Alertas vermelhos: Sinais de implosão na economia global
O capitalismo global à deriva
Em fins de Maio, durante a reunião do G7, Shinzo Abe, primeiro-ministro
do Japão, anunciou a proximidade de uma grande crise global
[1]
. O comentário mais divulgado pelos meios de comunicação
foi que era um alarmismo exagerado, reflexo da situação
difícil da economia japonesa. De qualquer modo, não faltam os que
admitem a existência de perigos mas em geral atribuem-nos aos
desequilíbrios financeiros da China, à recessão no Brasil
ou às turbulências europeias. A situação nos Estados
Unidos costuma merecer comentários prudentes, distantes de qualquer
alarmismo. Apesar de o centro motor da última grande crise global (ano
2008) ter sido a explosão da bolha imobiliária estado-unidense,
agora os peritos não percebem ali bolhas em plena expansão a
ponto de estourar e sim tudo ao contrário: actividades financeiras,
industriais e comerciais estagnadas, crescimentos anémicos e outros
sinais aparentemente tranquilizantes que afastam a imagem de algum tipo de
euforia descontrolada.
Mas é impossível ignorar a realidade. Os produtos financeiros
derivados constituem a componente maioritária decisiva da trama
especulativa global. Só cinco bancos dos Estados Unidos mais o Deutsche
Bank acumularam esses frágeis activos no montante de uns 320
milhões de milhões de dólares
[2]
, equivalente a aproximadamente 4,2 vezes o Produto Mundial Bruto (ano 2015).
Isso representa 65% da totalidade dos produtos financeiros derivados do planeta
registados em Dezembro de 2015 pelo Banco da Basileia. Essa
hiper-concentração financeira deveria ser um sinal de alarme e o
panorama agrava-se quando constatamos que a referida massa financeira
está a desinchar de maneira irresistível: em Dezembro de 2013 os
derivados globais chegavam a uns US$710 milhões de milhões,
apenas dois anos depois, em Dezembro de 2015, o Banco de Basileia registava
US$490 milhões de milhões...
em apenas 24 meses evaporaram-se US$220 milhões de milhões, cifra
equivalente a cerca de 2,8 vezes do Produto Global Bruto de 2015.
Não foi um acidente e sim o resultado da interacção
perversa, a nível mundial, entre a especulação financeira
e a chamada
economia real.
Durante um longo período esta última pode suster uma
desaceleração gradual evitando a derrocada, graças
à financiarização do sistema que permitiu às
grandes empresas, aos estados e aos consumidores do países ricos
endividarem-se e assim consumir e investir. O declínio da dinâmica
económica dos capitalismos centrais pôde ser desacelerado (ainda
que não revertido) não só com negócios financeiros.
A entrada de mais de 200 milhões de operários industriais
chineses mal pagos no mercado mundial permitiu abastecer com manufacturas
baratas os países ricos e a derrocada do bloco soviético brindou
ao Ocidente um novo espaço colonial: a União Europeia ampliou-se
para Leste, capitais da Europa e dos Estados Unidos estenderam seus
negócios.
Foi assim que os Estados Unidos e seus sócios-vassalos da NATO
continuaram em frente com os gastos militares e as guerras. Enormes capitais
acumulados bloqueados por uma procura que crescia cada vez menos puderam
rentabilizar-se comprando papéis de dívida ou jogando na bolsa.
Grandes bancos e mega especuladores incharam seus activos com complexas
operações financeiras legais e ilegais. Os neoliberais
assinalavam que se tratava de um
"círculo virtuoso"
em que as economias real e financeira cresciam apoiando-se mutuamente. Mas a
festa foi-se esgotando enquanto se reduziam as capacidades de pagamento dos
devedores esmagados pelo peso das suas obrigações.
A crise de 2008 foi o ponto de inflexão. Em Dezembro de 1998 os
derivados globais chegavam a uns US$80 milhões de milhões,
equivalente a 2,5 vezes o Produto Global Bruto desse ano. Em Dezembro de 2003
eles alcançavam os US$200 milhões de milhões (5,3 vezes o
PGB) e em meados de 2008, em plena euforia financeira, saltaram para os US$680
milhões de milhões (11 vezes o PGB). A recessão de 2009 os
fez cair: em meados desse ano haviam baixado para US$590 milhões de
milhões (9,5 vezes do PGB). Acabara a euforia especulativa e a
partir daí as cifras nominais estancaram ou subiram muito pouco,
reduzindo sua importância em relação ao PGB. Em Dezembro de
2013 rondavam os US$719 milhões de milhões (9,3 vezes o PGB) e a
seguir verificou-se o grande desinchar: US$610 milhões de
milhões
em Dezembro de 2014 (7,9 vezes o PGB) que em Dezembro de 2015 caiu para US$490
milhões de milhões (6,2 vezes o PGB).
O aparente "círculo virtuoso" havia mostrado o seu verdadeiro
rosto: na realidade tratava-se de um círculo vicioso em que o
parasitismo financeiro expandira-se graças às dificuldades
da economia real à qual drogava enquanto a carregava de dívidas
cuja acumulação acabou por arrefecer o seu dinamismo o que
por sua vez bloqueou o crescimento da esfera financeira.
A primeira etapa de interacção expansiva anunciava a segunda de
interacção negativa, do arrefecimento mútuo actualmente em
curso que por sua vez anuncia a terceira, de arrefecimento financeiro a marchar
em direcção ao colapso e com crescimentos anémicos,
estancamentos e
recessões suaves da economia real aproximando-se da
depressão prolongada tudo isso como parte do provável
desinchar entrópico do conjunto do sistema.
A financiarização integral da economia faz com que a sua
contracção comprima a economia real, reduza o seu espaço
de desenvolvimento. O peso das dívidas públicas e privadas, a
crescente volatilidade dos mercados submetidos ao canibalismo especulativo,
grandes bancos na corda bamba e outros factores negativos afogam a estrutura
produtiva.
Por outro lado o sistema global não se reduz a um conjunto de processos
económicos. Encontramo-nos perante uma realidade complexa que inclui uma
ampla variedade de componentes inter-relacionados (geopolíticos,
culturais, militares, institucionais, etc). Isso significa que a crise pode
desencadear-se a partir de diferentes geografias e focos de actividade social.
Exemplo: um facto político como a decisão do eleitorado da
Grã-Bretanha de sair da União Europeia poderia ter sido o
detonador,
tal como antecipava George Soros que esperava uma "Sexta-feira negra"
seguida por uma reacção em cadeia de turbulências fora de
controle se na quinta-feira 23 de Junho triunfasse o Brexit
[3]
. O desastre não se verificou, mas podia ter ocorrido... ainda que a
sacudidela fosse bastante forte
[4]
.
Poderia ser uma onda de protestos sociais na Europa, mais extensa e
radicalizada do que a verificada recentemente em França, ou a derrocada
do
Deutsche Bank que acumula papéis voláteis num montante da ordem
dos US$70 milhões de milhões, quase equivalente ao Produto
Mundial Bruto
[5]
. Também a economia italiana apresenta a sua quota de riscos, afectada
pela degradação acelerada dos bancos encurralados pelos
não pagamentos dos seus devedores, que em Março de 2016 somavam
uns 200 mil milhões de euros (equivalente a 12% do PIB italiano)
[6]
. E naturalmente o Japão surge como um importante candidato à
derrocada com uma dívida pública de US$9 milhões de
milhões que representa 220% do seu PIB, não tendo conseguido sair
da deflação e com as suas exportações a perderem
competitividade
[7]
.
Os Estados Unidos, centro da economia global (sobretudo da sua hipertrofia
financeira), são naturalmente o motor potencial de futuras tormentas
globais. Ali nos últimos meses acumularam-se sinais recessivos:
desde a tendência persistente para a baixa na produção
industrial a partir de fins de 2014
[8]
até a ascensão contínua de dívidas industriais e
comerciais não pagas (que já alcançaram o nível dos
fins de 2008 aumentaram quase 140% entre o último trimestre de
2014 e o primeiro trimestre de 2016)
[9]
, passando pela queda do conjunto de vendas (grossistas, retalhistas e
industriais) ao mercado interno desde o último quadrimestre de 2014
[10]
e das exportações desde Novembro do mesmo ano
[11]
.
A isto devemos acrescentar uma dívida pública nacional que
continua a aumentar. Já superou a barreira dos US$19 milhões de
milhões (quase 106% do PIB) que, somada às dívidas
privadas, chega aos US$64 milhões de milhões (3,5 vezes o PIB de
2015)
[12]
e também com sinais claros de deterioração social
como o facto de que umas 45 milhões de pessoas actualmente recebem
ajudas alimentares por parte do Estado
[13]
. A agência encarregada de monitorar os programa alimentares
governamentais, FRAC na sua sigla em inglês, assinalava no seu
últimos relatório que
"mais de 48,1 milhões de estado-unidenses vivem em lares que lutam
contra a fome"
[14]
.
Para um número crescente de peritos, sobretudo os especialistas em temas
financeiros, a pergunta decisiva não é se a crise se vai
verificar ou não e sim quando vai ocorrer. Para alguns poderia assumir a
forma de uma explosão financeira no estilo da que se verificou em 2008
ou em eventos anteriores desse tipo. Para outro, o que está para chegar
é uma grande implosão do sistema.
Cabem duas hipóteses extremas. A primeira é que a
acumulação de deteriorações gere cedo ou tarde um
salto qualitativo devastador. A história do capitalismo está
marcada por uma sucessão de crises de diferentes magnitudes. Olhando o
passado seria razoável supor um desenlace sob a forma de hiper-crise.
A segunda hipótese é que a perda de dinamismo do sistema
não seja um fenómeno passageiro e sim uma tendência pesada
que obriga a superar a ideia de grande turbulência repentina, de tsunami
arrasador, e introduzir o conceito de "decadência", de
envelhecimento prolongado, de degradação civilizacional o
que não exclui as crises e sim incorpora-as a um percurso descendente em
que o sistema se vai apagando, desarticulando, caotizando, perdendo vitalidade,
racionalidade.
Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos,
relançou recentemente com grande repercussão mediática a
teoria do "estancamento secular" segundo a qual as grandes
potências tradicionais estão a entrar numa era de estancamento
produtivo prolongado arrastando o conjunto do sistema global
[15]
. Recuperava desse modo as ideias de Alvin Hansen expostas em plena crise dos
anos 1930. Por sua vez, académicos importantes como Robert Gordon
[16]
, Tyler Cowen
[17]
ou Jan Vijg
[18]
apoiavam esse ponto de vista a partir da visão da ineficácia
crescente da mudança tecnológica em termos de crescimento
económico. Este último autor assinalava o paralelismo entre a
decadência estado-unidense e as do Império Romano e da China na
era da dinastia Qing (entre meados do século XVII e princípios do
século XX). Nos anos 1970, quando se iniciava a longa crise global que
chega até os nossos dias, Orio Giarini e Henri Loubergé,
então na Universidade de Genebra, haviam elaborado a hipótese dos
"rendimentos decrescentes da tecnologia"
a partir do processamento de uma grande massa de informação
empírica
[19]
. Pelo seu lado, o historiador Fernand Braudel assinalava que a grande crise
dessa década era o começo de uma fase cíclica descendente
de longa duração
[20]
. A partir de uma visão marxista, Roger Dangeville, também nessa
época, afirmava que o capitalismo enquanto sistema global havia entrado
na sua etapa senil
[21]
. Eu retomei essa hipótese desde fins dos anos 1990
[22]
, que mais adiante foi assumida por Samir Amin
[23]
e outros autores.
Agora os sinais de alarme multiplicam-se, desde desajustamentos financeiros
graves até perturbações geopolíticas carregadas de
guerra e desestabilizações, desde crises institucionais
até declinações económicas. Nos anos 1990 os
comentaristas ocidentais maravilhavam-se diante do espectáculo da
implosão da URSS. É provável que dentro de não
muito tempo comecem a horrorizar-se diante de desastres muito maiores centrados
no Ocidente.
[1] Philippe Mesmer, "L'alarmisme de Shinzo Abe surprend le G7",
Le Monde,
26/05/2016.
[2] Tyler Durden, "Is Deutsche Bank The Next Lehman?", Zero Hedge,
www.zerohedge.com/news/2015-06-12/deutsche-bank-next-lehman
Michael Snyder, "Financial Armageddon Approaches", INFOWARS,
www.infowars.com/...
[3] Antoine Gara, "George Soros Says Brace For 'Black Friday' If Brexit
Vote Succeeds", Forbes, Jun 21, 2016,
www.forbes.com/...
[4] Wolf Richter, "European Banks Get Crushed, Worst 2-Day Plunge Ever,
Italian Banks to Get Taxpayer Bailout, Contagion Hits US Banks", Wolf
Street, June 27, 2016,
wolfstreet.com/...
[5] Michael T. Snyder, "Will Deutsche Bank Survive This Wave Of Trouble
Or Will It Be The Next Lehman Brothers?", Smarter Analyst, May 23, 2016,
www.smarteranalyst.com/...
[6] Jeffrey Moore, "Will Italian banks spark another financial
crisis?", Global Risk Insights, March 7, 2016.
[7] Takashi Naakamichi, "Japan emerges as key victim in fallout from
Brexit", Market Watch,June 27, 2016.
[8] U.S. Board of Governors of the Federal Reserve System, "Industrial
Production and Capacity Utilization".
[9] Worlf Richter, "Business Loan Delinquencies Spike to Lehman Moment
Level", May 19, 2016,
wolfstreet.com/2016/05/19/delinquencies-of-commercial-industrial-loans-spike/
[10] FRED - Federal Reserve Bank of St. Louis, Total Business Sales.
[11] U.S. Census Bureau, "U.S. International Trade in Goods and
Services".
[12] FRED - Federal Reserve Bank of St. Louis, All Sectors; Debt Securities
and Loans.
[13] United States Department of Agriculture, Food and Nutrition Service.
[14] FRAC, Food Research & Action Center, "U.S. Makes Progress Addressing
Food Hardship, but One in Six American Households Still Struggle to Put Food on
the Table", June 30, 2016,
frac.org/...
[15] Laurence. H. Summers, "Reflections on the New Secular Stagnation
Hypothesis", Secular Stagnation: Facts, Causes, and Cures, CEPR Press,
2014.
[16] Robert J. Gordon, "Is US Economic Growth over? Faltering Innovation
confronts the six Headwinds", NBER Working paper series, 18315,
August.2012."The turtle's progress: Secular stagnation meets the
headwinds", Secular Stagnation:Facts, Causes, and Cures, CEPR Press, 2014.
[17] Tyler Cowen, "The Great Stagnation", Dutton, 2011.
[18] Jan Vijg,"The American Technological Challenge: Stagnation and
Decline in the 21st Century", Algora Publishing, 2011.
[19] Orio Giarini y Henri Loubergé,"La Civilisation technicienne
à la dérive. Les rendements décroissants de la
technologie", Dunod, Paris, 1979
[20] Fernand Braudel, "Civilisation matérielle, économie
et capitalisme, XV
e
XVIII
e
Siècle", tome I, Armand Colin, Paris, 1979.
[21] Roger Dangeville, "Marx-Engels. La crise", Editions 10/18,
Paris 1978
[22] Jorge Beinstein, "La larga crisis de la economía
global", Corregidor, Buenos Aires, 1999 y "Capitalismo senil. A
grande crise da economia global", Record, Rio de Janeiro, 2001.
[23] Samir Amin, "Au-delà du capitalisme sénile", PUF,
Paris, 2002.
Ver também:
Crises, os desenlaces possíveis
Resenha do livro Le capital fictif, de Cédric Durand
O capital fictício, como a finança se apropria do nosso futuro
The Epic Collapse of Deutsche Bank
[*]
Doutorado de Estado em Ciências Económicas (Universidade do
Franche Comté, Besançon, França), especialista em
prognósticos económicos. Foi consultor de organismos
internacionais e de governos, dirigiu numerosos programas de
investigação e foi titular de cátedras de economia
internacional e prospectiva tanto na Europa como na América Latina.
É professor titular das cátedras livres
"Globalização e Crise" nas Universidades de Buenos
Aires e Córdoba (Argentina) e de Havana (Cuba) e director do Centro de
Prospectiva y Gestión de Sistemas (Cepros). Sua página web
é
http://beinstein.lahaine.org/
O original encontra-se em
www.resumenlatinoamericano.org/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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