A jogada empresarial do clima
Não respirem. Há uma guerra feroz contra as emissões de
CO2 e vocês estão a libertar CO2 cada vez que respiram. A campanha
dos multimédia contra o aquecimento global, que está a saturar os
nossos sentidos e que insiste que o inimigo é o aumento do componente
CO2 dos gases com efeito de estufa, não faz prisioneiros: ou vocês
estão connosco ou estão contra nós. Ninguém pode
pôr em causa a nova ortodoxia nem se atreve ao pecado da emissão.
Se Bill Clinton se fosse candidatar agora à presidência iria jurar
que não respira.
Como foi que chegámos a isto? Como é que um assunto ainda ontem
tão misterioso que interessava apenas a meia dúzia de cientistas
especialistas aparece tão repentinamente no nosso discurso? Como
é que a especulação científica evoluiu tão
rapidamente para profecias unânimes de apocalipse? Estas perguntas
não são hipotéticas mas perguntas históricas e
têm resposta. Acontecimentos destes não surgem por acaso; o seu
aparecimento é provocado. Geralmente as nossas ideias têm
tendência para não serem as nossas próprias ideias:
raramente lá chegamos por nós mesmos e pelo contrário
absorvemo-las a partir do mundo à nossa volta. Isto é
particularmente óbvio quando as nossas ideias acabam por ser as mesmas
de quase toda a gente, mesmo de pessoas com quem nunca nos encontrámos
nem comunicámos. De onde é que apareceu esta ideia sobre a crise
urgente do aquecimento global e das emissões de CO2 e como é que
ela entrou nas nossas cabeças, se apenas alguns de nós leram, ou
tentaram ler, um simples documento científico sobre os gases com efeito
de estufa? A resposta a esta pergunta não é difícil, como
poderia parecer, pela simples razão de que é necessário
uma grande quantidade de dinheiro e de recursos para instilar uma ideia em
tantos espíritos ao mesmo tempo e tão rapidamente, e os
únicos com capacidade e meios para tal são o governo e as grandes
empresas, em conjunto com os seus mecanismos multimédia. Para efectuar
uma viragem tão significativa na atenção,
percepção e crença é necessário um
esforço substancial e portanto visível e demonstrável.
Até há bem pouco tempo a maior parte das pessoas era indiferente
ou mostrava-se confundida ou relativamente despreocupada com esta
questão, apesar de um consenso crescente entre cientistas e
ambientalistas sobre os possíveis perigos da mudança do clima. Os
activistas do aquecimento global, como Al Gore, apressaram-se a deitar a
responsabilidade por essa ignorância, confusão e
despreocupação da população a uma campanha de
propaganda organizada bem financiada pelas companhias de petróleo e
gás e pelas suas organizações de fachada,
amigalhaços políticos, organizações de publicidade
e relações públicas, e lacaios dos meios de
comunicação, que tranquilizaram as pessoas mostrando
complacentemente algumas dúvidas e cepticismos sobre as
preocupações dos cientistas. E tinham razão, houve de
facto uma enorme campanha organizada, que está hoje amplamente
documentada. Contudo, o que os activistas do aquecimento global
convenientemente se esqueceram de assinalar é que a mensagem deles,
alarmista, tem sido martelada nas nossas cabeças exactamente pelos
mesmos meios, embora por diferentes mãos empresariais. Esta campanha,
que pode vir a provar ser de longe muito mais significativa, tem até
agora recebido pouca atenção.
Nos últimos quinze anos temos vindo a ser alvo de duas campanhas
empresariais rivais, cada uma delas reflectindo diferentes estratégias
empresariais apreciáveis, que reflectem uma divisão no seio dos
círculos da elite. A questão da mudança do clima tem sido
atacada por estes dois grupos opostos de elites, dando a ideia de que apenas
existem estes dois lados. A primeira campanha, que apareceu nos finais dos anos
80, fazendo parte da ofensiva da "globalização"
triunfalista, procurou desacreditar abertamente a especulação
sobre a mudança do clima negando, pondo em dúvida,
ridicularizando e menosprezando as aflitivas afirmações
científicas que podiam pôr em perigo o entusiasmo para uma aberta
iniciativa capitalista. Foi concebida e até certo ponto
construída sobre uma campanha anterior feita pela indústria do
tabaco que mostrava cepticismo sobre a evidência crescente dos efeitos
maléficos do tabaco para a saúde. Na sequência desta
tentativa de propaganda "negativa", todas e quaisquer críticas
sobre a mudança de clima e o aquecimento global passaram a ser
imediatamente identificadas com este lado do debate.
A segunda campanha positiva, que surgiu dez anos depois, na sequência de
Quioto e no auge do movimento anti-globalização, procurou
apropriar-se da questão ambiental, declarando-se a favor dela e
utilizando-a no interesse das empresas. Moldada sobre um século de
apropriação liberal corporativa dos movimentos de reforma
populares e regimes reguladores, visava apropriar-se da questão com o
objectivo de moderar as suas implicações políticas,
tornando-a assim compatível com os interesses económicos,
geopolíticos e ideológicos empresariais. A campanha empresarial
sobre o clima pôs assim a ênfase na primazia das
soluções segundo as "leis do mercado" ao mesmo tempo
que insistia na uniformidade e previsibilidade de regras e
regulamentações obrigatórias. Simultaneamente elevava a
questão do clima global a uma obsessão, a uma
preocupação totalista para afastar as atenções das
contestações radicais do movimento de justiça global. Na
sequência desta campanha, todo e qualquer opositor dos
"contraditores" foi identificado e, o que é mais
importante, identificou-se a si mesmo, voluntariamente ou não com
os cruzados empresariais do clima.
A primeira campanha, que foi dominante durante os anos 90, sofreu bastante com
a denúncia e encontrava-se relativamente moribunda no início da
era Bush, embora não tenha perdido a influência no interior da
Casa Branca (e no gabinete do primeiro-ministro). A segunda, que contribuiu
para a difusão de um movimento radical, conseguiu gerar a actual
histeria sobre o aquecimento global, hoje canalizada de forma segura nas
agendas pró-empresariais afastando quaisquer confrontações
sérias com o poder empresarial. O êxito nos meios de
comunicação despertou o eleitorado e obrigou mesmo os
contraditores mais inflexíveis a cultivar hipocritamente uma imagem mais
verde. Entretanto, e o que é mais importante, as duas campanhas opostas
conseguiram em conjunto eliminar qualquer espaço em que fosse
possível rejeitar as duas.
Nos finais dos anos 80, as empresas mais poderosas do mundo desencadearam a sua
revolução "globalizante", invocando sem cessar os
inevitáveis benefícios do comércio livre e, durante todo o
processo, pondo de lado as questões ambientais e reduzindo o movimento
ambientalista a acções de retaguarda. Apesar disso, o interesse
pela alteração do clima continuou a aumentar. Em 1988, cientistas
do clima e políticos instituíram o Painel Intergovernamental para
as Alterações Climáticas (IPCC - Intergovernmental Panel
on Climate Change) para se manterem actualizados sobre o assunto e publicar
relatórios periódicos. Numa reunião em Toronto, trezentos
cientistas e políticos de quarenta e oito países publicaram um
pedido de acção para a redução das emissões
de CO2. No ano seguinte, cinquenta empresas de petróleo, de gás,
de carvão e de fabrico de automóveis e químicos em
conjunto com as suas associações comerciais formaram a
Coligação para a Mudança Global (GCC - Global Change
Coalition), com o apoio do gigante das relações públicas
Burson-Marsteller. O seu objectivo declarado era semear dúvidas sobre as
afirmações dos cientistas e evitar esforços
políticos para reduzir as emissões de gases com efeitos de
estufa. O GCC deu milhões de dólares em
contribuições políticas e em apoio a uma campanha de
relações públicas que alertava para que as tentativas mal
aplicadas para reduzir as emissões de gases com efeitos de estufa
através das restrições à queima de
combustíveis fósseis iriam sabotar a promessa da
globalização e provocariam a ruína económica. Os
esforços do GCC conseguiram pôr em suspenso a questão da
alteração do clima.
Entretanto, na sequência de um levantamento indígena em Chiapas em
Janeiro de 1994, marcado para o primeiro dia da implementação do
Acordo de Comércio Livre Norte-Americano, o movimento
anti-globalização irrompeu num protesto mundial contra o
capitalismo de mercado e a depredação empresarial, incluindo a
destruição do ambiente. Cinco anos depois o movimento aumentara
em coesão, em número, em força e militância e
uniu-se em torno dos chamados "dias globais de acção"
em todo o mundo, em especial em acções directas nas cimeiras do
G8 e nas reuniões do Banco Mundial, do Fundo Monetário
Internacional e da nova Organização Mundial do Comércio,
atingindo o seu auge ao boicotar as reuniões da OMC em Seattle em
Novembro de 1999. O movimento, que era formado por uma série muito lata
de diversas organizações de base unidas na oposição
à "agenda empresarial" global, abalou a campanha de
globalização da elite até à raiz. Foi neste
contexto pesado que os signatários da Convenção Quadro
sobre a Mudança do Clima das NU, formulada por representantes de 155
nações na Cimeira da Terra em 1992, no Rio de Janeiro, reuniu no
final de 1997, em Quioto e estabeleceu o chamado Protocolo de Quioto com o
objectivo de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa por meio
de metas e do mercado do carbono. O tratado de Quioto, ratificado com muito
atraso apenas no final de 2004, foi o único acordo internacional sobre a
mudança do clima e tornou-se de imediato o foco do debate
político sobre aquecimento global.
A oposição empresarial estava precavida contra Quioto. No
verão de 1997 o Senado americano aprovou unanimemente uma
resolução exigindo que um tratado desse tipo teria que incluir a
participação e a aceitação dos países em
desenvolvimento, em especial das novas potências como a China, a
Índia e o Brasil que no entanto tinham sido excluídas da primeira
ronda do Protocolo de Quioto. Os opositores empresariais a Quioto no GCC, tendo
como pano de fundo o movimento da justiça global em ascensão,
condenaram o tratado como sendo uma conspiração
"socialista" ou do "terceiro mundo" contra os países
desenvolvidos do ocidente.
No entanto, a convergência do movimento de justiça global e Quioto
obrigaram parte da elite a repensar e a reagrupar-se, o que criou uma
divisão nas fileiras empresariais relativamente à questão
da mudança do clima. As deserções do GCC começaram
em 1997 e três anos depois incluíam actores tão importantes
como a Dupont, a BP, a Shell, a Ford, a Daimler-Chrisley e a Texaco. Entre os
últimos fiéis do GCC estavam a Exxon, a Mobil, a Chevron e a
General Motors. (Em 2000, o GCC acabou por desaparecer mas foram criadas outras
organizações empresariais de fachada com os mesmos ideais para
levar a efeito a campanha "negativa", que continua).
Os que se afastaram do GCC cedo se aglutinaram em novas
organizações. Uma das primeiras foi o Centro Pew sobre
Mudança do Clima Global, fundado pela doação
filantrópica da fortuna Sun Oil/Sunoco. A administração do
novo Centro foi presidida por Theodore Roosevelt IV, bisneto do presidente da
Era Progressista (e ícone dos conservadores) e director-geral do banco
de investimentos Lehman Brothers. Com ele na administração estava
o director da firma de investimentos Castle-Harlan e ex-presidente da Northeast
Utilities, e também advogado empresarial veterano Frank E. Loy, que fora
o principal negociador da administração Clinton no
comércio e na alteração do clima.
Logo de início o Centro Pew instituiu o Conselho Directivo dos Assuntos
Ambientais, presidido por Loy. Os primeiros membros do conselho incluíam
a Sunoco, a Dupont, a Duke Energy, a BP, a Royal Dutch/Shell, a Ontario Power
Generation, a DTE (Detroit Edison) e a Alcan. Distanciando-se do GCC, o
conselho declarou que "aceitamos as opiniões da maior parte dos
cientistas de que se sabe o suficiente sobre a ciência e os impactos
ambientais da alteração do clima para que tomemos medidas para
enfrentar as suas consequências"; "O mundo dos negócios
pode e deve dar passos concretos hoje nos EUA e fora dele para avaliar as
oportunidades relativas à redução de emissões
e investir em produtos, práticas e tecnologias novos e mais
eficazes". O Conselho sublinhava que a alteração do clima
devia ser tratada através de "mecanismos com base nas leis do
mercado" e adoptando "políticas razoáveis", e
exprimia a crença "de que as companhias que desenvolverem
acções atempadas de estratégias e de política
climatérica obterão vantagem competitiva sustentada sobre os seus
pares".
No início de 2000, "líderes mundiais de
negócios" reunidos no Fórum Económico Mundial em
Davos, na Suiça, declararam que "a maior ameaça que o mundo
enfrenta é a alteração do clima". Nesse Outono,
muitos dos mesmos actores, incluindo a Dupont, a BP, a Shell, a Suncor, a
Alcan, a Ontario Power Generation, e ainda o fabricante francês de
alumínio Pechiney, uniram forças com o grupo de apoio americano
Environmental Defense e formaram a Parceria para a Acção
Climática (PAC). Os directores da Environmental Defense incluíam
Frank Loy do Centro Pew e directores do Carlyle Group, dos Berkshire Partners e
da Morgan Stanley e o presidente da Carbon Investments. Secundando a
missão do Centro Pew, e pouco menos de um ano depois de a "Batalha
de Seattle" ter feito encerrar os trabalhos da Organização
do Comércio Mundial em oposição ao regime de
globalização empresarial, a nova organização
reafirmava a sua crença nos benefícios do capitalismo de mercado.
"O objectivo principal da Parceria é defender mecanismos com base
nas leis do mercado como meio para efectuar acções atempadas e
credíveis para a redução das emissões de gases com
efeito de estufa que sejam eficazes e económicas". Desde o seu
anúncio inicial, esta mensagem foi repetida como uma ladainha:
"benefícios dos mecanismos de mercado", "regras
orientadas pelo mercado", "programas com base nas leis do mercado
podem fornecer os meios para atingir as metas da protecção
ambiental e, em simultâneo, as do desenvolvimento económico",
"o poder dos mecanismos de mercado para contribuir para as
soluções para a alteração do clima". Na
Primavera de 2002, o primeiro relatório da Parceria afirmava
orgulhosamente que as companhias da PAC estão na vanguarda da nova
área da gestão dos gases com efeitos de estufa". "A PAC
não só está a conseguir reduções reais nas
emissões de aquecimento global", assinalava o relatório,
"como está a fornecer um corpo de experiência prática,
demonstrando como reduzir a poluição enquanto se continua a ter
lucros".
Este potencial para obter lucros a partir da alteração do clima
chamou a atenção ávida dos banqueiros de investimentos,
alguns dos quais eram actores centrais da PAC através das suas
ligações com os conselhos de administração do
Centro Pew e da Environmental Defense. A Goldman Sachs tornou-se líder
do grupo; dado possuir centrais de energia através da Cogentrix e de
clientes como a BP e a Shell, a empresa de Wall Street estava mais que alertada
para as oportunidades. Em 2004 a companhia começou a explorar as
possibilidades de "criação de mercado" e no ano
seguinte fundou o seu Centro para Mercados Ambientais, com o anúncio de
que "a Goldman Sachs procurará agressivamente a
criação do mercado e oportunidades de investimento nos mercados
ambientais". A empresa indicava que o Centro se empenharia na
investigação para desenvolver opções de
política pública a fim de instituir mercados em torno da
alteração climática, incluindo a concepção e
promoção de soluções reguladoras para a
redução das emissões de gases com efeitos de estufa. A
empresa também anunciava que a Goldman Sachs "iria assumir o
comando na identificação das oportunidades de investimento em
energias renováveis"; nesse ano o banco de investimentos adquiriu a
Horizon Wind Energy, investiu nos fotovoltaicos com a Sun Edison, tratou do
financiamento para a Northeast Biofuels, e comprou acções na
Iogen Corporation, que foi pioneira na conversão da palha, caules de
milho e pastagens em etanol. A companhia também se dedicou "a
actuar como criador de mercado no comércio de emissões" de
CO2 (e S02), assim como em áreas como os "derivados do clima",
"créditos de energias renováveis" e outros
"produtos relacionados com o clima". "Estamos convencidos",
proclamava a Goldman Sachs, "que a gestão de riscos e oportunidades
que nasce da alteração do clima e da sua
regulamentação virá a ser particularmente significativa e
irá conquistar uma atenção cada vez maior dos
participantes no mercado de capitais".
Entre esses participantes do mercado de capitais encontrava-se o
ex-vice-presidente dos EUA, Al Gore. Gore tinha um interesse antigo nas
questões ambientais e representou os EUA em Quioto. Também tinha
ligações familiares antigas com a indústria da energia
através da amizade do seu pai com Armand Hammer e dos seus interesses
financeiros na companhia de Hammer, a Occidental Petroleum, que o filho herdou.
Em 2004, quando a Goldman Sachs estava a avançar a todo o vapor nas suas
iniciativas de criação do mercado de alteração do
clima à procura de lucros verdes, Gore fez equipa com os executivos da
Goldman Sachs, David Blood, Peter Harris e Mark Ferguson, para fundar a empresa
de investimentos ambientais com sede em Londres, a Generation Investment
Management (GIM), com Gore e Blood como timoneiros. Em Maio de 2005, Gore, em
representação da GIM, discursou na Cimeira dos Investidores
Institucionais sobre o Risco do Clima e sublinhou a necessidade de os
investidores pensarem a longo prazo e de integrarem as questões
ambientais nas suas análises de acções. "Estou
convencido que a integração das questões relacionadas com
a alteração do clima nas vossas análises sobre quais as
acções em que vale a pena investir, a sua quantidade, e durante
quanto tempo, é mesmo um bom negócio", explicou Gore aos
Investidores reunidos. Aplaudindo a decisão de seguir nesta
direcção anunciada no dia anterior pelo presidente da General
Electric, Jeff Immelt, Gore declarou que "Estamos aqui reunidos num
momento extraordinariamente esperançoso, quando os lideres no sector de
negócios começam a fazer as suas
movimentações". Nessa altura Gore já estava a
trabalhar no seu livro sobre o aquecimento global, 'Uma Verdade Inconveniente'
[1]
e nessa mesma primavera começou os preparativos para fazer um filme
sobre o mesmo assunto.
O livro e o filme do mesmo nome apareceram em 2006, com uma enorme
promoção e um êxito imediato na indústria do
entretenimento (o filme acabou por arrebatar um Prémio da Academia).
Estes dois veículos alargaram muito o alcance dos criadores de mercados
da alteração do clima, cujos esforços enalteciam
explicitamente. "Há um número cada vez maior de executivos
de negócios americanos que está a começar a levar-nos na
direcção certa", exultava Gore, acrescentando que
"está também em curso uma grande mudança na
comunidade dos investimentos". O livro e o filme reflectem fielmente e
engrandecem as mensagens centrais da campanha empresarial. Tal como os seus
colegas do Centro Pew e da Parceria para Acção Climática,
Gore sublinhou a importância de usar os mecanismos do mercado para
enfrentar o desafio do aquecimento global. "Uma das chaves para resolver a
crise do clima", escreveu, "envolve a procura de meios para utilizar
a força poderosa do capitalismo de mercado como aliado". Gore
repetiu o seu conselho aos investidores sobre a necessidade de
estratégias de investimento a longo prazo e da integração
de factores ambientais nos cálculos do negócio, salientando
orgulhosamente que os líderes de negócios já tinham
começado "a adoptar uma visão mais ampla de como o
negócio pode manter os seus lucros ao longo do tempo". O
único executivo empresarial citado no livro, ao longo de duas
páginas, era o presidente da General Electric, Jeffrey Immelt, que
explicava sucintamente a razão e a finalidade do objectivo
prioritário do exercício: "Estamos no momento em que a
melhoria ambiental vai tornar-se rentável".
No início de 2007 a campanha empresarial tinha aumentado
significativamente a sua actividade, com a criação de diversas
novas organizações. O Centro Pew e a Parceria para a
Acção Climática criaram nessa altura uma entidade
intermédia, a Parceria Americana para Acção pelo Clima
(USCAP). Os membros da USCAP incluíam os actores chave das
acções iniciais, como a BP, a Dupont, o Centro Pew e a
Environmental Defense, e acrescentou outros, incluindo a GE, a Alcoa, a
Caterpillar, a Duke Energy, a Pacific Gas and Electric, a Florida Power and
Light, e a PNM, companhia central de serviços do Novo México e
Texas. A PNM tinha-se juntado pouco tempo antes à Cascade Investments do
sempre atento Gates da Microsoft para formar uma nova companhia de energia
não regulamentada virada para as oportunidades de crescimento no Texas e
no oeste dos EUA. O presidente da PNM Jeff Sterba era também presidente
da Task Force para a Mudança do Clima do Edison Electric Institute.
Também aderiram à USCAP o Conselho de Defesa dos Recursos
Naturais, o Instituto de Recursos Mundiais, e o banco de investimentos Lehman
Brothers cujo director-geral Theodore Roosevelt IV era presidente do conselho
de administração do Centro Pew e em breve veio a ser
também presidente do novo Centro Global para a Mudança do Clima,
de Lehman. Tal como a
Newsweek
assinalou (12/Março/2007), "Wall Street está a passar por
uma alteração climática", reconhecendo que "a
forma de apanhar o verde é tornar-se verde".
Em Janeiro de 2007, a USCAP publicou "Um Apelo à
Acção", uma "tentativa não partidária
guiada pelos executivos de topo das organizações membros". O
"Apelo" declarava a "necessidade urgente de um enquadramento
político da alteração do clima", sublinhando que
"é necessário um sistema impositivo que estabeleça
exigências claras, previsíveis e com base nas leis do mercado para
reduzir as emissões dos gases com efeito de estufa". A USCAP
adiantava um "plano para a imposição de uma abordagem
orientada pelo mercado e à escala económica para a
protecção do clima", que recomendasse um programa de
"cap and trade"
[2]
que aliasse a criação de metas a um mercado global de carbono
para a comercialização de autorizações e
créditos. Condenada desde logo pelos países em desenvolvimento
como "colonialismo do carbono", o comércio do carbono
tornou-se a nova ortodoxia. O plano também apelava para um
"programa nacional para acelerar a tecnologia, a
investigação, o desenvolvimento e o posicionamento
estratégico e medidas para encorajar a participação dos
países em desenvolvimento como a China, a Índia e o Brasil,
insistindo em que "no final de contas a solução tem que ser
global". Segundo o porta-voz da USCAP, Jeff Immelt, director geral da
General Electric, "estas recomendações deveriam catalisar
uma acção legislativa que encoraje a inovação e
estimule o crescimento económico ao mesmo tempo que melhore a
segurança energética e o equilíbrio do
comércio".
No mês seguinte apareceu outra organização empresarial
climática, desta vez especificamente dedicada a pregar o novo evangelho
do aquecimento global. Presidida por Al Gore do Generation Investment
Management, a Aliança para Protecção do Clima
incluía entre os seus membros o já familiar Theodore Roosevelt IV
da Lehman Brothers e do Centro Pew, o ex-conselheiro da segurança
nacional Brent Scowcroft, Owen Kramer da Boston Provident, representantes da
Environmental Defense, o Conselho de Defesa dos Recursos Naturais e a
Federação Nacional pelos Animais Selvagens, e três
ex-administradores da Organização de Protecção
Ambiental. Utilizando "técnicas de comunicação
inovadoras e de longo alcance", explicou Gore, "a Aliança para
Protecção do Clima está a efectuar um exercício de
persuasão de massas sem precedentes" a campanha
multimédia contra o aquecimento global passou a saturar os nossos
sentidos. Não respirem.
Se por um lado a campanha empresarial sobre a alteração do clima
alimentou uma preocupação popular febril com o aquecimento
global, também conseguiu muito mais. Tendo surgido no meio do movimento
mundial de justiça global, conseguiu repor a confiança naquelas
fés e forças que esse movimento tanto se esforçou por
denunciar e contestar: empresas de âmbito global e de
maximização de lucros e as suas imensas
organizações e agendas; a autoridade inquestionável da
ciência e o seu corolário na salvação através
da tecnologia, e o benefício do mercado auto-regulador com a sua
panaceia de prosperidade através do livre mercado e dos seus poderes
mágicos, que transforma em bens comerciáveis tudo aquilo em que
toca, até mesmo a própria vida. Todas as verdades evidentes
reveladas por aquele movimento sobre as injustiças, os prejuízos
e as desigualdades semeados e sustentados por estes poderes e crenças
estão agora enterradas, postas de lado na corrida apocalíptica
para a luta contra o aquecimento global. Explicitamente comparada a uma guerra,
este desafio épico exige uma atenção superficial e um
empenhamento total, sem distracções desse tipo. Não
é altura, nem há necessidade, de questionar uma sociedade
deformada ou de reexaminar os seus mitos subjacentes. As culpas e as
responsabilidades foram de novo remetidas para o indivíduo, o
responsável pelo pecado original, o pecador familiar que merece o
castigo pelos seus pecados, pelos seus excessos, predisposto pela sua cultura
piedosa e agora premiado pela sua disciplina e sacrifício. Na abertura
da época de basebol de 2007, o dono do Toronto Blue Jays postou-se em
frente do écran de vídeo gigante, uma extravagância
electrónica, no meio de um círculo de logótipos
empresariais e de anúncios, e exortou toda a multidão, de forma
ridícula, a sair e a comprar uma lâmpada eléctrica de
consumo económico. Foi muito aplaudido.
No seu livro campeão de vendas de 2005 'Weather Makers', Tim Flannery
apelava aos seus leitores para lutar na "nossa guerra sobre a
mudança do clima". Com uma mensagem para a edição
canadiana escrita por Mike Russill, ex-presidente do gigante da energia Suncor
e hoje chefe da World Wildlife do Canadá, o livro reflecte bem a
campanha empresarial. Todos nós "temos que acreditar que a luta
é para ganhar em termos sociais e económicos", insiste
Russill, "e que não temos que mudar dramaticamente a nossa forma de
viver". "A coisa mais importante a fazer", repete Flannery,
"é que todos nós podemos fazer a diferença e ajudar a
combater a alteração do clima praticamente sem custos para o
nosso estilo de vida". "A transição para uma economia
livre de carbono é absolutamente possível", exulta,
"porque temos toda a tecnologia de que precisamos para tal".
"Uma armadilha altamente poderosa na via para a estabilidade do
clima", avisa porém, "é a propensão que alguns
grupos têm para atravessar a sua carroça ideológica em
frente do avanço da sustentabilidade". "Para enfrentar uma
emergência grave", aconselha, "é preferível
ser-se simples de espírito". O livro é inspirador, incitando
o leitor a lutar contra esta ameaça global com ingenuidade, entusiasmo e
esperança, com excepção de um pequeno pormenor, escondido
no meio do texto, que atormenta o leitor atento. "Como a
preocupação com a alteração do clima é
tão recente, e a questão é tão
multidisciplinar", assinala Flannery, "há poucos verdadeiros
especialistas nesta área e ainda há menos que possam articular
qual o significado deste problema para o grande público e o que é
que devemos fazer quanto a isso".
A campanha empresarial tem feito mais do que criar apenas oportunidades de
mercado para escritores de ciência popular da moda como Flannery. Criando
uma contenda estritamente maniqueísta entre contraditores malvados e
descuidados, por um lado, e defensores esclarecidos sobre o aquecimento global,
por outro, também levou a uma credulidade incaracterística
jornalistas de esquerda, habitualmente astutos politicamente. 'Heat', o
apaixonado manifesto de George Monbiot de 2006 sobre este assunto, é
embaraçoso pela sua perspectiva afunilada e pela sua deferência
ingénua para com a autoridade da ciência. "Impedir a
alteração do clima", afirma, "tem que ser um projecto
prioritário. Se falharmos nesta missão, falharemos em tudo o
mais". "É preciso um corte dada a importância das
exigências da ciência", declara; temos que adoptar "a
posição determinada pela ciência e não a
posição determinada pelos políticos", como se
existisse alguma ciência que não seja também
política.
Monbiot não poupa os golpes contra a "indústria da
negação", excomungando os partidários empresariais
negativos pela sua "idiotice" e sugerindo sarcasticamente que dentro
em breve "a negação da alteração do clima
será uma coisa tão estúpida como a negação
do Holocausto, ou a teimosia de que a SIDA pode ser curada com raiz de
beterraba". Mas não tem uma palavra de reconhecimento e muito menos
de crítica para os partidários do outro lado cuja mensagem ele
espalha talvez inconscientemente com tanta paixão. E também aqui,
curiosamente, um pequeno parágrafo escondido no meio do texto,
aparentemente desligado do resto, perturba o leitor entusiasmado. "Nada
disto pretende sugerir", assinala Monbiot de passagem, "que a
ciência não deva estar sujeita ao cepticismo e à
crítica constante, ou que os ambientalistas não devam ser tidos
em consideração
"
Os propagandistas da alteração do clima não têm mais
direito a estar errados do que os outros todos. "Se enganarmos o
público", concede, "corremos o risco de sermos
desmascarados", acrescentando que "também precisamos de saber
que não estamos a perder o nosso tempo: não vale a pena dedicar a
nossa vida a lutar contra um problema que não existe". Talvez aqui
estejam alguns restos de verdade infiltrados por entre as linhas compostas,
apontando para a abertura de outro espaço e de outro momento.
[1] Ver
A verdade incómoda do profeta Al Gore & a incomodidade da verdade
[2]
NT - "cap and trade" (tecto e comercialização) -
abordagem administrativa utilizada para controlar a poluição
disponibilizando incentivos económicos para conseguir a
redução das emissões de agentes poluentes. Estabelece-se
um tecto
(cap)
para a quantidade total de emissão possível de um poluente. As
empresas que emitem esse poluente recebem créditos ou
autorizações que correspondem ao direito de emitir uma
determinada quantidade. O valor total dos créditos não pode
exceder o tecto, limitando as emissões totais a esse nível. As
empresas que poluem para além das suas autorizações
têm que comprar créditos às que poluem menos do que aquilo
que lhes é atribuído. Esta transferência é designada
por
trade.
Com efeito, o comprador está a ser penalizado por poluir, enquanto que
o vendedor está a ser recompensado por ter reduzido as suas
emissões. Quanto maior for o número de empresas a precisar de
comprar créditos, mais sobe o preço dos créditos o
que torna compensador economicamente reduzir as emissões.
[*]
David F. Noble
é historiador, professor na York University em Toronto, Canadá.
É autor de
Digital Diploma Mills: The Automation of Higher Education
e 'Beyond the Promise Land' (2005).
O original encontra-se em
http://www.zmag.org/content/showarticle.cfm?SectionID=57&ItemID=12771
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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