Contra a globalização dos alimentos

O regresso do motim do pão

por Ashley Dawson [*]

. A 13 de Setembro de 2007, compradores italianos, liderados por uma confederação de organizações de consumidores, realizaram uma das primeiras greves às massas alimentícias do país. Na elegante mas bastante suja cidade desindustrializada de Turim, onde vivo actualmente, antigamente abrigo das fábricas dos automóveis Fiat, poucos indícios havia quanto à existência de irritação dos consumidores. Nada de piquetes de donas de casa furiosas, vestidas de spaghetti insuflável em frente das mercearias locais, nada de cartazes a agitarem-se na feira dos agricultores locais. Terá sido mais um exemplo anedótico da conhecida propensão italiana para fazer greves a propósito de tudo e de nada?

Os consumidores italianos foram incitados a boicotar as massas nesse dia para protestarem contra a subida dos preços em mais de 27% no ano passado. No entanto, as massas foram apenas um alvo simbólico. As organizações de consumidores que planearam a greve pediram aos consumidores que não comparecessem nos mercados a fim de protestar contra as subidas dos preços de tudo, desde a gasolina e as rendas de casa, até ao custo de uma chávena de café no café local. Carlo Rienzi, líder de uma dessas organizações, intimou o governo italiano a aprovar um decreto que abra os mercados ao domingo para vendas especiais de alimentos directamente dos agricultores aos consumidores, o que, segundo ele, ajudaria a baixar os preços de forma geral.

A Itália não é o único país onde se verifica uma crescente agitação política por causa do custo dos artigos alimentícios. Em Janeiro passado, 70 mil pessoas desfilaram pelas ruas da Cidade do México num protesto que ficou conhecido como o "motim da tortilla". Em resposta a estas manifestações, o presidente Felipe Calderon assinou um acordo para estabilizar os preços da tortilla, que haviam disparado mais de 700% desde 1994, ano em que entrou em vigor o Acordo de Mercado Livre norte-americano. Depois da entrada em vigor deste acordo, muitos camponeses mexicanos foram afastados das suas terras quando o trigo americano inundou o mercado interno livre de taxas. Agora que muitos agricultores americanos estão a desviar uma parte importante das suas produções de trigo para a produção de etanol, os consumidores mexicanos não têm alternativa contra os preços cada vez mais altos do trigo internacional.

Aonde levam estes protestos aparentemente isolados? Será útil ter uma perspectiva histórica considerando um dos mais conhecidos motins do pão. Na manhã de 5 de Outubro de 1789, uma miúda começou a tocar um tambor e a cantar em sinal de protesto num dos mercados de Paris. Segundo o historiador George Rude, este protesto atraiu rapidamente uma grande multidão de mulheres solidárias, que se juntaram numa marcha para apresentar as suas queixas no palácio real em Versalhes. O número engrossou rapidamente até às seis ou sete mil pessoas; enquanto marchavam, desarmaram os guardas da cidade e entregaram as armas aos homens que seguiam a multidão de mulheres enfurecidas ao longo das ruas. Todos sabemos como acabou este protesto.

A marcha sobre Versalhes, tal como o assalto à Bastilha um pouco antes nesse mesmo ano, não foi motivada pela fúria contra o consumo excessivo dos nobres como Maria Antonieta, mas pela questão muito mais imediata do custo do pão. Naquela época, uma família de trabalhadores de quatro pessoas em Paris comia 1,2 tonelada de cereal por ano, 80 por cento do qual vinha dos arredores da cidade de Paris através de uma rede de estradas em mau estado. Na década de 1780, uma série de cheias nesta área resultou em colheitas fracas, provocando uma grande subida do preço do pão. Em 1789, o pão diário de um trabalhador consumia 90 por cento das suas receitas. A exigência de pão era o tema central de quase todas as journées, as insurreições e as manifestações populares que surgiram repetidamente em Paris entre 1789 e 1795. As mulheres, sobre cujos ombros recaía a carga esmagadora da economia doméstica, eram o catalisador e as principais participantes destas manifestações.

Claro que nos dias de hoje isto não pode acontecer, não é? A década e meia passada assistiu a uma onda global de democratização, uma barreira vital contra a fome, segundo o economista Amartya Sen. Além disso, fomos abençoados com um sistema flexível de produção e distribuição de alimentos, produto não só de algumas décadas de globalização mas também da profunda transformação da agricultura através da Revolução Verde após os anos 50. No entanto, há indícios de que as práticas de energia intensiva da agricultura industrial espalhada por todo o mundo pela Revolução Verde não são sustentáveis. Conforme Michael Pollan defendeu há pouco no New York Times, o misterioso desaparecimento de abelhas no ano passado e o aumento da bactéria staphylococcus resistente às drogas (que está a matar mais americanos por ano do que a SIDA) são sinais da falta de segurança das vastas monoculturas em que se baseia o nosso actual sistema alimentar. Segundo Pollan, "sempre que tentamos reformular os sistemas naturais como linhas de produção de uma máquina ou de uma fábrica, quer criando porcos a mais ou amendoeiras a mais num mesmo local, aquilo que possamos ganhar em eficácia industrial, sacrificamos em elasticidade biológica".

Mas, por mais importantes que sejam estes sintomas de uma crise em fermentação, não é preciso entrar numa enfermaria de um hospital, ou num amendoal para ter a noção da falta de sustentabilidade do sistema agrícola global. Uma visita ao supermercado local para comprar massas é suficiente. Os preços crescentes dos cereais que este ano motivaram os protestos em Itália e no México são os verdadeiros arautos de uma calamidade em preparação. No ano passado, o índice de preços alimentares da Organização dos Alimentos e Agricultura das Nações Unidas (FAO) subiu mais de 40 por cento, a somar a um aumento significativo de 9 por cento em 2006. Segundo o chefe da FAO, Jacques Diouf, os preços do trigo e das oleaginosas atingiram preços recordes; os preços do trigo aumentaram 130 dólares por tonelada, ou seja 52 por cento, de há um ano a esta parte. A par desta inflação no custo dos cereais alimentícios, as reservas apresentam-se seriamente desfalcadas. O fornecimento mundial de trigo desceu 11 por cento este ano, atingindo o nível mais baixo desde 1980. Isto corresponde a 12 semanas do consumo mundial total. Só há trigo suficiente para 8 semanas.

Joachim von Braun, chefe do International Food Policy Research Institute, fez notar há pouco tempo que só não se materializaram crises, apesar destes abastecimentos diminutos, porque os Estados devoraram literalmente os seus stocks nacionais de cereais. Segundo von Braun, esta situação pode alterar-se dentro de pouco tempo porque a China, em especial, nunca esgotou os seus aprovisionamentos. Num discurso em Beijing, von Braun afirmou que "nos próximos 12 a 24 meses estaremos numa situação bastante perigosa. Os países grandes consumidores, em especial a China, sentir-se-ão pressionados para entrar nos mercados internacionais, licitando preços altos a níveis fora do comum". Os consumidores chineses já enfrentam uma inflação alimentar galopante. Segundo um jornal local, citado pelo Manchester Guardian, morreram há pouco três compradores num atropelo num supermercado que oferecia óleo de colza com desconto. Com as suas enormes reservas de divisas estrangeiras, a China tem a possibilidade de comprar várias vezes o total dos cereais alimentícios, atirando para os píncaros os preços das comodities internacionais.

Tal como acontecia nos fins do século XVIII em Paris, o aumento dos preços dos alimentos também está relacionado com a situação climática. Os efeitos iniciais e ainda relativamente benignos do aquecimento global já prejudicaram gravemente produções de cereais em regiões cerealíferas como a Austrália e a Ucrânia nos últimos anos. S. Mark Howden da organização australiana Commonwealth Scientific and Industrial Research assinalou há pouco que "se houver uma alteração significativa no clima numa das nossas áreas de alta produção, se houver uma praga que afecte uma produção importante, ficamos numa situação de alto risco".

E, tal como nos dias da Revolução Francesa, serão os pobres que sofrerão mais com o custo em espiral dos alimentos. As organizações de ajuda internacionais estão em dificuldade para manter os seus envios de alimentos não apenas em consequência do preço inflacionado dos alimentos básicos, mas também porque se tornou muito mais caro o transporte dos alimentos para todo o mundo dado o valor instável do petróleo. Os preços altos do petróleo também afectam directamente a agricultura e, portanto, os stocks alimentares, porque o petróleo é um ingrediente vital tanto dos fertilizantes como dos pesticidas, além de, evidentemente, ser necessário para fazer andar os tractores e as bombas a diesel que são essenciais na agricultura industrial em todo o mundo. Para além disso, a ameaça da mudança climática [1] está a afectar os países pobres de outra forma: como os biocombustíveis foram adoptados como uma alternativa importante para o petróleo, os alimentos e os combustíveis entraram em competição directa. Segundo um artigo recente do Guardian, por exemplo, funcionários do Bangladesh informam que o preço do óleo para cozinhar – de que importam 1,2 milhão de toneladas por ano – quase triplicou nos últimos dois anos porque é agora valorizado como alternativa ao óleo diesel.

Claro que é difícil dizer exactamente como é que vão actuar estas tendências, mas não é provável que apareça uma solução fácil. O crescente custo do petróleo, um dos catalisadores principais da crise, não é produto de um espectáculo político encenado como nos anos 70, mas de uma especulação provocada por uma oferta cada vez mais limitada. Antes do mais, os nossos problemas não poderão ser resolvidos por soluções de curto prazo. O espectro da fome pode, por exemplo, levar os agricultores de todo o mundo a alargar a produção de cereais a áreas ecologicamente sensíveis ou a outras áreas marginais. E, embora isso possa resolver uma possível crise a curto prazo, obviamente não representa uma solução viável para a crise do sistema agrícola industrial global. Jacques Diof, responsável da FAO, propõe uma abordagem mais sustentável. Com os preços do petróleo e dos alimentos a alturas quase recordes, Diof defendeu há pouco que os países ricos deviam deixar de enviar ajuda alimentar aos países pobres e deviam concentrar-se na ajuda aos agricultores para produzir alimentos localmente. O plano de Diof repete o apelo da organização internacional Via Campesina , que faz da soberania alimentar a pedra basilar da sua batalha pelos direitos dos camponeses.

Até agora, no entanto, este tipo de abordagem tem caído em orelhas moucas nos salões de instituições internacionais poderosas, como a Organização Mundial do Comércio, que são dominadas pelo conceito de segurança alimentar proposto pelos EUA que, como sempre, defende o mercado livre, visto que os seus produtos alimentares produzidos industrialmente têm podido até agora competir com os preços dos seus concorrentes nos mercados internacionais. O resultado tem sido o de políticas de venda por preços inferiores aos do mercado, o corte de apoios aos preços que mantenham solventes os pequenos agricultores, a privatização do crédito, e o patenteamento de recursos genéticos cerealíferos, que se aliaram para expulsar milhões de agricultores das suas terras e atirá-los para as mega-cidades do sul global. A agricultura é hoje uma das indústrias mais monopolistas, com um punhado de gigantescas empresas transnacionais como a Monsanto que controla as duas pontas do processo de produção. O apelo de Diof para a soberania alimentar implica portanto uma transformação radical das instituições centrais de globalização e, claro, de todo o sistema da agricultura industrial globalizada.

Com as contradições do sistema alimentar industrial a acumularem-se com um efeito potencialmente mortal, é altura de rejeitarmos este modelo insustentável de alimentação globalizada e de nos virarmos para um modelo mais sustentável de produção local e de soberania alimentar liderado por organizações como a Via Campesina. Organizar uma greve local de pastas pode ser uma boa forma, embora humilde, de sublinhar esta ideia. Resta-nos esperar que não sejam necessários motins sangrentos pelo pão e fomes de grande escala para obrigar o mundo a entrar por uma via mais sustentável.

Nota de resistir.info:
[1] Há um erro lógico aqui: não é preciso fazer referência a uma suposta "ameaça da mudança climática" para afirmar que, com os biocombustíveis líquidos, alimentos e energia entram em competição directa — provocando a alta de preços dos primeiros. O autor, aparentemente, debate-se com o problema inexistente da apregoada "mudança climática" mas aceita a produção de biocombustíveis líquidos como facto consumado pois não a condena e nem sequer a critica.


[*] Autor de Mongrel Nation: Diasporic Culture And the Making of Postcolonial Britain e co-autor com Malini Johar Schueller de Exceptional State: Contemporary U.S. Culture and the New Imperialism .

O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/dawson12202007.html . Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
02/Jan/08