Os bárbaros e os civilizados
por Chandra Muzaffar
Não há dúvida de que os covardes ataques bombistas em
Londres, em 7 de Julho de 2005, foram actos bárbaros. Não
há outro meio de descrever o massacre planeado e premeditado de civis.
É violência política, da espécie que constitui
terrorismo nu.
Mas apesar de todos considerarem bárbaro o acto terrorista ocorrido em
7/Julho, alguns de nós ficariam profundamente perturbados por
declarações atribuídas a responsáveis
britânicos e americanos no rescaldo imediato da tragédia que
procuravam apresentar-se a si próprios como homens que defendiam os
cânones da conduta civilizada. Na visão deles e do ponto
de vista dos media eram "defensores da
civilização" sob o assédio de elementos
bárbaros.
Nada pode estar mais longe da verdade. É bárbaro assassinar 52
civis em Londres, mas será civilizado matar 100 mil civis no Iraque? Pois
este é o número de civis que morreram ali desde Março de
2003, devido à ocupação anglo-americana segundo estudo da
Johns Hopkins University.
Será civilizado usar munições de
fragmentação (cluster), bombas incendiárias, urânio
empobrecido
(depleted uranium, DU)
e armas químicas contra uma população civil? Como membro
do Júri de Consciência do Tribunal Mundial sobre o Iraque (TMI)
que se reuniu em Istambul de 23 a 27 de Junho de 2005, foram-me apresentadas
provas pormenorizadas de peritos que testemunharam "como a leucemia
aumentou agudamente em crianças com idade inferior a cinco anos naquelas
áreas que foram alvejada pelo DU". Ouvi relatos de como as
forças de ocupação dirigiram ataques deliberados a
hospitais, bairros residenciais, centrais eléctricas e
instalações de purificação de água. A
destruição total da cidade de Faluja é testemunho disto.
É uma cidade onde até mesmo crianças, mulheres
grávidas, pessoas idosas e civis feridos foram alvejados por balas.
E podemos nós esquecer a cruel e degradante tortura de prisioneiros
não só em Abu Ghraib como também em Mossul, Camp Bucca e
Bassorá? Será isto um marco de civilização?
Será que pessoas civilizadas profanam a herança cultural e
arqueológica de uma das mais antigas civilizações sobre a
Terra? Será a maciça devastação ambiental e
ecológica do Iraque provocada pela ocupação um acto de
civilização?
A destruição "civilizada" do Iraque não
começou com a sua ocupação em 2003. As severas e
desumanas sanções económicas contra o povo do Iraque ao
longo de um período de 12 anos, principiando em Agosto de 1990,
já mataram pelo menos 650 mil criança. Como podem líderes
civilizados presidir a tal desumanidade?
Mas o Iraque é somente a vítima mais recente do abraço
"civilizado" dos grandes centros do poder imperial do ocidente.
Ainda recordamos o Vietnam, cujo solo está encharcado com o sangue dos
milhões de homens, mulheres e crianças que foram massacrados
impiedosamente por resistirem aos franceses e depois à agressão
americana. Estes últimos não tiveram escrúpulos em
utilizar armas tão "civilizadas" como o Agente Laranja e o
napalm na tentativa de esmagaram o "bárbaro" Vietcong.
Outras nações "bárbaras" na Ásia e na
África têm as suas próprias histórias
trágicas para contar acerca do preço colossal que tiveram de
pagar quando tiveram de enfrentar os "civilizados" rapinantes do
ocidente. Foi estimado que nas décadas de subjugação
colonial dos dois continentes, pelo ocidente, foram perdidas cerca de 40
milhões de vidas. Mas o continente que sofreu mais nas mãos da
civilização é ocidental é certamente a
América Latina. Desde o extermínio dos povos indígenas a
partir do século XV em diante (talvez uns 30 milhões de pessoas
tenham sido mortas) à eliminação de oponentes do
imperialismo americano no século XX, é um continente que tem
suportado o peso principal da "missão civilizadora" de
poderosos agressores.
A questão é simples. Líderes no ocidente, especificamente
aqueles em Londres e Washington no actual contexto, não têm
autoridade moral para falar de padrões civilizados. Deveria ser
percebido que quando estes líderes matam civis isto invariavelmente
é parte de algum plano nefando para conquistar a terra de alguém,
ou para controlar os recursos de alguém, ou para estabelecer o poder
hegemónico de alguém. Por outras palavras, a carnificina de
civis tem sido uma dimensão integral das numerosas guerras de
agressão que os centros de poder no ocidente têm empreendido no
decorrer dos últimos mil anos, sendo a aventura do Iraque a mais
recente. Estados não ocidentais, naturalmente, também embarcaram
em guerras de agressão. Mas seja quem for o perpetrador, uma guerra de
agressão é pela sua própria natureza um mal muito maior do
que qualquer outra violência que conheçamos, como observou o
Tribunal de Nuremberg. Segue-se daí que a matança de civis em
tais guerras é, de uma perspectiva moral, mais bárbara do que
qualquer violência sem sentido e irresponsável daqueles que
estão a combater a subjugação e a ocupação
por vezes possam cometer. Assim, em linguagem explícita, os ocupantes
do Iraque têm sido mais bárbaros do que os bombistas de Londres.
Por que é que a maior parte das pessoas não está
consciente disto? Por que é que os feitos bárbaros daqueles que
apregoam serem civilizados não fazem parte da consciência popular?
A principal razão é a realidade do poder global. Aqueles que se
cobrem com o manto da civilização são os senhores do mundo
neste momento crítico da história. Eles estão em
posição de moldar o discurso global sobre o que é certo e
o que é errado, quem é bom e quem é mau. O seu poder
é tão esmagador que transformar o opressor em libertador, o
agressor em vítima, o belicista em pacifista.
É por isso que hoje os bárbaros mascaram-se de
civilizados.
O original encontra-se em
Tehran Times
, edição de 17/Jul/2005.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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