Capital, imperialismo e urgência socialista
Boa noite, eu quero começar agradecendo ao PCB pelo convite para estar
aqui, e falar de minha emoção, que vem de tempos distantes. Eu
comecei a pensar politicamente com o PCB. Muito jovem, com 14 / 15 anos, me
reunia com amigos comunistas do bairro de Jacarepaguá, onde eu morava.
Comecei a ler alguns textos em plena ditadura, na virada da década de
1960 para 70, quando ler era perigoso, tínhamos medo até de
falar. Essa foi uma experiência muito rica, também muito
problemática, como se pode imaginar pelos problemas que gerava, com
amigos presos e torturados. Bom, mas é uma satisfação
enorme estar aqui nessa mesa, com esse Caderno de Teses apresentando o que
nós precisamos discutir hoje, não só no Brasil, mas no
mundo, para fazer frente ao avassalamento que aconteceu nos últimos
30/40 anos, principalmente sobre o conjunto da classe trabalhadora.
Fiquei emocionada ao ler este Caderno de Teses e o José Paulo Netto
já falou sobre isso: não apenas o texto que estava oxigenado, a
gente se oxigena lendo, inclusive pela capacidade das teses de suscitar
questões! Não é fácil superar a história que
fizemos, e que começa a ser de fato enfrentada como algo a ser
incorporado e levado adiante, superado. Isso não se fará de
maneira imediata, não se fará unicamente pelas
definições propostas pelas teses; se fará num percurso,
numa trajetória, numa coerência de luta, na coerência das
críticas permanentes, na avaliação dos erros e dos
acertos. Essa é, me parece, a direção que a gente esperava
e queria. Precisamos que o PCB não apenas enuncie o processo, mas que o
aprofunde e avance. Eu fico muito emocionada com isso, muito satisfeita em
estar aqui, emocionada com as palavras dos companheiros. Esta minha fala
não resulta de texto organizado e sistematizado, mas se pretende uma
conversa entre nós. Quero destacar alguns elementos fundamentais das
teses, enquanto abertura de possibilidades, e vou me deter mais no tema do
imperialismo, que venho trabalhando, e vem me dando bastante dor de
cabeça.
O Mauro Iasi falou e empregou o termo
superação.
O que essas teses propõem é o reaprendizado, ou a
reincorporação da exigência dialética para analisar
os processos históricos. Precisamos ir adiante nos transformando,
conservando nossas tradições, mas sabendo que temos de superar
muitas passagens anteriores e superar de fato, não simplesmente
remastigá-las para devolvê-las sob outro formato. Superar as
formulações etapistas e ousar incorporar os temas
difíceis, que arriscam converter-se em tabus. Ainda que nem um autor
seja citado felizmente, nós não estamos numa banca de tese
sentimos no texto o reencontro com um conjunto denso do pensamento
revolucionário internacional, superando contraposições
limitadas e limitadoras. Precisaremos ainda continuar superando, não
apenas para reiterar a centralidade da luta anticapitalista, mas para trazer
uma bússola a cada dia mais precisa, comprometida com a exigência
de permanentemente formular teórica e praticamente. Para mim, esse
é um ponto alto desse documento: este não é um texto para
enfeitar estantes e exibir num currículo lattes, pois conseguiu dar
densidade à tentativa de cobrir os mais relevantes aspectos para
enfrentar o tema e a luta pela Revolução Brasileira e
Internacional.
O conjunto dessas teses rompe, ainda que de forma delicada, com uma certa
tradição, mas para recuperar uma outra tradição.
Recupera a tradição da densidade da reflexão
histórica que os comunistas tiveram no Brasil, com seu papel fundamental
no pensamento crítico brasileiro. Para além disso, repetindo, as
Teses avançam por não se apresentarem como uma
configuração bíblica, listando formulações
engessadas. Esse é um aporte possível desse documento, que talvez
a gente não dimensione de maneira imediata, mas é um aporte de
novo tipo, pois procura um movimento dialético. É preciso ter
claro que formular teses é abrir caminhos para que a leitura plena da
vida social se realize, para que sejam debatidas e no curso do processo as
teses possam avançar, e não que funcionem como sagradas
escrituras, que precisarão ser mantidas e enquadradas num altar, no qual
o vivo perece e onde a luta não consegue penetrar.
Por falar em dialética, precisamos evitar a armadilha de tentar resolver
a qualquer custo as contradições intelectuais com as quais nos
deparamos. Nem sempre se trata de escolher entre isso ou aquilo,
mas de identificar precisamente as contradições que atravessam os
processos sociais, cuja solução não se encontra no
âmbito de uma lisa ou linear formulação intelectual, mas no
solo concreto das lutas de classes. Essas Teses não são
perfeitas, mas retomam essa possibilidade, e permitem ao PCB avançar na
prática e na consciência dos processos sociais
contemporâneos.
O clima do conjunto das teses, que me anima, é a proposta de um Partido
Comunista formulador, agregador, consolidador, crítico e não
dogmático. Sabe que precisa assumir o que há de melhor do
conjunto da produção intelectual e da prática, e o que
há de pior, de mais reacionário. Se queremos a capacidade da
superação, precisaremos enfrentar a produção
burguesa, a melhor formulação burguesa; é com ela que
vamos nos defrontar. Esse confronto exige aprofundamento e
superação, na consciência e na prática. Esse
é o grande desafio que o PCB recupera e reassume: o de ser capaz de
elaborar teses vivas, que incorporam, agregam, superam, abertas para o que
ainda falta trabalhar. Recolocam a exigência da atenção
permanente para o conjunto do processo que elas integram, não são
apenas a delimitação entre um bem e um mal, mas assumem a
capacidade clássica da critica e autocrítica permanente.
Não apenas uma crítica ritual , mas rigorosa, pois envolve um
processo de conhecimento e de intervenção que não
é neutro ou frio, e abarca o próprio sentido do conjunto da vida
e da luta.
Vamos ao tema do capital-imperialismo. Ele está incorporado ao conjunto
das teses do PCB ainda de maneira discreta, e eu compreendo. O imperialismo
é apresentado no senso comum como algo de externo, sem raízes
internas, e que se trata de eliminar para assegurar a soberania ou o
desenvolvimento. Há que tomar muito cuidado com essa
formulação, que aponta para uma questão verdadeira
a existência de alguns países capital-imperialistas e seu
predomínio internacional mas esquece que a expansão do
capitalismo, em qualquer de seus momentos históricos, sempre ocorreu
através da socialização internacional da força de
trabalho sob o tacão do capital. Isso significa que o imperialismo
sempre traz efeitos internos, em todos os países.
No caso do Brasil, este ainda é um tema movediço, pantanoso, que
nos exige analisar e incorporar inúmeras contradições.
Talvez exatamente aqui se coloque o dilema do ou: teremos de optar
entre dependência/heteronomia ou
imperialismo/autonomia, para compreender o desenvolvimento do
capital-imperialismo contemporâneo? Ou temos de explicar como se
articulam elementos contraditórios ao longo da expansão desigual
e combinada do capitalismo? Ora, o imperialismo no Brasil se constitui de fora
para dentro e de dentro para fora. Ainda que seja uma hipótese
arriscada, é preciso dizer que o Brasil é hoje um país
capital-imperialista, um associado menor de um conjunto tenso e
contraditório de países capital-imperialistas.
Desde Lênin sabemos que a forma de dominação capitalista
tornou-se imperialista. Quase cem anos depois, precisamos explicar sua
expansão e as modificações que decorreram tanto dessa
expansão, quanto das lutas de classes no mundo e nos diferentes
países. Os dados que dispomos são insuficientes, e os já
existentes nem sempre nos ajudam. Os números não falam sozinhos
nem por si mesmos, mas respondem a questões que lhes são
colocadas.
Há na atualidade um forte movimento, com apoio do BNDES, de
transnacionalização de empresas brasileiras, configurando a
exportação de capitais como investimento direto no exterior ou,
em termos mais claros, como extração de mais-valor em outros
países. A direção principal dessa
transnacionalização é a América do Sul, mas
não se limita a ela. Isso vem sendo banalizado e apresentado de forma
'ufanista' na mídia (esta semana ouvi, na Rádio Bandeirantes, uma
brincadeira de José Simão o macaco Simão que
comentava suas férias no Egito. Dizia que as quatro palavras que mais
escutou por lá foram Mohamed, Hamed, Embraer e Petrobrás).
Embora tenha se reforçado recentemente, o processo não se
inaugurou agora e remonta à década de 1970, abordado por
Ruy Mauro Marini
.
Eu proponho analisar este processo por outro ângulo, que procura
articular o âmbito da economia ao das relações sociais,
sobretudo internas. As pressões das lutas de classes no Brasil tiveram
três momentos importantes e, irresolvidas, impuseram
fugas para a frente
da acumulação de capitais no país. As lutas das
décadas de 1920/30 se soldaram com uma ditadura e um forte impulso
à industrialização; as lutas dos anos 1950/1964 conduziram
a uma ditadura civil-militar, com um enorme impulso monopolizador e de
expansão do capital financeiro. O acirramento das lutas de classes na
década de 1980 impunha nova fuga para a frente, mas a
solução ditatorial não estava disponível, por
várias razões, a começar pelo fato de que eclodiam
exatamente contra uma ditadura ainda em curso. A fuga para a frente empreendida
foi a da associação entre um rebaixamento das exigências
democráticas e a integração subalterna, mas com maior
ímpeto, ao capital-imperialismo internacional. No primeiro caso,
tratava-se de blindar determinados setores sobretudo econômicos
frente ao aumento da participação popular e, não
menos importante, de fragmentar a organização da classe
trabalhadora.
O livro fundamental para compreender esse processo é o de Vito Gianotti
sobre a Força Sindical, onde mostra a emergência de um novo
padrão (que nasce marcado pela tradição truculenta da
dominação de classes no Brasil) , que a atuação
burguesa direta na organização de parcela da classe trabalhadora.
A Força Sindical foi a cunha que, do próprio meio
operário, facilitaria desmantelar a frágil unidade existente na
CUT. Não se pode idealizar a CUT e não sabemos o que seria caso
inexistisse a Força Sindical. Porém sabemos que desde finais da
década de 1980 a burguesia brasileira e/ou associada financiou, pagou e
acelerou a construção daquela central. Este movimento de
intensificação da presença burguesa em aparelhos privados
de hegemonia não parou por aí. Ocorreria profunda
modificação no conjunto das lutas sociais nos anos 1980 e 1990,
como já trabalhei em alguns textos e como mostram Lucia Neves e
André Martins.
Modificando entidades já existentes ou criando extensa rede associativa
crescentemente lastreada em recursos empresariais e patronais, forjava-se uma
nova sociabilidade, de cunho burguês, para o conjunto da vida social
brasileira, intimamente ligada ao Estado. O que está em jogo é a
formação de um certo tipo de trabalhadores, desprovidos de
direitos, integrados num ativismo encapsulado no imediatismo e preparado para a
mais acirrada competição. O governo Lula da Silva aporta a
legitimidade de sua trajetória sindical, convertida em voto, avalizando
a generalização do empresariamento das políticas
públicas, garantindo uma espécie de grande
unificação nacional em torno do grande capital, consolidando as
instituições representativas rebaixadas, a
mercantilização do voto e redução da democracia
à sua expressão mínima.
Essa foi a contraface interna para o aval permanente e o apoio substantivo
governamental para a fuga para a frente através do salto na
concentração de capitais no Brasil, qualquer que fosse sua origem
nacional, através de privatizações enormes, de fomento aos
Fundos de Pensão, etc. Este salto encontrou lastro na extensa
industrialização interna, na expansão da
industrialização da agricultura (o agronegócio devastador)
e na dupla face do mercado interno e da exportação de capitais,
isto é, da exploração de força de trabalho dentro e
fora do país.
Não houve uma redução efetiva de desigualdades sociais no
Brasil, mas uma modificação de suas condições, que
nos leva ao menos por enquanto a uma forma política
próxima aos dos países capital-imperialistas, com um enorme
apassivamento popular ao lado de uma nova escala na concentração
de capitais. A forma democrática rebaixada da burguesia parece se
completar, em especial na coligação que sugere entre a
manutenção do status quo econômico (e sua expansão),
a formatação política com uma sociedade civil em boa parte
empresariada, na ampliação dos elementos de convencimento social
(tanto pelos aparelhos privados de hegemonia, quanto diretamente pelo
Estado-parceiro, quanto, ainda, pela mídia), ao lado da
manutenção da coerção, em especial através
da criminalização de movimentos sociais contestadores.
Essa democracia se torna retórica, caricatura de uma 'assembléia
de acionistas'. Embora precise garantir o apassivamento popular, com
concessões 'gotejadas', o faz apenas na medida em que assegura o
aprofundamento da concentração de capitais e as seguidas
expropriações. Não se pode abandonar a
reivindicação democrática para a luta comunista. O
conceito de ditadura do proletariado supõe a proscrição do
capital, mas exige uma plena democracia dos trabalhadores, da igualdade social
(e não da massificação banalizada e mercantil),
condição para que possam vicejar as singularidades e as
diversidades. Temos o desafio de qualificar de maneira precisa esta forma de
rebaixamento representativo da democracia sob o capital-imperialismo
contemporâneo, pois ela se aproxima, com as características
peculiares da truculência social brasileira, da forma como vem se
realizando nos próprios países centrais. Vem ocorrendo aqui
também a captura da montantes expressivos de recursos sociais de
trabalhadores (em geral, trabalhadores com direitos) a serem convertidos em
capital através de fundos de pensões. Um punhado de trabalhadores
sindicalizados provam nesses fundos sua capacidade gerencial para o capital.
Ex-sindicalistas, atuam fomentando o capital portador de juros, ao mesmo tempo
em que exercem as funções de capitalistas funcionantes, impelindo
as empresas sob controle de tais fundos a reestruturações visando
maior produtividade, ou seja, uma maior exploração da
força de trabalho. Estou enfatizando o âmbito interno para
pensarmos o capital-imperialismo brasileiro, sem esquecer porém do papel
dramático cumprido pelas transnacionais brasileiras em outros
países, sobretudo na América do Sul.
O que significa isso para a nossa luta, de todos os comunistas? Que o papel de
exportação de capitais e de apassivamento interno que
caracterizam o capital-imperialismo contemporâneo em vigor no Brasil
reafirmam de maneira ainda mais incisiva o caráter socialista da luta.
Reafirmam a necessidade da acumulação de forças, mas na
clareza do objetivo socialista, de maneira a difundir a situação
real sob a qual vivemos e as necessidades da luta de classes. Decerto,
há enormes tarefas e conquistas menores a arrancar, necessárias
para recuperar o fôlego da classe trabalhadora, para que ela possa
enfrentar o avassalamento dessa sociabilidade do capital que hoje predomina.
Porém a classe trabalhadora terá de se preparar para enfrentar as
condições reais da luta. O PCB já tem clara a
consciência da dimensão hercúlea e urgente dessa luta,
já tem clara a consciência da complexidade da
formação e da organização exigidas.
Concluo reafirmando a satisfação de estar aqui, debatendo a
partir das teses do PCB. Nós, aqui na mesa e os nossos companheiros de
outras organizações aqui também presentes, queremos
reafirmar a importância central da luta pela superação da
ordem do capital.
[*]
Professora, UFRJ. Palestra realizada em 24/Setembro/2009 no Salão Nobre
do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
de Janeiro no âmbito do seminário para debate da tese principal do
XIV Congresso do Partido Comunista Brasileiro
(
A Estratégia e a Táctica de Revolução Brasileira
).
Este artigo encontra-se em
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