O engodo e o dinheiro do engodo
A surpresa é total, a informação inédita, o furo
é incrível: a fraude e a evasão fiscais vicejariam nos
quatro cantos do planeta, por meio dos paraísos fiscais. Foi
preciso nada menos que um consórcio de 96 media internacionais e de 400
jornalistas para apoiar uma tal revelação, doravante conhecida sob
a expressão (forçosamente) inglesa de "Paradise papers".
Mais ainda do que nos casos anteriores (Primavera 2016, Outono 2016), foi
desencadeada uma torrente editorial listando os segredos das multinacionais
mencionadas, cobrindo de opróbrio os bilionários implicados. A
seguir aos grandes media, os responsáveis políticos, com todas as
tendências confundidas em França e alhures foram
prontos e (quase) unânimes a indignarem-se.
Os ministros das Finanças dos 28 de imediato comprometeram-se a
reforçar a luta contra as "práticas fiscais
agressivas", ainda que legais. A Comissão Europeia apontou com
meias palavras os Estados membros que arrastam os pés como suspeito de
um dumping fiscal deselegante (Malta, Irlanda, Luxemburgo...). Em Bruxelas,
bons espíritos oportunamente aproveitaram a ocasião para martelar
que a regra da unanimidade que subsiste apenas do domínio fiscal
para preservar um dedo de soberania nacional estava decididamente
obsoleta.
Face a um tal consenso, convém preservar o espírito
crítico. E em primeiro lugar sublinhar que
a indignação face a prática "chocantes"
substitui o terreno da política pelo da moral o que é o
meio mais seguro de enganar os povos.
Em seguida, a insistência recorrente quanto à necessidade combater
este "rumo da globalização" põe a pergunta:
será mesmo do "rumo" que se trata? No fundo, a mensagem
subliminar dirigida à plebe é a seguinte: se apenas
chegássemos a limitar e a civilizar a "cupidez" das grandes
firmas e a "avidez" dos bilionários, poderíamos
finalmente lucrar com uma globalização feliz.
Ora, é preciso recordar esta verdade que nunca provoca manchetes:
a evasão fiscal não poderia existir de modo algum, pelo menos
nesta escala, se a livre circulação dos capitais não
tivesse sido erigida em artigo de fé, em particular nos tratados
europeus.
Quem se lembra que antes da década de 1980 todo movimento de capitais
era estritamente regulamentado e devia ser declarado? A União Europeia
dinamitou este "arcaísmo".
Portanto, a indignação oficial contra a evasão fiscal
poderia ser uma espécie de engodo, obscurecendo deliberadamente a
verdadeira natureza do fenómeno: uma escolha política de
"liberdade", que os oligarcas globalizados pretendem manter a todo
custo.
Por outro lado, dão-nos a entender, tudo poderia correr bem melhor se as
multinacionais e os hiper-ricos contribuíssem razoavelmente para os
orçamentos públicos através dos impostos.
Mas há uma questão que nunca é colocada: como se
constituem os milhares de milhões de lucros e de fortunas?
Para citar apenas um exemplo, o riquíssimo Xavier Niel,
proprietário de Free (e accionista de referência do
Monde
) é coberto de vergonha porque ele teria abrigado suas pequenas
economias nos trópicos. Mas quando um documentário revelou
recentemente a verdadeira origem da sua fortuna a
exploração pura e dura de milhares de assalariados, verdadeiros
escravos modernos a repercussão mediática foi ligeiramente
mais modesta... E não é de admirar: este é o
próprio fundamento do sistema.
Pois o problema não é em primeiro lugar o que revertem ou
não os detentores de capitais, mas a capacidade destes de
prosperar unicamente na base da exploração do trabalho daqueles
que não têm senão os seus braços e a sua
cabeça para viver. Colocar o projector da indignação na
consequência pode constituir o meio mais seguro de escamotear a natureza
profunda do problema. Na
Opera dos três vintens,
de Bertold Brecht, um dos seus heróis dizia:
"o que é o assalto a um banco comparado à
fundação
de um banco?"
.
Enfim, aqui e ali, alguns dão a entender e explicam: se não
limitarmos a evasão fiscal dos oligarcas, corremos o risco de o
"populismo" se desenvolver ainda mais. Mas tentar surfar sobre a
cólera popular para melhor distrair do essencial não será,
precisamente, uma boa definição do "populismo"?
À força de brincar com o fogo (da indignação), os
aprendizes de feiticeiros mediáticos poderiam um dia ter algumas
surpresas.
27/Novembro/2017
Ver também:
Para onde tem ido todo o excedente?
[*]
Redactor-chefe de
Ruptures.
O original encontra-se em
https://ruptures-presse.fr/actu/paradise-evasion-fortune-leurre-niel/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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