Armas nucleares, robôs militares e guerra
por Frederico Gama Carvalho
[*]
Resumo: Faz-se uma breve referência, com alguns dados numéricos,
ao esforço financeiro que representa hoje a manutenção das
despesas militares a níveis iguais ou superiores ao verificado no
período da chamada "guerra fria". Assinala-se a
importância crescente da investigação científica e
tecnológica com fins militares. Refere-se o surgimento da ciberguerra e
as suas motivações. Descreve-se a situação actual
no que toca ao desenvolvimento e utilização da arma nuclear.
Apresenta-se a evolução no campo da robótica militar, as
consequências perversas da sua utilização em teatros de
guerra ou para localizar e abater alvos humanos seleccionados. Apontam-se as
armas ditas "não-letais" como instrumento de repressão
de "acções de perturbação da ordem
pública". O texto é acompanhado de numerosas
referências que permitem aprofundar as questões apresentadas.
As despesas militares dos Estados Unidos da América são as mais
altas do mundo
[1]
. Em 2011 terão ultrapassado os 700 mil milhões de dólares
[2]
. Entre 2001 e 2011 mais do que duplicaram, a preços constantes. Em
percentagem do PIB subiram de cerca de 3% para mais de 5%. A China com uma
população cerca de quatro vezes maior, apresenta a segunda maior
despesa militar mas a grande distância dos EUA (cerca de um sexto)
[3]
. Os EUA despendem cerca de 12 mil milhões de dólares anuais em
ajuda militar a vários países estrangeiros na sua maior parte
destinada ao Afeganistão, Iraque, Israel, Paquistão e pelo menos
num passado próximo ao Egipto
[4]
. A despesa militar dos EUA tem mantido uma tendência crescente desde
pelo menos 1998
[5]
. Mesmo numa economia com a dimensão da norte-americana, pode não
ser sustentável no longo prazo a manutenção de um
nível tão elevado de gastos militares
[6]
No decurso das duas últimas décadas, assistiu-se a uma
evolução e desenvolvimentos muito significativos no campo da
investigação científica e tecnológica para fins
militares. Quatro domínios merecem particular atenção: as
armas nucleares; os robôs militares; as armas de energia dirigida, ditas
"não letais"; e a utilização da
cibernética
[7]
para fins de espionagem ou com vista a disrupção ou
desactivação de sistemas ou equipamentos informatizados. Neste
último domínio, fala-se de "ciberguerra" e entende-se
como tal, a intromissão
(hacking)
dolosa, politicamente motivada, em redes informáticas ou computadores
do (suposto) inimigo com o fim de provocar danos ou disfuncionalidades. William
Lynn, subsecretário da Defesa dos Estados Unidos, afirma que "como
questão de doutrina, o Pentágono reconheceu formalmente o
ciberespaço como um novo domínio da arte da guerra" que
"se tornou tão crítico do ponto de vista militar como o
solo, o mar, o ar ou o espaço (exterior)."
[8]
Neste contexto recorda-se a notícia vinda a público do ataque
ocorrido em Setembro de 2010 ao parque de ultracentrifugadoras de Natanz, no
Irão, de enriquecimento de urânio com vista à sua
utilização como combustível nuclear. Neste caso foi usado
o vírus Stuxnet até aí desconhecido
[9]
. O alvo do Stuxnet são sistemas de controlo usados em centrais
eléctricas e outras instalações industriais. A origem do
vírus não foi publicamente identificada mas há
razões que apontam para um projecto comum americano-israelense
[10]
.
De acordo com um artigo recente do
New York Times
[11]
, imediatamente antes de terem sido iniciados os raids americanos sobre a
Líbia, foi seriamente debatido no seio da administração
Obama, a possibilidade de lançar uma ofensiva cibernética com
vista a pôr fora de serviço os radares do sistema líbio de
alerta precoce ("early warning") contra ataques aéreos. A
possibilidade foi afastada por razões político-militares que
não cabe analisar aqui.
[12]
Nos EUA foi criada em 2009 uma subunidade do Comando Estratégico das
Forças Armadas com a designação de Ciber-Comando
(USCYBERCOM) a qual atingiu completa capacidade operacional em fins de 2010
[13]
.
No que respeita a engenhos nucleares para fins militares pode dizer-se que a
ameaça nuclear continua presente e no essencial inalterada quando
comparada a situação actual com a que existia há algumas
décadas atrás. Quarenta e um anos depois da sua entrada em vigor,
em 1990
[14]
e após oito Conferências de Revisão, mantém-se o
carácter discriminatório do Tratado de
não-proliferação relativamente aos estados que não
dispõem de armamentos nucleares e o desinteresse por parte das
potências nucleares signatárias do Tratado em dar os passos
previstos no seu Artigo VI, no sentido do desarmamento nuclear e do
desarmamento geral e completo.
Em 1996 foi aprovado o Tratado Geral de Proibição de Ensaios
Nucleares (CTBT)
[15]
. A entrada em vigor do tratado depende, entre outros, da
ratificação pelo Congresso dos Estados Unidos, o que, 15 anos
depois, ainda não aconteceu
[16]
. No entender de diversos observadores, o conhecimento que se tem das
orientações e decisões das administrações
norte-americanas no domínio nuclear ao longo dos últimos 20 anos,
permite dizer que os EUA não têm qualquer intenção
de prescindir da arma nuclear num futuro previsível
[17]
. No complexo nuclear militar científico e industrial norte-americano
prosseguem sem limitação de fundos os trabalhos de
manutenção, modernização e desenvolvimento de armas
nucleares. A orientação desses trabalhos pode resumir-se assim:
desenvolver armas capazes de penetrar no solo e destruir alvos
subterrâneos especialmente protegidos
("hardened");
e desenvolver armas cuja utilização seja politicamente
exequível, entendendo-se por isto, cabeças nucleares
susceptíveis de minimizar os chamados "efeitos colaterais"
[18]
.
Robôs, designadamente na forma de veículos aéreos sem
piloto (VASP) estão a ser usados extensivamente e são alvo de
constantes aperfeiçoamentos para utilizações militares
quer em teatros de guerra quer na localização e abate de alvos
humanos seleccionados, no que é o equivalente de uma
execução extrajudicial
[19]
. Esta utilização, inaceitável e efectivamente perversa,
abre a porta a novas formas de fazer a guerra. Robôs militares e VASPs
podem ser comandados ou "pilotados" a partir de uma consola de
comando situada a milhares de quilómetros de distância,
graças às possibilidades criadas pela existência de linhas
de comunicação eficientes de alta qualidade
[20]
.
Em anos recentes a utilização de robôs militares tem
crescido extraordinariamente: aquando da invasão do Iraque em 2003, as
forças dos EUA praticamente não possuíam robôs
militares; já em 2010 as forças armadas americanas dispunham de
um número global de cerca de 12 mil robôs militares dos quais
perto de 7000 eram VASPs os chamados "drones". Esta
evolução levanta questões sérias nos planos
ético e legal. No que concerne à classificação do
pessoal envolvido na utilização de robôs militares, pode
argumentar-se que se esfuma a distinção entre o
"soldado" e o não-combatente, em particular no caso daqueles
"pilotos" a distância e técnicos civis que tomam
decisões à mesa ou consola de comando, se levantam no fim de um
"dia de trabalho" e vão para casa jantar com a família
[21]
.
Os "drones" foram utilizados pelos americanos nos Balcãs, no
Iémen (com apoio da CIA), na Somália, no Iraque, no
Afeganistão e no Paquistão (neste caso sob controlo da CIA, por
razões que não podem ser examinadas aqui). Israel usou
"drones" na faixa de Gaza
[22]
. No caso da acção da CIA no Paquistão a taxa dos chamados
"danos colaterais" é estimada em 1 militante para 10 civis
abatidos
[23]
[24]
.
No que toca ao arsenal de armas de energia dirigida e outras, ditas
"não-letais", que visam sobretudo o controlo de movimentos ou
manifestações de massas em países ou regiões
política ou socialmente instáveis, mesmo no plano
doméstico, muito haveria a dizer mas o tempo disponível
não o permite. Ficará assim para outra oportunidade
[25]
.
Obrigado pela vossa atenção.
19/Novembro/2011
1. http://www.globalissues.org/article/75/world-military-spending. See also
Financial Times.com, "Global military spending slows" John O'Doherty,
April 11 2011.
Na edição do
Financial Times
do passado dia 6 do corrente podia ler-se a afirmação de que,
nos Estados Unidos, a degradação de infra-estruturas
físicas essenciais como estradas, pontes, barragens, redes
eléctricas, sistemas de abastecimento de água era tal que
o país se aproximava rapidamente de um estatuto (estou a citar) de
"segundo mundo". Acrescentava que os gastos com
manutenção e modernização de infra-estruturas
básicas se ficava por 2% do PIB, quatro vezes menos do que China.
2 .Este número inclui o orçamento base da defesa e também a
despesa respeitante às operações no Iraque e no
Afeganistão mas não inclui as despesas do Departamento de Energia
(DoE) com os programas respeitantes a armas nucleares. O valor indicado
equivale a cerca de três vezes o valor estimado nesse ano para o PIB
português
3. Entre 2000 e 2010 a despesa militar da R.P. da China terá passado de
cerca de US$34kM para cerca de US$120kM, isto é, terá crescido
cerca de 250%. Em 2010, os gastos militares dos EUA representavam cerca de 43%
da despesa militar global do planeta. Os EUA e a R. P. da China em conjunto
atingiam 50% da despesa mundial.
4. http://www.theworld.org/2011/08/defense-budget-tea-party/
5. Cf. Christopher Hellman, "The Runaway Military Budget: An
Analysis", (Friends Committee on National Legislation, March 2006, no.
705, p. 3)
6. Cf. "World Military Spending", Global Issues
(http://www.globalissues.org/article/75/world-military-spending ) (2011)
7. "Ciência que investiga os mecanismos de comunicação
e de controlo nos organismos vivos e nas máquinas." (cf.
Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa)
8. Lynn, William J. III. "Defending a New Domain: The Pentagon's
Cyberstrategy", Foreign Affairs, Sept/Oct. 2010, pp. 97108
9. Cf "Stuxnet worm brings cyber warfare out of virtual world", Pascal
Mallet (AFP) Oct 1, 2010
10. Cf. "U.S. Debated Cyberwarfare in Attack Plan on Libya", Eric
Schmitt and Thom Shanker, The New York Times, Published: October 17, 2011. A
mesma fonte refere que tanto o Pentágono como empresas com contratos
militares são objecto e repelem regularmente, ataques às suas
redes de computadores, muitos deles alegadamente provenientes de fontes russas
ou chinesas.
11. Id., ib.; tratava-se de penetrar as barreiras informáticas de
protecção contra intromissões
("fire wall")
das redes de computadores do governo líbio para cortar as linhas de
comunicação com as baterias de mísseis do sistema de
defesa antiaérea.
12. Recentemente (Outubro de 2011) foi descoberto um novo vírus
("malwware") que recebeu o nome de "Duku". O Duku partilha
grande parte do código informático do Stuxnet mas actua de forma
diferente e com objectivos diferentes (cf.
Discover Magazine,
October 19th, 2011, artigo de Veronique Greenwood). O novo vírus,
provavelmente com a mesma origem do Stuxnet, é um "vírus
espião", destinado à recolha de informação
sobre características e organização interna de sistemas de
redes e computadores, incluindo chaves de segurança, de modo a permitir
futuros ataques destrutivos ou de incapacitação. O vírus
não se reproduz e auto-extingue-se em 36 dias, provavelmente para
dificultar a detecção.
13. Além dos EUA, o Reino Unido, a R.P. da China e as duas Coreias, pelo
menos, terão posto de pé estruturas de defesa contra riscos
associados a ataques cibernéticos. Barak Obama afirmou, em 2009, que
tinham ocorrido situações de intrusão cibernética
nas redes eléctricas dos EUA com fim de avaliar as
condições de segurança das redes (Cf." China's
Cyberassault on America", Richard Clarke in
The Wall Street Journal,
Junho 15, 2011)
14. O TNPN obriga nesta data 189 estados, incluindo os cinco membros permanentes
do Conselho de Segurança
15. Aprovado na Assembleia Geral das Nações Unidas por uma maioria
superior a dois terços dos estados membros.
16. Os outros estados de cuja ratificação está dependente a
entrada em vigor do CNTBT são: China, Egipto, Índia,
Indonésia, Irão, Israel, Coreia do Norte e Paquistão
17. O chefe do Comando Estratégico dos EUA, general Kevin Chilton,
declarou recentemente o seguinte à comunicação social:
"Quando olhamos para o futuro e é minha
convicção que precisaremos de um dissuasor nuclear neste
país para o que resta do século, o século XXI penso
que aquilo de que necessitamos é de uma arma nuclear modernizada
compatível com os nossas também modernizadas plataformas de
lançamento". Cf. A elucidativa Informação de Andrew
Lichterman ,para a Western States Legal Foundation: "Nuclear Weapons
Forever: The U.S. Plan to Modernize its Nuclear Weapons Complex" (2008)
(http://www.wslfweb.org/docs/ctbrief.pdf )
18. Ver nota anterior
19. Ver "Resolução sobre a utilização de
robôs militares", Comissão Internacional para o Desarmamento,
a Segurança e a Paz (ICD), da Federação Mundial dos
Trabalhadores Científicos, Paris, Maio de 2011
(http://www.otc.pt/index.php/noticias/fmtc/43-robosmilit)
20. Há razões para dizer que a utilização de
robôs no campo de batalha ou em missões ofensivas de sobrevoo fora
dele, representa a mais profunda transformação da arte militar
desde o advento da bomba atómica.
21. No quadro do programa de expansão da automatização de
teatro de operações, a força Aérea dos EUA tem
neste momento em formação um número de operadores de
"drones" superior ao de pilotos de aviões de caça e de
bombardeiros tomados em conjunto. A meta para a robotização das
forças armadas dos EUA é de 15% para 2015. Cf. "US Air Force
prepares drones to end era of fighter pilots",
The Guardian,
Edward Helmore in New York, 23 August 2009
www.guardian.co.uk/world/2009/aug/22/us-air-force-drones-pilots-afghanistan
)
22. A Turquia que pretende adquirir drones aos EUA pôs à
disposição dos americanos uma base aérea que é
utilizada por uma esquadra de drones das FFAA dos EUA. Os drones armados
disparam em regra mísseis Hellfire ou Scorpion, estes de menor poder
destrutivo numa tentativa para reduzir os danos colaterais.
23. Cf, "Do Targeted Killings Work?", Daniel L. Byman, Senior Fellow,
Foreign Policy, Saban Center for Middle East Policy
(http://www.brookings.edu/opinions/2009/0714_targeted_killings_byman.aspx?p=1)
24. O arsenal de robôs militares de reconhecimento e ataque é
vasto.
Diversas fontes referem-se aos trabalhos de desenvolvimento tecnológico
de robots-espiões com aparência e dimensões semelhantes
às de um insecto, capazes de voar como insectos e passar despercebidos.
Entretanto decorrem também trabalhos que visam a
utilização de insectos reais em que são implantados
cirurgicamente dispositivos ("chips") electrónicos que
permitem comandar à distância o seu voo e comportamento. Esses
dispositivos enviam também sinais que contêm diversas
informações que interessam aos operadores. Os "chips"
são implantados nos insectos de preferência durante a fase de
desenvolvimento da crisálida antes da metamorfose final do insecto.
Trabalhos deste tipo estão em desenvolvimento no departamento das
Forças Armadas dos EUA designado por DARPA (Defense Advanced Research
Project Agency). Os insectos modificados são usualmente chamados
"Cyborgs" ou "Cybugs".
Os robots já utilizados ou que se encontram em fase de protótipo,
têm as mais variadas formas e dimensões, e finalidades
múltiplas. Tipicamente desempenham funções de espionagem,
vigilância, identificação de alvos e reconhecimento. Os
sensores utilizados permitem a recolha de imagens ópticas, que chegam a
cobrir um ângulo de 360º, sinais de radar, radiação
infravermelha, microondas e radiação ultravioleta. São
também usados sensores químicos e biológicos.
Sensores biológicos são sensores que podem detectar a
presença no ar de microrganismos e outros agentes biológicos. Os
sensores químicos podem detectar a presença e
concentração no ar de elementos químicos diversos por meio
de espectrometria de laser.
25. Existe uma considerável diversidade das ditas "armas
não-letais": feixes de energia dirigidos (infravermelhos);
geradores de impulsos sonoros de alta intensidade; projécteis que actuam
por efeito de impacto, descargas eléctricas, dispersão de agentes
químicos ou biológicos; barreiras electromagnéticas
("active denial systems");
indução externa de sons e imagens, por acção de
campos electromagnéticos que actuam sobre os circuitos
neurológicos do sistema nervoso central, e outros. Um olhar
rápido sobre esta parafernália de instrumentos e sistemas ditos
"não-letais" pode não deixar entender todos os seus
possíveis destinos, as motivações para o seu
domínio e suas implicações. Neste contexto é
útil citar aqui um documento já referenciado em trabalho anterio.
Cf. "Crowd Behavior, Crowd Control, and the Use of Non-Lethal
Weapons", Institute for Non-Lethal Defense Technologies, Human Effects
Advisory Panel, Report of Findings, Pennsylvania State University, 1 January
2001. O relatório é o resultado de um estudo efectuado sob
contrato com o Corpo de Marines dos EUA.
[*]
Membro da Presidência do Conselho Português para a Paz e
Cooperação, Doutor em Física e Engenharia Nucleares pelas
Universidades de Karlsruhe e Lisboa, Vice-Presidente do Conselho Executivo da
Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos
(
www.fmts-wfsw.org
), Presidente da Direcção da
Organização dos Trabalhadores Científicos (
www.otc.pt
),
Investigador-coordenador aposentado do Instituto Tecnológico e Nuclear.
Intervenção realizada no Conselho Português para a Paz e
Cooperação, 7/Dezembro/2011
O original encontra-se em
www.facebook.com/...
Este texto encontra-se em
http://resistir.info/
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