A implicação da ONU em crimes de guerra
por Hans-Christof von Sponeck
entrevistado por Silvia Cattori
[*]
Para o antigo secretário adjunto da ONU, Hans-Christof von Sponeck, as
Nações Unidas, longe de velarem pelo respeito pelo direito
internacional e pela consolidação da paz, tornaram-se um factor
de injustiça. As sanções impostas ao Iraque de Saddam
Hussein provocaram um desastre humanitário; e tratados como o da
não proliferação de armas nucleares são utilizados
para assegurar o domínio de uns e ameaçar outros. Já
é tempo de mudar radicalmente de sistema.
O conde Hans-Christof von Sponeck, nascido em Bremen em 1939, trabalhou durante
32 anos no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD). Nomeado em 1998, por Kofi Annan, para o posto de coordenador
humanitário das Nações Unidas no Iraque, com a categoria
de secretário-geral adjunto, Sponeck demitiu-se em Março de 2000
em sinal de protesto contra as sanções que haviam reduzido o povo
iraquiano à miséria e à fome. Eis de seguida as suas
respostas às questões de Sílvia Cattori, para a
Réseau Voltaire.
Sílvia Cattori: No seu livro "Um outro tipo de guerra: As
sanções da ONU ao regime do Iraque"
[1]
, acusa o Conselho de Segurança de ter traído a
Carta das Nações Unidas
. Poderia dar-nos alguns exemplos precisos de
situações em que o Secretariado das Nações Unidas
actuou de modo condenável?
Hans von Sponeck: O Conselho de Segurança deve actuar conforme a Carta
das Nações Unidas; não deve esquecer a
Convenção sobre os direitos da criança, bem como os
aspectos gerais desse tipo de convenções. Quando o Conselho de
Segurança sabe que as condições de vida no Iraque
são inumanas, que as pessoas de todas as idades se encontram numa
profunda desgraça, não por causa de um ditador, mas por causa da
sua própria política de acompanhamento no quadro do programa
"petróleo por comida", e por causa das excepções
humanitárias, e ainda assim nada faz ou não faz o
suficiente para proteger as populações das más
consequências da sua política, podemos e devemos afirmar que o
Conselho de Segurança é culpado. E é culpado em particular
pelo forte crescimento das taxas de mortalidade no Iraque.
Como prova disso, vejamos a seguinte situação: nos anos oitenta,
sob o governo de Saddam Hussein, a UNICEF revelava que 25 crianças em
mil, menores de cinco anos, morriam no Iraque por diversas razões.
Durante os anos de aplicação das sanções, entre
1990 a 2003, verificou-se um rápido crescimento da mortalidade de
crianças com menos de cinco anos: passou para 56 em mil, logo no
início dos anos 90, e atingiu as 131 em mil, nos primeiros anos do novo
século. Qualquer um de nós pode facilmente compreender que esse
aumento da mortalidade entre as crianças foi consequência das
sanções; parece-me evidente que o Conselho de Segurança
preferiu ignorar as consequências da sua política no Iraque, sob
pressão dos principais intervenientes envolvidos, em particular, os
Estados Unidos e o Reino Unido.
Silvia Cattori: Como é que o Conselho de Segurança pôde
negligenciar as consequências humanitárias das
sanções contra o Iraque, e ao mesmo tempo adoptar outras
resoluções a 1559, por exemplo que abriram caminho
ao bombardeamento de populações civis? Isso levar-nos-ia a dizer
que o Conselho de Segurança e o Secretariado da ONU se tornaram, nos
últimos anos, os principais responsáveis pelas catástrofes
humanitárias?
Hans von Sponeck: Eu diria que apenas os ignorantes, ou aqueles que não
aceitam a derrota, continuam a fazer de conta que o drama humanitário no
Iraque não se deve, em grande medida, a uma política errada, a
uma política de punição. O povo iraquiano foi punido
simplesmente porque se encontrava sob a direcção do governo de
Bagdad, apesar de totalmente inocente.
Sílvia Cattori: Os nossos responsáveis políticos,
presentes em todas as instâncias internacionais, sabiam perfeitamente que
essas sanções tinham consequências desastrosas. Podemos,
então, dizer que ao calarem-se, eles aceitaram que os civis morressem de
fome?
Hans von Sponeck: Não podemos esquecer que houve silêncio, mas
também conivência, apoio, ou melhor, um esforço deliberado
para se criar o género de condições que prevaleceram no
Iraque durante 13 anos de sanções. Há, de facto,
diferentes graus de responsabilidade política. Não se trata
apenas do Primeiro-ministro da Grã-Bretanha, do Presidente dos Estados
Unidos e dos seus governos, existem outros responsáveis.
A Espanha e a Itália tiveram um papel de apoio que torna os seus
governos da época responsáveis. Aznar em Madrid, e Berlusconi na
Itália são altamente responsáveis pela sua
contribuição para o desastre e para o drama humano que teve lugar
no Iraque. Eles não aceitarão concerteza essa responsabilidade,
mas as evidências estão aí.
Sílvia Cattori: Se a manipulação do Conselho de
Segurança pelos Estados Unidos é o maior problema, e se estes
últimos continuam a cometer crimes, sob o pretexto de terem um mandato
das Nações Unidas, o que poderá ser feito para corrigir
esta situação?
Hans von Sponeck: Penso que essa é uma questão muito importante e
particularmente pertinente no quadro do debate sobre o tipo de
Organização das Nações Unidas de que necessitamos
para protegermos a comunidade internacional, para protegermos os 192 governos
dos Estados membros, dos perigos a que certos governos os expõem ao
abusar da sua autoridade, das sua informações, das suas
finanças, do seu poder, para servirem os seus próprios
interesses, ao mesmo tempo que vão contra os interesses da paz, da
justiça, da humanidade.
Sílvia Cattori: Como é que reagiu à execução
de Saddam Hussein e dos que com ele foram condenados à morte por um
tribunal formado pelos Estados Unidos?
Hans von Sponeck: Digo-lhe desde já que não me surpreendeu. Era o
objectivo final dos que estão no poder em Bagdad e dos que ocupam o
Iraque. Não podemos defender Saddam Hussein, mas podemos levantar-nos
contra o facto de ele não ter tido um julgamento justo, e de termos
estado perante uma farsa. Foi um tribunal que, sob a aparência de
respeitabilidade, mascarava a decisão preestabelecida de condenar os
acusados à pena de morte. Saddam Hussein, como qualquer outra pessoa,
tinha direito a um julgamento equitativo, e esse julgamento equitativo, ele
não o teve, de facto. É claro que fiquei perturbado por essa
evidência. Apesar de existir um direito internacional, apesar de as
nações europeias, os Estados Unidos e o Canadá, bem como
outras nações, afirmarem incessantemente que querem defender a
justiça, na realidade, não o fazem.
Sílvia Cattori: Você interveio junto de Bush para pedir a
libertação de Tarek Aziz. Chegou a obter uma resposta?
Hans von Sponeck: Não. Eu não obtive uma resposta. Escrevi essa
carta porque conheci Tarek Aziz. O meu antecessor e eu tínhamos uma
relação cordial com Aziz, considerávamos que ele era uma
pessoa que apesar do que se disse dele nos principais jornais se
preocupava com o povo iraquiano. Uma pessoa disponível e disposta a
tomar em consideração propostas que visassem melhorias no
programa de assistência humanitária.
Do nosso ponto de vista, do meu ponto de vista, ele era uma pessoa correcta. Eu
não posso julgar o que Tarek Aziz fez no Iraque fora do meu
domínio de responsabilidade mas tudo o que eu peço é que
uma pessoa doente, nem que seja apenas por razões humanitárias,
seja tratada dignamente; ela deveria ser autorizada a ter um acompanhamento
médico e a beneficiar de um julgamento justo. Tarek Aziz tinha e tem
direito tal como Saddam Hussein a ser tratado de acordo com o
direito internacional, com as convenções de Haia e de Genebra. Eu
oponho-me ao facto de, passados três anos depois da sua entrega
voluntária às forças de ocupação, ainda
não terem sido apresentadas provas contra ele, e que o mantenham na
prisão, tendo necessidade de acompanhamento médico.
Sílvia Cattori: Agora que a situação criada pela
ocupação do Iraque é aterradora, há um forte receio
de que a resolução contra o Irão seja utilizada pelos
Estados Unidos para atingir esse país. A marinha alemã
formalmente sob mandato da ONU já se encontra no
Mediterrâneo oriental. É por saber até que ponto o seu
país está implicado nos projectos de guerra dos Estados Unidos
que você, numa carta aberta, pede a Merkel que recuse qualquer recurso
à força contra o Irão?
Hans von Sponeck: Exactamente. Eu vejo bem que, gradualmente, a Alemanha e
outros países europeus são levados a seguir um caminho no sentido
de uma política de potência definida em Washington por pessoas
ávidas de poder. E essa situação torna-se cada vez mais
grave, porque vendo que não conseguem sozinhos pôr em marcha a sua
política de dominação, eles procuram o apoio de outros
governos; ora, esses governos parecem ser da Europa Central e da Europa de
Leste, entre a Lituânia e a Grã-Bretanha. Além disso,
procuram também politizar a NATO para a utilizarem como um instrumento,
que ela já é em grande medida, ao serviço dos Estados
Unidos. Daí que eu, como qualquer indivíduo normal neste mundo,
não possa aceitar as tentativas apoiadas pela chanceler Merkel,
por ocasião da recente cimeira da NATO que visam dar a essa
aliança militar uma missão política. A NATO é um
instrumento da Guerra Fria; desde há muitos anos que se lhe procurava
dar uma nova missão, um novo papel. A única coisa que os membros
da Aliança sabiam é que ela tinha uma responsabilidade militar, e
que com o fim da Guerra Fria na Europa, essa responsabilidade deixava de
existir, não era mais necessária. Daí esta procura
desesperada de um novo papel.
Pessoalmente, considero extremamente perigoso que a NATO se apresente
actualmente como um instrumento democrático ao serviço das
democracias ocidentais, quando, na verdade, se trata de um instrumento nas
mãos dos Estados Unidos para pôr em marcha o Projecto para um novo
século americano. Estamos perante essa famosa declaração
feita pelos neoconservadores estado-unidenses nos anos noventa que a
administração Bush converteu em estratégia nacional de
segurança para o ano de 2000 e seguintes para a
realização da qual se espera que a NATO contribua. Os
responsáveis políticos reunidos recentemente em Munique deveriam
ter recusado essa tese
[2]
.
Vladimir Putin, que
pela primeira vez não mastigou as suas palavras
, expressou abertamente o que muitos entre nós ressentem. Evidentemente
que as suas declarações foram rejeitadas por aqueles que
têm uma outra agenda. Ora, o que Putin disse recupera uma realidade.
Estou persuadido de que, por causa da politização militarista da
NATO, um grande passo terá sido dado, não apenas no sentido de um
retorno a uma atmosfera de guerra fria entre as principais potências, mas
igualmente, e esse é que é o drama, no sentido de um crescimento
das despesas em matéria de defesa, China, Rússia e países
da Europa Ocidental incluídos. Despesas que são já
bastante elevadas em numerosos países; o que não pode contribuir
senão para uma escalada da polarização entre os diferentes
grupos no mundo.
O mundo, fora da Europa Central e dos Estados Unidos, já não
está mais disposto a aceitar uma via ocidental de sentido único.
O público já não aceita mais os pedidos das
potências políticas e militares do século passado. Esses
dias já estão ultrapassados e, se não tomarmos isso em
conta, as coisas agravar-se-ão.
Para mim, a palavra-chave do momento é: diálogo e
diplomacia. É com um espírito claramente multilateral que se deve
avançar, e não com um espírito de super potência
que, nos seus actos, já não o é, nem economicamente, nem
politicamente, nem moralmente de certeza, já para não dizer
eticamente.
Ainda que reste aos Estados Unidos um pouco da sua super potência
graças à sua força militar, essa não será
suficiente para salvar a Pax Americana. A Pax Americana é uma coisa do
passado e, rapidamente reconheceremos isso na Europa e mais rapidamente
prepararemos uma cooperação multilateral ou seja, uma
outra coisa que não uma cooperação bilateral ou do tipo
NATO o melhor que se possa.
Sílvia Cattori: A NATO participa em guerras de ocupação
o que está em contradição com a sua Carta e
leva a cabo, juntamente com a CIA, operações criminosas: estou a
pensar, por exemplo, na questão do transporte e das transferências
de suspeitos para prisões secretas. Se a Europa continua rebaixar-se e
aceita a instalação de sistemas anti-mísseis
estado-unidenses dentro de países membros da NATO, será que isso
não irá conduzir ao confronto, ou mesmo ao retorno dos piores
dias da Guerra Fria?
Hans von Sponeck: É uma insensatez. Não há nada que
possamos defender, e o argumento de Condoleezza Rice, segundo o qual a
Rússia não teria razões para se inquietar com a
questão da instalação de dez sistemas anti-mísseis
posicionados na Polónia e na República Checa, é
absolutamente desonesto, porque se podemos hoje instalar dez, nada impede que
sejam instalados vinte amanhã. O simples facto de esses sistemas
anti-mísseis estarem posicionados na fronteira da antiga URSS, ou da
Rússia, já é o suficiente para intensificar as
razões de confronto entre a Rússia e o Ocidente; sem falar na
China. Nós estamos a criar, a modelar, o nosso inimigo de amanhã.
Eu, e muitas outras pessoas neste mundo, não podemos aceitar essa
evolução. Mas nós não contamos, somos
fracos, somos considerados uns ingénuos, "gente de olhos
azuis" como dizem os estado-unidenses, não esperam que
tenhamos e compreendamos a visão global.
Se nós vivemos numa democracia, então eu tenho o direito de
compreender essa visão global, mas ninguém me diz nada, apenas me
pedem que me submeta à boa vontade e às boas
intenções de um governo como o de Washington. Ora, eu não
posso fazer isso, nós não podemos fazer isso, porque
fomos enganados tantas e tantas vezes pela sua desinformação,
pela sua desonestidade brutal, por um poder político ao serviço
de um único partido. Estou longe de aceitar tudo isso, e considero o
conjunto dessa política, que visa convencer os governos checo e polaco a
abrigar sistemas anti-mísseis, extremamente perigoso e deslocado.
Não passa de uma grosseira e brutal política de potência,
da qual não temos necessidade e a qual devemos combater. Isso não
é o que a paz, o futuro internacionalismo e a consolidação
das nações e do progresso, no espírito da Carta das
Nações Unidas e de outras leis internacionais, precisam.
Sílvia Cattori: Você esteve em Kuala Lumpur em Fevereiro para
participar numa conferência que denunciava os crimes cometidos pelas
potências militares. Não houve, nos nossos meios de
comunicação social, cobertura desse importante acontecimento. Se
tais encontros, que denunciam os desvios da NATO e as violações
da Carta das Nações Unidas, são ignorados, como fazer para
que se possa abrir um debate para reformar essas instâncias? Não
sente que está a pregar num deserto?
Hans von Sponeck : Sabe, não nos devemos desencorajar
só porque os meios de comunicação social nos ignoram. A
maioria das vezes, quando cidadãos tentaram convencer os seus dirigentes
a mudar de direcção, estes últimos ignoraram-nos. Isso
deveria pôr um fim aos nossos esforços? Não me parece. O
facto de pessoas, não loucos, não sonhadores perdidos, mas
pessoas muito realistas que têm grandes visões sobre o mundo, que
compreendem os processos políticos, se reunirem para debater seriamente
as condições e os abusos do poder isso é uma prova
importante de que a consciência internacional está viva, de que a
consciência internacional existe. Kuala Lumpur não fez manchete;
Hollywood faz manchete, a emoção barata e os acontecimentos
mediáticos de reles qualidade, como o programa
Big Brother
em Londres, fazem manchete.
Que o facto de cinco mil pessoas se terem reunido em Kuala Lumpur para discutir
a guerra como um crime, sobre o pano de fundo de todo o sofrimento que essas
guerras ilegais causaram, não tenha sido objecto de manchete é
certamente lamentável, contudo isso não deve tornar as pessoas
menos desejosas de se expressarem. Isso deverá ter sido notado por
aqueles que se preocupam com esses crimes e pelos que são directamente
lesados pelos crimes.
Cada um de nós, enquanto indivíduo, tem uma responsabilidade a
assumir, a de dar a conhecer os nossos pontos de vista. O encontro de Kuala
Lumpur, eu tenho a certeza, permitiu o desenvolvimento de uma maior
consciência em numerosos círculos pelo mundo, o que irá
finalmente resultar numa maior resistência contra essas políticas
enganadoras, egoístas e unilaterais que o Ocidente procura impor.
Não assumo uma posição contra o Ocidente, eu sou um
"ocidental", mas isso não significa que não possa
analisar com um olhar crítico a via de sentido único que se
desenvolveu, a auto-estrada de sentido único na qual circulam o poder
internacional, o comércio internacional, a cultura internacional. Esta
situação, como já referi, não pode continuar porque
já não é aceitável, e Kuala Lumpur reuniu pessoas
vindas do mundo inteiro que partilham desta mesma preocupação.
Estou certo de que esta conferência permitiu aumentar a consciência
e a vontade dos participantes em reunir cada vez mais forças para mudar
as coisas. E se isso não produziu manchetes, nem uma mudança
imediata, poderá fazê-lo amanhã, e se não for
amanhã, será no dia seguinte.
Silvia Cattori: Vozes como a do presidente Jimmy Carter e de John Dugard que
denunciam os crimes de Israel na Palestina, vozes como a de Dennis Halliday
[3]
e a sua que denunciam os desvios da ONU no Iraque todas essas vozes se
revestem de um respeito imenso. Todavia, são vozes raras que os poderes
podem marginalizar. Não se sente desiludido com o facto de, ao seu
nível, não haver quase ninguém, ou tão poucos, que
sigam o seu exemplo e tomem posição contra os crimes e abusos dos
Estados?
Hans von Sponeck: Claro que me sinto desiludido. Sabe, estes dias, todos os
dias, espero ansiosamente que um general americano de primeiro plano, que um
político americano de primeiro plano, diga: basta! Não quero
continuar a apoiar esta loucura, não vou mais apoiar esta
ilegalidade, não vou apoiar os políticos que nos mergulharam
em profundas dificuldades e em profundas violações de tudo o que
uma pessoa civilizada deveria defender. Claro que uma pessoa se sente
desiludida; mas tendo em conta o que aconteceu no decurso destes últimos
decénios, particularmente durante estes anos sob o poder de Bush,
não nos podemos permitir ser ineficazes. É um apelo que devemos
fazer ao movimento internacional anti-guerra.
É preciso que o movimento de paz se oriente no sentido de uma melhor
coordenação, uma rede; no sentido de um maior número de
esforços combinados, de declarações comuns em que pessoas
de todos os países do mundo dêem as mãos e demonstrem, a si
mesmos e ao público mais vasto, que têm a firme
intenção de não aceitar o que nos conduziu até
aqui: a um mundo em que o fosso é colossal entre os que nada têm
que é uma vastíssima maioria, mais de um milhão de
seres humanos, entre os seis milhões que comporta o nosso planeta,
sobrevivem com um dólar por dia e os dez por cento mais
favorecidos que vivem num luxo e num bem-estar inimaginável.
Isso não pode durar mais. E se as pessoas que ouvem a nossa conversa
dizem: "eis mais um ingénuo", ou "um comunista, é
terrível, ele reclama a igualdade para todos"; eu digo-lhes que
não sou nada disso. Em primeiro lugar, não sou de certeza
ingénuo, em segundo, não sou comunista no sentido tradicional.
Sou um homem que, ao fim de 32 anos nas Nações Unidas, aprendeu a
aceitar o facto de não sermos todos iguais, mas também que todos
deveríamos ter as mesmas hipóteses de desenvolvimento num quadro
de contributos para a paz. Não é uma questão de falta de
dinheiro, há muito dinheiro para todos, o que nos falta é uma
vontade de partilhar os recursos e de fazer mais do que apoiar simplesmente em
palavras esse magnífico conjunto de instrumentos que foi criado depois
da Segunda Guerra Mundial, por pessoas respeitáveis, que ao longo de
sessenta anos, tentaram lançar as bases para uma maior justiça e
progresso socioeconómico para todos.
Sílvia Cattori: Todas essas esperanças que alimenta devem
fazê-lo sofrer ainda mais, no sentido em que você está
consciente de que, para os povos de religião muçulmana que as
grandes potências actualmente humilham, o pior ainda está para vir?
Hans von Sponeck: Claro. Não há dia em que, quando leio ou
observo o que se passa no Médio Oriente, não me sinta cheio de
vergonha, em que não sinta a exigência de humildade para com essas
pessoas pobres que sofrem terrivelmente, desde a Palestina ao Iraque, bem como
noutras regiões do Médio Oriente. A linguagem humana, pelo menos
para a minha sensibilidade, não é capaz de expressar os
sentimentos que experimento.
É horrível. Eu venho de um país que teve a
experiência, e foi a causa, de uma grande e horrível Segunda
Guerra Mundial. Ela durou cinco anos e ainda se fala nela. E o que é
feito com tudo o que sucedeu no Iraque durante todos estes anos, trinta anos de
ditadura, treze anos de sanções, três anos e meio de
ocupação? Quanto é que um indivíduo pode suportar,
quanto é que uma nação pode suportar? Quando vemos
estou a pensar agora nas universidades de Bagdad que eu conheço, como
por exemplo, Mustanseriya University, Baghdad College, Baghdad University
que essas instituições que preparam jovens inocentes para
a vida estão destruídas por bombas! E pensar que quando eu ia
visitar esses iraquianos, eles viviam pacificamente em bairros que integravam
diversas populações, e nunca ouvi essas conversas de "Eu sou
xiita, tu és sunita, e tu és turcomano".
Bagdad é a maior cidade curda do mundo, com mais de um milhão de
curdos, e é claro que havia muitos problemas, havia um ditador, havia
assassinatos políticos mas, comparado com o que vemos hoje, isso
não era nada. O confronto sectário que existe agora foi criado
por uma guerra ilegal. E as ameaças dirigidas ao governo de al-Maliki
são o cúmulo da desonestidade: "Se não repuserem a
segurança no Iraque, então nós, os americanos, iremos
reexaminar em que medida iremos continuar a apoiar-vos". Mas o que
é isso? Quem criou esse tipo de condições? Quem são
os responsáveis por esse caos e pelo confronto sectário actual?
Sílvia Cattori: Os países ocidentais condenam o Irão, que
assinou o Tratado da não proliferação nuclear, por causa
de uma bomba nuclear que ele não tem; mas não condenam Israel que
não assinou esse tratado e que dispõe de armas nucleares. Entre
Israel, que não esconde que se prepara para levar a cabo uma guerra
nuclear preventiva, e o Irão que se quer dotar de uma indústria
nuclear civil será que aquele que ameaça realmente a paz
mundial não é Israel, e o Irão, o alvo? Como é que
reage perante esta injustiça?
Hans von Sponeck: Tenho uma resposta muito directa, que é no fundo a
ilustração clássica dos dois pesos, duas medidas. A
Resolução 687 do Conselho de Segurança, datada de Abril de
1991, chama a atenção, no seu parágrafo 14, para a
criação de uma zona desnuclearizada no Médio Oriente.
Israel nem sequer assinou o Tratado de não proliferação. O
Irão pode ter intenções que vão contra os
interesses internacionais, mas o Irão ainda não passou a linha
vermelha. El Baradei, o director da Agência Internacional de Energia
Atómica, não disse que o Irão tinha passado essa linha.
Ele limitou-se a dizer que o Irão não tinha revelado
completamente, de maneira suficientemente transparente, as suas
intenções, e que tinha posto a funcionar as suas novas
centrifugadoras.
Mas que extraordinária demonstração de dois pesos, duas
medidas, essa de não apontar o dedo a Israel e a outros países!
Então, e o Paquistão, e a Índia? E os próprios
Estados Unidos que trabalham abertamente numa nova geração de
armas nucleares, violando por completo o Tratado da não
proliferação, do qual eles são os fundadores. Temos aqui
uma situação catastrófica de dois pesos, duas medidas. Se
eu fosse iraniano, eu diria: lamento, peguem na medida que vocês afirmam
ser a norma e, depois, poderemos discutir, todos à volta de uma mesa, ao
mesmo nível, e sem condições prévias.
Eu aprovo o justo pedido iraniano de diálogo; penso que é a coisa
mais justa a fazer. O Irão diz: vocês têm um desacordo,
muito bem, vamos encontrar-nos para conversar, mas não me venham dizer
que, antes de nos encontrarmos, eu devo ter cumprido determinadas
decisões que vocês me querem ver cumprir; nós viremos,
encontrar-nos-emos, discutiremos, e colocaremos as cartas na mesa. E o que
constatamos é uma assustadora tentativa de proteger a lei dos dois
pesos, duas medidas.
Sílvia Cattori: Que mensagem gostaria de fazer ouvir aos dirigentes
políticos que não fazem caso dos direitos humanos e levam a cabo
guerras que violam o direito internacional? Que mensagem gostaria de dar
às populações expostas à ocupação e
ao terror dos Estados? Que mensagem gostaria de transmitir a todos os que se
opõem a estas guerras, mas não sabem como pará-las e ficam
desolados com a inacção dos partidos?
Hans von Sponeck: Aos que violam os direitos humanos, eu diria: vocês
deviam viver com a vossa própria consciência, no entanto, como
é que vocês poderiam, à luz de todos estes danos evidentes,
viver com a vossa consciência? Será que não são
capazes de pensar em outros meios de proteger os vossos interesses, permitindo
aos outros beneficiar das oportunidades existentes?
Àqueles que são vítimas e aos que se preocupam, eu diria:
nunca se rendam, façam o vosso melhor, todos somos livres, como
indivíduos em posse plena das nossas faculdades, de dar a nossa
contribuição, por mais pequena que ela seja, se nos juntarmos
para esse fim, se cooperarmos, se unirmos as nossas forças, se dermos a
conhecer a nossa opinião aos que estão no poder. Se utilizarem os
vossos direitos de voto para vocês que vivem em países com
eleições livres não votem mecanicamente, pois o
vosso boletim dentro da urna é um grande acto de responsabilidade.
Vão ao encontro dos vossos representantes eleitos, pressionem-nos,
responsabilizem-nos, verifiquem os seus actos e, quando houver ocasião
de reeleição, se não estiverem satisfeitos, encorajem os
que mereceram a vossa confiança a apresentar-se para um novo mandato. O
que mais podemos fazer?
16/Março/2007
[*]
Jornalista suíça.
Notas
[1]
A Different War: The UN Sanctions Regime in Iraq
(pode encomendar através deste link).
[2] "La Russie appelle les Européens à quitter l'OTAN",
por Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 9 de Março de 2007.
[3] Dennis Halliday, antigo sub-secretário geral e coordenador das
operações humanitárias no Iraque, antecessor de Hans von
Sponeck, demitiu-se em Setembro de 1998, em sinal de protesto contra as
sanções. "Nós estamos em vias de destruir uma
sociedade inteira (
). É ilegal e imoral", declarou ele. A sua
demissão foi seguida pela de Hans von Sponeck, e dois dias mais tarde,
pela de Jutta Burghardt, responsável pelo Programa Alimentar Mundial,
que se associou às declarações dos dois primeiros.
O original encontra-se em
http://www.voltairenet.org/article146143.html
. Tradução de Rita Maia.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
.
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