mas Dubai
já é o banco central do regime sírio. Embora os Amigos da
Síria devessem apoiar a oposição, hoje já tendem
mais a proteger o regime de Al-Assad.
Não surpreendentemente, Moscou vai aquecendo os contatos com o
"estado profundo" da era Mubarak no Egito, e a manifesta simpatia que
já mostra em relação à junta militar no Cairo,
combinada ao ódio visceral que historicamente lhe inspira a Fraternidade
Muçulmana, estão gerando uma estranha aproximação
entre Rússia e Arábia Saudita em questões vitais que
afetam a futura trajetória da Primavera Árabe.
Analisada em retrospecto, a iniciativa do rei Abdullah, de mandar seu
espião-chefe príncipe Bandar falar com Putin mês passado,
mostra que os sauditas sentem que têm interesses próximos dos
interesses de Moscou sobre a Síria, interesses que estão
emergindo no plano regional uma comunidade de interesse que os sauditas
não sentem com nenhuma outra grande potência, nem com os EUA.
Pode ter emergido dos relatos a impressão de que Putin e Bandar
mantiveram distância ostensiva e mal se falaram, um desconfiado do outro.
Mas a verdade é que conversaram durante quatro longas horas na
residência do presidente da Rússia.
A Síria com certeza foi e continua a ser ponto de diferença
entre Arábia Saudita e Rússia. Mas ambos, Putin e o rei Abdullah,
são pragmatistas por excelência e, como Mao Tse Tung ensinou certa
vez, "Diferenças entre amigos sempre reforçam a
amizade."
Dito de outro modo, a decisão de Sisi de expulsar do Cairo os membros
do Conselho Nacional Sírio jamais seria possível sem um aceno e
uma piscadela dos sauditas, e é altamente improvável que Bandar
não tenha sensibilizado Putin. Afinal de contas, o líder do
Conselho Nacional Sírio, Ahmad Jarba, sempre foi bem conhecido como
protegido dos sauditas.
Khoja, representante do Conselho Nacional Sírio, bem poderia ter
repetido as palavras do Imperador, em
Júlio César
de William Shakespeare:
"Minha esposa Calpúrnia é que me prende,
não querendo que eu saia.
Viu em sonho minha estátua, esta noite,
como fonte que despejava sangue vivo por cem bocas,
na qual romanos sorridentes e robustos banhavam as mãos.
Para ela, a visão é uma advertência
de que males portentosos estão para acontecer.
E pediu-me, de joelhos, que eu não saia de casa."
[2]
20/Agosto/2013
NT
[1] Orig. Portents of evils imminent (Shakespeare, Julio Cesar, ato 2, cena 2)
[2] Shakespeare, Julio Cesar, Ato 3, cena 2:
(
www.ebah.com.br/content/ABAAAepF4AA/julio-cesar?part=5
)
Calpurnia, my wife, stays me at home;
She dreamt to-night she saw my statua,
Which, like a fountain with an hundred spouts,
Did run pure blood; and many lusty Romans
Came smiling, and did bathe their hands in it:
And these does she apply for warnings, and portents,
And evils imminent; and on her knee
Hath begg'd that I will stay at home to-day.
Ver também:
A Junta do Egipto não tem nada a perder
O triunfo da revolução do grande povo egípcio
E agora, a mensagem de nossos patrocinadores (sauditas)
Egypt : A Nation Bleeds
"Fomenta-se a luta armada no Egipto"
[*]
Diplomata de carreira da Índia durante 29 anos, foi embaixador no Usbequistão
(1995.1998) e na Turquia (1998-2001).
O original encontra-se em
www.atimes.com/atimes/Middle_East/MID-01-200813.html
. Tradução de Vila Vudu.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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