Georges Labica defende uma frente europeia de "forças de
alternativas"
"O
Não
francês significou a redescoberta da política"
Texto de Carlos Lopes Pereira
[*]
Esteve em Portugal Georges Labica, pensador político de prestígio
mundial, professor da Universidade de Paris e autor, entre outras obras, do
clássico
Dictionnaire critique du marxisme
. Em
Serpa, proferiu uma conferência sobre o
Não
francês no referendo sobre o tratado constitucional europeu. Ao
Avante!
concedeu uma entrevista em que analisa a resposta do povo
francês, aborda as consequências dessa opção para a
Europa e, reflectindo sobre o que fazer face à
mundialização ultraliberal, defende uma "frente de todas as
forças de alternativas" e o desenvolvimento da solidariedade
internacionalista entre os povos do Mundo.
Depois do
Não
no referendo, o que é que mudou em França?
Até agora não se viu qualquer mudança importante,
embora haja coisas novas. O que é importante dizer é que a
votação do
Não
em França foi exemplar e conduziu as autoridades da Europa a suspender
as consultas nos outros países. E isso é significativo porque o
presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, garantia apenas
uns dias depois do referendo que a votação em França seria
retomada até ao momento em que os franceses dissessem
Sim
e, agora, já não se fala mais disso. Por outro lado, Chirac e o
governo de Paris, que permaneceram nos seus lugares, sem colocar a
questão da demissão ou da convocação de
eleições parlamentares antecipadas, estão totalmente
desacreditados no país, onde a percentagem de opiniões
favoráveis ao presidente anda à volta de 24%, a mais baixa quota
de popularidade de toda a história da V República em
França. Também na cena europeia e internacional o
desprestígio de Chirac é grande. Creio que os dirigentes da
Europa têm consciência de que os povos pensam de maneira
análoga à do povo francês e têm medo de os consultar,
há uma clivagem entre os dirigentes e as massas.
Que significado tem para os franceses e para os povos europeus esta
rejeição do tratado constitucional europeu?
Significa muitas coisas. A primeira é uma atitude nova da parte
dos cidadãos franceses. Quando se observa as eleições em
França desde há 15 anos, verifica-se que a
abstenção foi sempre crescente, houve eleições com
60 ou 70% de abstenção. A eleição do Presidente da
República foi feita com 32 ou 33% do corpo eleitoral, nada mais. A
novidade do referendo é que 70% dos cidadãos sentiram-se
motivados para ir às urnas, é a primeira ilação
muito importante. Significa, dito de outra forma, uma redescoberta da
política e do desejo de manifestar a opinião política,
porque até ao referendo a atitude dominante era a de que o
cidadão não exercia o primeiro dos seus direitos, o direito de
votar. Isso parece-me uma lição muito importante. Uma outra
é a de que estamos perante o que deve chamar-se, claramente, uma
votação de classe. Todas as estatísticas o confirmam.
Alguns números: votaram
Não
80% dos operários, cerca de 70% dos empregados, 70% também dos
camponeses, cerca de 60% dos jovens entre os 18 e os 25 anos. É claro
que houve uma "fractura social", como dizia o próprio Chirac
no momento da sua primeira eleição, fractura que traduz uma
clivagem na sociedade entre os ricos, os que vivem de maneira muito
agradável, muito fácil, e os que trabalham, os que não
têm emprego houve uma percentagem de 80% de
Não
entre os desempregados. Tanto à esquerda como à direita
constata-se essa fractura social, o que significa que foi um voto de classe, um
voto popular. A sua expressão política foi uma
rejeição total da sociedade ultraliberal.
"FRACTURA ENTRE ELEITORES E SEUS REPRESENTANTES"
Que ligação houve entre as questões europeias e a
política interna francesa?
Um tema de propaganda dos partidários do
Sim
era que não se devia confundir o referendo sobre a Europa com um voto
sobre a política do governo francês. Os eleitores não
tiveram em conta essa pretensa distinção e por isso verifica-se
que a rejeição da Constituição da Europa é
também a condenação do governo, porque o governo pratica
uma política ultraliberal. E o grave, o muito perigoso da
Constituição, é que pela primeira vez na história a
Constituição pretendia estabelecer uma política. Nenhuma
constituição, nem as constituições dos antigos
países socialistas, consagravam uma política. A
Constituição da Europa propunha uma política, uma
política ultraliberal, uma política de livre mercado, de livre
concorrência, uma política para 50 anos dizia-o Giscard,
que escreveu a Constituição! A rejeição de tudo
isso é muito importante, porque significa que a experiência de
meio século de construção da Europa testemunha que os
povos se cansaram totalmente de decisões que se tomam à revelia
da sua opinião, num lugar abstracto, num lugar metafísico, que
é o Parlamento de Estrasburgo, que não tem poder, ou a
Comissão de Bruxelas dirigida por ninguém...
Depois do
Não
francês e também do
Não
holandês, que futuro para esta União Europeia?
O
Não
francês e o
Não
holandês são diferentes na sua natureza. O
Não
holandês é também de tipo popular, mas vincula-se a
opiniões etnicistas em Holanda. Em França passa-se o mesmo no
sector da extrema-direita, minoritário, que apelou também ao
Não.
Entre parêntesis, deve dizer-se que o
Não
da direita em França foi à volta de 23% e o
Não
da esquerda foi de 77%, quer dizer que o Não é claramente de
esquerda. O caso holandês foi diferente. Para os outros países
europeus, dos que escolheram o referendo houve outros que preferiram a
consulta aos parlamentos , os governos têm medo de consultar os
seus povos. Nos parlamentos, é muito fácil: por exemplo, em
França, a Assembleia Nacional e o Senado, que se reuniram em conjunto,
votaram por 92% a favor da Constituição! Há uma fractura
total entre os eleitores e os seus "representantes", que agora
não representam nada nem ninguém...
E quanto ao futuro?
É difícil prever o que se pode passar. Em teoria, abre-se
a possibilidade de uma espécie de consulta à escala da Europa, de
todos os povos, mas como se pode fazer isso? É um pouco utópico.
O que vai passar-se é que todas as forças no poder vão
mobilizar-se para impedir a expressão das opiniões dos povos
europeus. Um outro traço da campanha do referendo em França foi o
de que todas as autoridades concorreram para impedir o voto no
Não,
para fazer crer que o
Não
era o caos, a catástrofe. Toda a chamada "classe
política", de "esquerda" e de direita, quer dizer, o
Partido Socialista e o partido do governo, pronunciaram-se a favor do
Sim.
Mas também todas as autoridades que se podem apelidar de
"morais" a Igreja Católica, a comunidade judia, a
comunidade muçulmana, o movimento de contestação de
mulheres chamado "Nem putas, nem submissas". Todos os patrões,
os donos da imprensa, todos, à excepção de um ou dois, os
jornalistas, os editorialistas, as televisões e as rádios.
Igualmente as vedetas do cinema e do espectáculo, os consagrados, as
vedetas que são ricas, não os chamados "intermitentes",
que são os pobres do
show business
e do cinema. Todos os intelectuais a que eu chamo intelectuais "hi
fi",
high fidelity,
àqueles a quem se designava, noutro tempo, "os cães de
guarda", todos mobilizaram-se apelando ao voto a favor da
Constituição e tentaram criar um clima de medo, um clima de
ansiedade, invocando a catástrofe.
Mas não tiveram êxito...
Não tiveram êxito, foi uma surpresa... Mesmo nós
ficámos surpreendidos com a diferença entre o
Não
e o
Sim,
que foi de 5 por cento, quer dizer três milhões de pessoas, 80
departamentos em 100...
"O PCF RETOMOU A IDENTIDADE PRÓPRIA"
Para o Partido Comunista Francês, esta batalha pelo
Não
foi uma boa oportunidade para retomar os caminhos revolucionários...
Exacto. Tens toda a razão. É uma coisa muito importante.
Com a luta pelo
Não,
o PCF, na sua qualidade de partido, retomou a sua identidade própria.
Podia ver-se, na campanha, como dizia a gente da direita, que não havia
tristeza. Houve na campanha alegria, entusiasmo, e a mobilização
mais forte foi a dos comunistas. Tudo se passou como se os comunistas tivessem
recuperado a sua identidade, a identidade perdida na sua aliança com a
social-democracia, na sua participação no que se chamava a
"esquerda plural". Na configuração da "esquerda
plural" não havia identidade comunista, os comunistas tinham um
partido reduzido à sua menor expressão que funcionava como uma
tendência do Partido Socialista. Agora, na batalha pelo
Não,
o PCF manifestou-se como um partido comunista, isto é, com uma
política de classe, em particular a secretária nacional,
Marie-George Buffet, teve um comportamento verdadeiramente exemplar. Pode
dizer-se que havia uma suspeição em relação a esta
mulher, porque foi ministra e uma figura da "esquerda plural", mas
tudo acabou. A sua personalidade comunista libertou-se, expressou-se, e isso
é muito importante, porque na situação actual o PCF
não pode pretender liderar o agrupamento das forças de esquerda
que se manifestaram através do voto no
Não,
mas tem agora capacidade para desempenhar uma papel de maior peso numa futura
negociação com os socialistas. Note-se que, no seio do PS, houve
uma consulta interna que se traduziu por 62% a favor da
Constituição, mas, no momento do referendo, 65% dos eleitores
socialistas votaram
Não.
Quer dizer que a direcção do PS perdeu a sua legitimidade, mas
como a gente do poder não se foi embora. Ao contrário do que
passou na Argentina, onde todos se foram embora, em França todos
ficaram... Ficaram e estão lá, no poder, na
direcção dos partidos. Passou-se o mesmo com os Verdes, entre
eles votaram a favor do
Sim
e no momento do referendo os seus eleitores votaram em cerca de 70% no
Não
... É a rejeição das direcções, dos
aparelhos partidários.
Face a tudo o que se passou, coloca-se em França, aos comunistas
e a outras forças revolucionárias, a questão de sair
desta
União Europeia?
Não. Sair da União Europeia, a questão não
se coloca. É uma questão difícil saber o que fazer agora,
em função dos resultados do referendo. Há hipóteses
que a mim parecem ser utópicas, como a demissão do governo
francês, a demissão de Chirac, eleições antecipadas
para eleger uma nova Assembleia Nacional, a demissão das
instâncias de direcção da Europa em Bruxelas, a
possibilidade de permitir aos povos dizer que Europa eles desejam. É
difícil concretizar isto. Mas podemos pôr o dedo sobre um aspecto
que passou, em minha opinião, um pouco despercebido. Pela primeira vez
foi apresentada uma constituição não inspirada pela
existência de uma assembleia constituinte. Uma constituição
sem assembleia constituinte! Por isso, uma hipótese é pensar na
possibilidade de reunir à escala da Europa uma espécie de
Assembleia Constituinte dos Povos que poderia decidir sobre a
Constituição, que seja uma verdadeira constituição.
Porque quando se lê as constituições dos países da
Europa, em quase todas a definição das modalidades de democracia
são textos pequenos, são textos de princípios. Mas o texto
da Constituição Europeia tem 448 artigos, escritos numa linguagem
jurídica, de compreensão muito difícil, inclusive para os
intelectuais, é um livro de 200 páginas grandes!
"NO NORTE HÁ SUL, COMO NO SUL HÁ NORTE"
Então, como concretizar a vontade dos povos da Europa?
Creio que devemos pensar em etapas muito modestas. Quando se olha para a
direita europeia, verifica-se que há uma ligação forte de
todos os capitalistas da Europa. Por exemplo, o presidente do patronato
francês foi promovido, é agora o presidente do patronato europeu.
Há uma aliança, uma aliança muito antiga. E, pela frente,
não há nada, do lado dos trabalhadores. Acho que o primeiro passo
que se deve dar é uma consulta a todas as forças do trabalho na
Europa. Na campanha do referendo em França, dizia-se e esse foi
um argumento dos socialistas que todos os sindicatos da Europa,
representando 60 milhões de trabalhadores, pronunciaram-se a favor do
Sim
e unicamente a CGT decidiu-se pelo
Não.
Há que precisar que a direcção da CGT era
favorável ao
Sim,
mas na consulta interna os trabalhadores decidiram-se pelo
Não,
forçando a direcção a segui-los. À escala da
Europa, não havia 60 milhões de trabalhadores favoráveis
ao
Sim,
o que havia era que a burocracias sindicais da Europa eram favoráveis
à Constituição... Pois eu creio que pode tentar-se uma
consulta a todas as forças sindicais da Europa, poderia haver uma
frente, uma frente muito forte, sobre bases de classe, para lutar. E
também seria uma forma de "internacionalismo" à
escala da Europa uma frente de todas as forças de alternativas,
não forças de compromisso, de consenso, de social-democracia: as
forças dos partidos comunistas, a força da extrema-esquerda que
teve um papel importante no referendo em França, os ex-trotsquistas.
Tudo isso poderia agrupar forças novas, mas a receita para fazer isso eu
não a tenho, nem sei se alguém a tem...
A propósito de internacionalismo, escreveste há pouco
tempo que este
Não
francês implicava solidariedade com os povos em luta do Iraque, da
Palestina, da Venezuela, da Colômbia, com os povos da África,
Ásia e América Latina...
É preciso começar pelo princípio. Com a
mundialização, a globalização, mudou a
composição social na Europa de duas formas, que permitem
compreender o que devemos fazer em relação aos povos do Mundo
inteiro. Na Europa há dois fenómenos interessantes. O primeiro
é que a mundialização, as políticas ultraliberais,
criaram e criam sempre mais desigualdades, quer dizer, para usar uma
expressão muito fácil, que no Norte há Sul, como no Sul
há Norte, a nível das desigualdades. Num país como a
França, que se pretende uma democracia desenvolvida, exemplar e tudo o
que se possa dizer, há cinco milhões de pobres. Há um
milhão de jovens pobres, de jovens que estão nas ruas,
abandonados. O primeiro-ministro que se foi há pouco, Raffarin, dizia a
sua surpresa de constatar que havia um milhão de crianças pobres!
Este é um primeiro aspecto e os números crescem quando se observa
o fenómeno a que os sociólogos chamam, de maneira curiosa,
"trabalhadores pobres". Os desempregados são pobres, claro,
mas há uma categoria de trabalhadores apelidados de "pobres",
que são pobres! Temos cerca de oito ou nove milhões de pessoas
nesta situação.
Falavas de um outro aspecto...
O segundo fenómeno é o da imigração. Os
países europeus que tiveram um império colonial importante, como
Grã-Bretanha, França, Espanha, Portugal, vêem agora os seus
explorados, os oprimidos coloniais que regressam às metrópoles.
Os problemas da imigração são problemas à escala da
Europa, porque há a imigração externa e há a
imigração entre países da Europa com níveis de
desenvolvimento diferentes. Um traço sobre a pretensa
Constituição da Europa é o silêncio sobre a
questão da imigração, os estrangeiros são
condenados a um estatuto de não-cidadãos, se não a um
estatuto de possíveis expulsos da Europa, que se apresenta como uma
fortaleza defendendo-se da invasão dos "bárbaros", dos
seus ex-colonizados... Por tudo isso, acho que tem de haver necessariamente a
solidariedade dos povos da Europa com os outros povos do Mundo, numa
aliança, numa tomada de consciência superior à que se
encarna no que chama agora a "altermundialização" ou
"antimundialização", porque a
"altermundialização" é muito simpática
mas não é uma coisa de classe, de luta. E a consciência da
solidariedade entre todos os oprimidos é algo muito forte, temos de
criar condições para que essa solidariedade se desenvolva, rumo a
um verdadeiro internacionalismo.
PARIS AINDA NÃO TEM UMA RUA COM O NOME DE ROBESPIERRE...
Que repercussão teve em França a morte de Álvaro
Cunhal e do general Vasco Gonçalves?
Pouco significativa e muito simbólica. O desaparecimento dessas
duas grandes figuras passaram despercebidas, de forma voluntária.
Não falo de pequenos órgãos de imprensa ou de
L'Humanité,
mas aquilo a que se chama a "grande imprensa", os
media
sob controlo do poder, fizeram um silêncio total. Um diário como
Le Monde
publicou a notícia da morte de Vasco Gonçalves com o mesmo
destaque que daria a um artista de variedades de segunda categoria: a
notícia não tinha nem três colunas, não houve um
editorial. Quando se fala de pensamento único, da
dominação ultraliberal, não é mitologia, é
uma realidade que se verifica quando desaparecem homens tão exemplares,
tão heróicos como Álvaro Cunhal ou Vasco Gonçalves.
E, contudo, quando caiu o fascismo em Portugal, em França todo o mundo
conhecia Álvaro Cunhal, ele era o símbolo da luta e da
resistência do povo português. O ódio dos governantes de
hoje em Portugal e o ódio das burguesias da Europa contra homens como
Vasco Gonçalves não mudou, perpetua-se. Faz-me pensar no caso de
Robespierre: até agora, mais de dois séculos depois da
Revolução Francesa, persiste o ódio da burguesia contra
ele não há uma rua, um beco em Paris com o nome de
Robespierre...
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[*]
Jornalista.
Textos de Labica já publicados por resistir.info:
O rapto da Europa
O exemplo do Iraque
Que se vayan todos (o não francês à Europa)
Carta aberta de intelectuais à opinião pública internacional
La preuve par l'Irak
(p/ descarregamento)
O original encontra-se nos semanários
Avante!
e
Alentejo Popular,
edições de 07/Julho/05.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
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