A arte de ignorar os pobres
por John Kenneth Galbraith
[*]
Gostaria de reflectir sobre um dos mais antigos exercícios humanos, o
processo pelo qual ao longo dos anos, e na verdade ao longo dos séculos,
nos temos encarregado de ignorar os pobres.
Ricos e pobres têm vivido juntos, sempre inconfortavelmente e por vezes
perigosamente, desde o princípio dos tempos. Plutarco chegou a dizer:
"Um desequilíbrio entre os ricos e os pobres é a mais antiga
e a mais fatal enfermidade das repúblicas". E os problemas que
decorrem da contínua co-existência de riqueza e pobreza e
particularmente o processo pelo qual a boa fortuna justifica-se na
presença do infortúnio dos outros tem sido uma
preocupação intelectual durante séculos. Continuam a ser
na nossa própria época.
Começa-se com a solução proposta na Bíblia: os
pobres sofrem neste mundo mas são maravilhosamente premiados no
além. A pobreza é um infortúnio temporário; se eles
forem pobres e também dóceis acabarão por herdar a
terra. Isto é, sob certos aspectos, uma solução
admirável. Permite que os ricos desfrutem a sua riqueza enquanto invejam
a futura fortuna dos pobres no além. ["Pages from the Life of a
Georgia Innocent", de Harry Crews, discute a romantização da
pobreza].
Muito, muito mais tarde, nos vinte ou trinta anos que se seguiram à
publicação de
A riqueza das nações,
em 1776, nos alvores da Revolução Industrial na
Grã-Bretanha o problema e a sua solução
começou a tomar a sua forma moderna. Jeremy Bentham, um quase
contemporâneo de Adam Smith, propôs a fórmula que durante
talvez uns cinquenta anos influenciou extraordinariamente os britânicos
e, em algum grau, também o pensamento americano. Esta foi o
utilitarismo. "Pelo princípio da utilidade", disse Bentham em
1789, "é preciso entender que a razão principal que aprova
ou desaprova qualquer acção que seja está em
função da sua tendência a aumentar ou diminuir a felicidade
da parte cujo interesse está em jogo". A virtude é, na
verdade deve ser, auto-centrada. Enquanto houve pessoas com uma grande boa
fortuna e muitas mais com grande má fortuna, o problema social estava
resolvido desde que, mais uma vez na palavras de Bentham, "o maior bem
para o maior número". A sociedade fazia o melhor que podia para o
maior número possível de pessoas; tinha-se de aceitar que o
resultado podia ser tristemente desagradável para os muitos cuja
felicidade não era atendida.
Na década de 1830 uma nova fórmula, sempre actual, tornou-se
disponível para evacuar os pobres da consciência pública.
Esta é associada aos nomes de David Ricardo (1772-1823), um corrector de
bolsa, e Thomas Robert Malthus (1776-1834), um teólogo protestante. O
essencial da mesma é familiar: a pobreza dos pobres era culpa dos
pobres. E isso porque era o resultado da sua excessiva fecundidade: a sua
luxúria lamentavelmente descontrolada levava-os a proliferar até
os limites da subsistência disponível.
Isto foi o malthusianismo. Se a pobreza era causada na cama isso significava
que os ricos não eram responsáveis nem pela sua
criação nem pela sua diminuição. Contudo, o
próprio Malthus não estava isento de um certo sentimento de
responsabilidade: ele urgia a que a cerimónia de casamento contivesse
uma advertência contra o intercurso sexual indevido e
irresponsável uma advertência que, é justo dizer,
não tem sido aceite como um método plenamente efectivo de
controle de nascimentos. Em tempos mais recentes, Ronald Reagan disse que a
melhor forma de controle da população emerge do mercado. (Casais
enamorados deveriam reparar na R. H. Macy's, não nos seus quartos).
Malthus, deve-se dizer, pelo menos era relevante.
Nos meados do século XIX, uma nova forma de negação ganhou
grande influência, especialmente nos Estados Unidos. A nova doutrina,
associada ao nome de Herbert Spencer (1820-1903), era Darwinismo Social. Na
vida económica, tal como no desenvolvimento biológico, a regra
predominante era a sobrevivência do mais apto. Esta frase
"sobrevivência do mais apto" veio, de facto, não
de Charles Darwin mas sim de Spencer e exprimia a sua visão da vida
económica. A eliminação dos pobres constitui o meio
utilizado pela natureza para melhorar a raça. Sendo expulsos os fracos e
infelizes, a qualidade da família humana sai fortalecida.
Um dos mais notáveis porta-vozes americanos do Darwinismo Social foi
John D. Rockefeller o primeiro Rockefeller que declara num
discurso famoso: "A variedade de rosa American Beauty pode ser produzida
no esplendor e fragrância que provoca aplauso naqueles que a contemplam
só através do sacrifício dos primeiros botões que
crescem em torno dela. E assim é na vida económica. Isto é
meramente o desenvolvimento de uma lei da natureza e uma lei de Deus".
[ver "Como as outras meias vidas foram escritas durante o tempo do
Darwinismo Social e desempenharam um grande papel no enterro desta
ideologia", de Jacob Riis].
No decurso do século XX, contudo, o Darwinismo Social veio a ser
considerado um tanto cruel. Ele declinou em popularidade e as referências
ao mesmo adquiriram um tom condenatório. Passámos para a
negação mais amorfa da pobreza associada aos presidentes Calvin
Coolidge (1923-1929) e Herbert Hoover (1929-1933). Para eles, toda
assistência aos pobres interferia com a operação efectiva
do sistema económico e tal assistência era incompatível com
um projecto económico que servia muito bem a maior parte do povo. A
noção de que há algo economicamente danoso em ajudar os
pobres permanece connosco nestes dias como um dos modos pelos quais nós
os expulsamos da nossa consciência. [não se segue, contudo, que a
ajuda do governo aos ricos seja moralmente danosa; ver "O próximo
New Deal" e "Refreando os ricos".]
Com a revolução de Roosevelt (assim como anteriormente com a de
Lloyd George na Grã-Bretanha), o governo assumiu uma responsabilidade
específica pelo povo menos afortunado na república. Roosevelt e
os presidentes que o seguiram aceitaram uma medida substancial de
responsabilidade para com os idosos através da Segurança Social,
para com os desempregados através do seguro de desemprego, para com os
inimpregáveis e mutilados através do alívio directo e para
com os doentes através do Medicare e do Medicaid. Isto foi realmente uma
grande mudança e, por algum tempo, a antiga tendência de evitar
pensar acerca dos pobres deu lugar ao sentimento de que precisávamos
tentar que estávamos, na verdade, a fazer alguma coisa acerca
deles.
Em anos recentes, contudo, ficou claro que a busca de um meio para extirpar os
pobres da nossa consciência não havia acabado; fora apenas
suspensa. E assim empenhámo-nos mais uma vez nesta busca de um modo
altamente enérgico. Tornou-se outra vez uma grande
preocupação filosófica, literária e
retórica, bem como um empreendimento não economicamente
insatisfatório.
Das quatro, talvez cinco, métodos actuais que temos para extirpar os
pobres da nossa consciência, a primeira decorre do facto
inescapável de que a maior parte das coisas que devem ser feitas em prol
dos pobres tem de ser feita de um modo ou de outro pelo governo. Tem sido
argumentado que o governo é incompetente por inerência, excepto no
que respeita à concepção e compra de armas e à
administração geral do Pentágono. Sendo incompetente e
ineficaz, não lhe deve ser pedido para socorrer os pobres; ele apenas
estragará as coisas ou as tornará piores.
A alegação da incompetência governamental está
associada nos nossos tempo à condenação geral do burocrata
mais uma vez excluindo aqueles associados à defesa nacional. A
única forma de discriminação que ainda é
permissível isto é, ainda encorajada oficialmente nos
Estados Unidos de hoje é a discriminação contra
pessoas que trabalham para o governo federal, especialmente em actividades de
bem-estar social. Temos grandes burocracias corporativas repletas de burocratas
corporativos, mas eles são bons; só a burocracia e os servidores
do governo são maus. De facto temos nos Estados Unidos um serviço
público extraordinariamente bom constituído por pessoas
talentosas e dedicadas que são esmagadoramente honestas e só
raramente atreitas a pagar demasiado por alicates, lanternas de bolso,
máquinas de café e assentos de toilete. (Quando ocorreram estas
aberrações foram, surpreendentemente, todas no Pentágono).
Quase abolimos a pobreza entre os idosos, democratizámos muito os
cuidados de saúde, assegurámos direitos civis de minorias e
promovemos amplamente oportunidades educacionais. Tudo isto pareceria uma
façanha considerável para pessoas incompetentes e além
disso ineficazes. Devemos reconhecer que a actual condenação do
governo e da administração governamental é realmente parte
da concepção contínua de evitar responsabilidade para com
os pobres.
A segunda concepção nesta grande tradição secular
é argumentar que qualquer forma de ajuda pública ao pobre apenas
o prejudica. Destrói a moral. Estimula pessoas a afastarem-se do emprego
proveitoso. Rompe casamentos, pois as mulheres podem obter bem-estar para si
próprias e os seus filhos quando ficarem sem maridos. Não existe
absolutamente nenhuma prova de que estes danos sejam superiores àqueles
que implicariam a supressão dos apoios públicos. [Ver depoimento
de Robert Greenstein no Congresso]. Entretanto, o argumento segundo o qual eles
prejudicam gravemente os deserdados é constantemente relançado e,
o que é mais grave, acreditado. Esta é, sem dúvida, a mais
influente das nossas fantasmagorias.
A terceira concepção, estreitamente relacionada, para nos aliviar
da responsabilidade para com os pobres é o argumento de que medidas de
assistência têm um efeito adverso ao incentivo. Elas transferem
rendimento do diligente para o ocioso e irresponsável, reduzindo
portanto o esforço do diligente e encorajando a ociosidade do
preguiçoso. A manifestação moderna disto é a teoria
económica do lado da oferta
(supply-side economics).
A teoria económica da oferta sustenta que os ricos nos Estados Unidos
não têm estado a trabalhar porque têm muito pouco
rendimento. Assim, ao tomar dinheiro dos pobres e dá-los aos ricos,
aumentamos o esforço e estimulamos a economia. Pode-se realmente
acreditar que um número considerável de pobres prefira a ajuda
social a um bom emprego? Ou que homens de negócios executivos de
corporações, as figuras chave do nosso tempo estejam a
desperdiçar o seu tempo devido à insuficiência do seu
pagamento? Isto é uma acusação escandalosa contra os
homens de negócios americanos, um notável árduo
trabalhador. A crença pode ser o servidor da verdade mas ainda
mais da comodidade.
A quarta concepção para extirpar os pobres da nossa
consciência é apontar os presumidos efeitos adversos à
liberdade o assumir de responsabilidades para com eles. A liberdade consiste no
direito de gastar um máximo de dinheiro próprio à vontade
de si próprio e ver um mínimo tomado e gasto pelo governo. (Mais
uma vez, a despesa com a defesa nacional é exceptuada). Nas palavras
definitivas do professor Milton Friedman, as pessoas devem ser "livres
para escolher".
Esta é possivelmente a mais transparente de todas as
concepções. Quando se trata de pobres, habitualmente não
é feita qualquer menção à relação
entre o seu rendimento e a sua liberdade. (O professor Friedman é uma
excepção aqui; através do imposto de rendimento negativo,
ele asseguraria a todos um rendimento básico). Não há,
certamente podemos concordar, qualquer forma de opressão que seja
tão grande, nenhuma construção do pensamento e
esforço tão abrangente, como o que decorrer de não ter
qualquer dinheiro de todo. Embora ouçamos muito acerca da
limitação à liberdade do rico quando o seu rendimento
é reduzido através de impostos, nunca ouvimos nada a
extraordinária promoção da liberdade do pobre por ter
algum dinheiro seu para gastar. Mas a perda de liberdade da
tributação para o rico é uma coisa pequena quando
comparada com o ganho em liberdade de proporcionar algum rendimento ao
empobrecido. Certamente aplaudimos a liberdade. Mas ao aplaudi-la não
deveríamos utilizá-la como encobrimento para negar liberdade
àqueles em necessidade.
Finalmente, quando tudo falha, recorremos à simples
negação psicológica. Isto é uma tendência
psíquica que em várias manifestações é comum
a todos nós. Leva-nos a evitar pensar acerca da morte. Leva um grande
número de pessoas a evitar pensar sobre corrida armamentista e a
consequente pressão rumo a uma extinção altamente
provável. Quer estejamos na Etiópia, no Bronx Sul ou mesmo no
Eliseu ou em Los Angeles, resolvemos mantê-la fora das nossas mentes.
Pense, somos frequentemente aconselhados, em algo agradável.
Estas são as concepções modernas pelas quais escapamos de
preocupações para com os pobres. Todas, salvo talvez a
última, testemunham uma grande criatividade na linha de Bentham, Malthus
e Spencer. Ronald Reagan e seus colegas estão claramente numa
tradição notável no fim de uma longa
história de esforço para escapar à responsabilidade pelos
semelhantes. Assim são os filosofantes agora celebrados em Washington:
George Gilder, uma figura muito favorecida do passado recente, conta com muito
aplauso que os pobres devem ter o cruel incentivo do seu próprio
sofrimento a fim de garantir esforço; Charles Murray, o qual, com
maiores aplausos, contempla "sucatear todo o programa de bem-estar federal
e a estrutura de apoio ao rendimento para trabalhadores e pessoas idosas,
incluindo a Ajuda a Famílias com Filhos Dependentes (AFDC), Medicaid,
selos alimentares, seguro de desemprego, indemnização por
acidente de trabalho
(Workers' Compensation),
habitação subsidiada, seguro de incapacidade e, acrescenta ele,
"o resto. Corte o nó, pois não há meio de
desatá-lo". Através de uma triagem, os valiosos seriam
seleccionados para sobreviver, a perda do resto é a penalidade que
deveríamos pagar. Murray é a voz de Spencer no nosso tempo; ele
está a desfrutar, como indicado, de popularidade sem paralelo em altos
círculos de Washington.
A compaixão, juntamente com o esforço público associado,
é o menos confortável, o menos cómodo, curso de
comportamento e acção no nosso tempo. Mas permanece o
único que é compatível com uma vida totalmente civilizada.
Também é, no fim, o curso mais verdadeiramente conservador.
Não há paradoxo aqui. O descontentamento civil e suas
consequências não vem de pessoas satisfeitas um ponto
óbvio pois na medida em que podemos tornar a
satisfação tão quase universal quanto possível,
preservamos e ampliamos a tranquilidade social e política pela qual os
conservadores deveriam, acima de tudo, ansiar.
[*]
1908-2006,
http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Kenneth_Galbraith
Este ensaio foi publicado na Harper's Magazine, Novembro de 1985.
O original encontra-se em
http://en.heidi-barathieu-brun.ch/wp-archive/12
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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