1 – Em que consiste – ou consistia
Certamente que você não pediu uma tal “revolução”. Mas vejamos em que consiste – ou consistia. A dita “4ª revolução industrial” ou 4 i, era – talvez ainda seja – o desiderato das oligarquias do “ocidente” para a reindustrialização e “nova política industrial” para o século XXI, baseado na “digitalização da indústria”, parte integrante do “novo recomeço”, o great reset.
O desenvolvimento no século XXI iria basear-se no conceito de digitalização dos processos na indústria e nos serviços, utilizando a robótica, as mais avançadas tecnologias da informação, comunicação e localização (as TICL) com comunicações Internet de alta velocidade tornando possível o controlo em tempo real de operações localizadas em pontos muito distantes. A conceção, a produção, controlo de qualidade, armazenamento, expedição, gestão, realizados através da ligação de redes informáticas, mesmo em diferentes países por subcontratantes com pessoal “altamente qualificado”.
Trata-se, portanto, de um processo “com um mínimo de intervenção humana”, em que a “fábrica” – indústrias e serviços – está dispersa, com a grande vantagem (para quem?) de não mais existir uma concentração de trabalhadores. Por exemplo, uma fábrica poderá estar na Ásia ou em África por razões de matérias-primas, financeiras, económicas, etc, e ser gerida, comandada, controlada em Berlim.
O aprofundamento da automação leva a que as instalações poderão operar praticamente sem presença humana: um ou dois trabalhadores sentados numa sala de comando a milhares de quilómetros podem verificar e agir a partir dos painéis de controlo e condução de unidades fabris ou serviços, estando os meios de produção, as cadeias de abastecimento e os canais de distribuição ligados e integrados digitalmente.
Com a recolha de dados em tempo real por sensores e processados centralmente por computadores de alta capacidade – mesmo capazes de “autoaprendizagem” – considera-se que haverá fábricas “inteligentes”, as “smart factories”, tal como “smart cities”, “smart energy”, “smart heath”, “smart living”, etc, enfim tudo “smart”.
A tecnocracia usa uma “novilingua” em inglês, aliás dos EUA, como no passado os sacerdotes usavam o latim. Para o comum das pessoas as expressões da tecnocracia vêm com um significado algo misterioso – cabalístico – ao qual, não dominando os conceitos, se devem submeter.
Mas a quem se dirige esta “revolução”? Os seus prosélitos exultam com as possibilidades. Utilizando ao máximo as mais avançadas tecnologias TICL poderão projetar e produzir produtos a partir da recolha das necessidades e dos gostos dos clientes, produtos em certos casos produzidos em pequenas quantidades, mesmo encomendas personalizadas, oferecendo bens perfeitamente adaptados a clientes individuais.
Tudo isto é apresentado como permitindo oportunidades de inovação, pequenas séries, maior importância dada aos detalhes ao gosto dos clientes, por exemplo em carros topo de gama e equipamento de luxo.
Claro que estas belas oportunidades não deixam de vir com ameaças: “a revolução tecnológica terá um impacto negativo para os que se atrasarem”. Leia-se: aos que estipularem os interesses nacionais e sociais como prioritários em relação aos das transnacionais.
2 – A revolução 4i como “saída da crise”
A dita “revolução 4 i” insere-se no “great reset”, uma fuga às realidades, acelerando fatores que estão na origem da interminável crise capitalista. Claro que a utilização de termos gerais vagos, disfarçando os conteúdos, é uma das fórmulas de iludir a maioria da população. É que sem informação correta e consequente é-se incapaz de identificar as causas, tomar as decisões mais adequadas, sequer defender os seus interesses mais imediatos.
Como Marx evidenciou, o capital recorre à tecnologia, à expansão dos mercados e, claro, ao aumento da exploração, para sair das crises que o sistema provoca. Mas isto só aumenta as próprias contradições. O keynesianismo, como capitalismo monopolista de Estado, foi resolvendo pontualmente as crises com uma maior intervenção direta do Estado na economia. Porém, na sua sequência cria condições para processos de transformação socialista. Esta a razão pela qual foi erradicado e o capitalismo industrial substituído pelo neoliberalismo e a financeirização.
A “revolução 4 i” a par dos investimentos em “energias verdes”, representam a destruição do capital fixo existente quando incapaz de gerar o lucro que o grande capital pretende para a sua reprodução alargada. Assim se encerram refinarias, petroquímicas, centrais elétricas e fábricas se tornam “obsoletas”, embora económica e socialmente necessárias, na miragem de subsídios para “energias verdes” e a 4i.
Todo este processo é feito à conta dos Estados e Bancos Centrais. O dinheiro para o social e o investimento público (na UE apenas o autorizado pela burocracia de Bruxelas) é desviado – é o termo – para a oligarquia que, apesar das fraudes, falências, corrupção e crises que provoca, tem por dogma o direito (divino?) de ser considerada gestora eficiente por excelência. Os subsídios e os ditos “incentivos”, são uma espécie de tributo a seres aos quais é necessário prestar reverência.
Portugal, segundo então anunciado no Programa 4.0, estratégias para a “economia digital”, contava com 414 milhões de euros de “incentivos comunitários”, apoios às empresas e ações de formação abrangendo 20 000 pessoas… Enfim, mais uma forma de dar dinheiro aos privados sem planeamento nacional…
Isto num país que, graças a uma oligarquia de 2ª categoria, subserviente aos centros imperialistas, em muitos casos perdeu valências que possuía no domínio dos processos tecnológicos e capacidades produtivas e no aproveitamento dos recursos nacionais do mar, do subsolo, da floresta e em sectores industriais.
De uma forma geral o que esta “revolução” faz é levar ao limite processos e tecnologias existentes, num sistema em que além da procura do lucro, procura-se atingir o ideal capitalista da fábrica sem operários e o fim do sindicalismo de classe. Seria o tão desejado fim da da luta de classes, o enterro do marxismo, o domínio absoluto do grande capital.
Os seus promotores afirmavam em 2015 e 2016 que potenciaria em 5 anos na “Europa” 110 mil milhões de euros de “redução de custos” (para quem?). Falava-se num aumento do PIB na UE de 5% (em que países?) criando 16 milhões de empregos altamente qualificados, embora fosse desde logo estimado o desaparecimento de 12 milhões menos qualificados. O resultado está à vista: recessão, mais empobrecimento enquanto a oligarquia não deixa de aumentar a sua riqueza.
As perspetivas eram aliciantes como de costume. São as mesmas ilusões tal como com o euro, os Pactos de Estabilidade e Crescimento, as Diretivas Europeias sobre concursos públicos, etc, que iriam permitir “crescimento e emprego”, poupanças de milhares de milhões aos Estados e aos “contribuintes”. Ilusões que a direção da UGT e os “europeístas” engoliam sofregamente e propagandeavam. O que conseguiram foi estagnação, desemprego, endividamento, crise, desigualdades e… mais pobreza.
O grande capital necessita da intensificação do progresso técnico para contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro. Mas não o faz por si. Este progresso radica, pelo menos nas suas bases e desenvolvimento no Estado, diretamente através da investigação que desenvolve nos seus centros tecnológicos, indiretamente através de encomendas, subsídios, redução de impostos, etc. Despesas públicas ao serviço do capital privado. O desenvolvimento tecnológico, um fator produtivo fundamental proporcionado praticamente sem custos para o grande capital, é mais um dos tais almoços grátis à custa dos cidadãos.
Porém, não é só nas questões que radicam os aspetos teóricos com que o capitalismo se confronta. As circunstâncias não são de todo favoráveis a prosseguir nos seus desígnios.
3 – As condições para a 4i não estão reunidas. Se é que alguma vez estiveram…
Para concretizar a 4i seriam necessárias condições geopolíticas, financeiras, económicas e a tão almejada “estabilidade política e social”. Mas o bloco ocidental está economicamente paralizado pela dívida, pela recessão e pela guerra que provocou. "Uma guerra desnecessária e totalmente evitável" como consta do Apelo de Veteranos dos EUA para o fim da guerra na Ucrânia.
O domínio geopolítico é fundamental para garantir o controlo da obtenção de matérias-primas, dos investimentos e da propriedade tecnológica (patentes), enfim dos mercados. Porém o mundo encontra-se dividido, polarizado entre o “ocidente”, NATO e aliados, que a si próprio se classifica como “comunidade internacional” (15% da população do planeta) e outro bloco centrado na China e na Rússia a que se associam outros países, designadamente em organizações de cooperação económica: OCS, UEEA, BRICS.
O fracasso das sanções à Rússia veio mostrar esta realidade que o imperialismo por natureza não é capaz de admitir. O “ocidente” tem portanto concorrência e não parece ter vantagem nas condições que as suas transnacionais estão em condições de oferecer.
A revolução 4i necessita do domínio global de um Estado hegemónico, com poder e autoridade para impor as suas regras. Para isso tornou-se necessário abater a Rússia e a China como poderosos poderes concorrentes. Os conflitos em curso desencadeados pela tresloucada ideia de que os interesses dos EUA e UE abrangem todas as terras e mares do planeta, considerando inimigos os países que tiverem outros interesses, significa simplesmente que o “ocidente” falhou em estabelecer uma autoridade política e económica global estável para garantir a reprodução capitalista alargada das suas transnacionais.
Quanto à vantagem financeira, está a desaparecer dado que o dólar é visto cada vez com mais desconfiança. Segundo o Financial Times, China e Rússia tornaram-se os maiores aforradores de ouro. A Rússia e a China não mais confiam no dólar como principal ativo de reserva. Os bancos centrais dos dois países estão a comprar ouro ao ritmo mais rápido desde 1967, quando se deu uma viragem histórica no sistema monetário global conduzindo ao fim do sistema de Bretton Woods, que indexava o valor do dólar ao ouro.
Não é apenas a astronómica dívida federal dos EUA, 31,5 milhões de milhões de dólares, 121,5% do PIB, crescendo cerca de 5% ao ano, mas que atinge 135,2% do PIB incluindo a dívida dos estados e locais. A fragilidade do dólar como moeda de reserva internacional, é evidenciada pelo volume de comércio internacional crescentemente efetuado noutras moedas, que a Rússia e a China promovem em alternativa ao dólar. A chantagem das sanções, a captação de verbas depositadas nos bancos ocidentais, etc, aceleram este êxodo. Quanto ao euro limita-se a ser um sucedâneo de segunda ordem do dólar.
A exploração dos países mais pobres, há 60 anos ditos “em desenvolvimento” (!) mostra o carácter parasitário do capitalismo e o seu fracasso como solução para o desenvolvimento e a paz mundial. Manter o domínio global tem um elevado preço. O custo das guerras dos EUA desde 2001, ultrapassa os 8 milhões de milhões de dólares. Para a manutenção da guerra com a Rússia e a sobrevivência do regime nazifascista da Ucrânia [1] os EUA já comprometeram 112 mil milhões de dólares, mais de 10 mil milhões por mês desde fevereiro. Isto sem contar as verbas da UE, que chegam a milhares de milhões por mês. Há ainda que sustentar 14 milhões de refugiados internos na UE e um Estado falido que pretende 35 mil milhões de dólares para o seu OE.
Esta pressão económica, financeira e armamentista, deixa a UE sem condições não apenas para os desígnios 4 i, mas para a sua própria sobrevivência como potência económica global, vivendo uma crescente instabilidade social e política. A verborreia sobre unidade não passa de camuflagem mascarando a incapacidade de perspetivar um futuro de minimamente estável.
A “atlantismo” da UE custa caro, mas os seus líderes escolheram, como afirma Michel Hudson, ser um satélite dos EUA. O dólar permanecerá com procura, graças ao seu sucesso em tornar a zona do euro dependente dele. Mas à medida que a taxa de câmbio do euro diminui em relação ao dólar, o investimento estrangeiro diminuirá, porque os investidores não vão querer investir num mercado em encolhimento e em empresas que ganham euros que valem cada vez menos dólares ou outra moeda forte.[2]
Os países do “ocidente” estão, pois, confrontados com dois condicionantes: o neoliberalismo e as sanções impostas pelos EUA a terceiros países. Acresce um terceiro decorrente destes dois: as despesas do belicismo, do militarismo. O neoliberalismo, o domínio da finança credora, levou à desindustrialização, deslocalizando indústrias, procurando mão-de-obra barata na busca de maiores lucros, tentando estabelecer privilégios de monopólio e mercados cativos em armas e bens essenciais de alta tecnologia, tornando-se economias rentistas. Mas tudo isto está a ser posto em causa.
As sanções conduziram à contração dos mercados, estagnação e recessão económica e uma dificilmente controlável inflação. As sanções levaram a uma crise energética cujas consequências são escamoteadas. “O petróleo é o principal fornecedor de energia. O aumento da produtividade do trabalho e do PIB para as principais economias tende a refletir o aumento do uso de energia por trabalhador. O petróleo e o gás são também são básicos para fertilizantes e, portanto, para a produtividade agrícola, bem como para muita produção de materiais plásticos e outros produtos químicos”. [2]
“Os EUA podem instar a UE/NATO europeia a gastar uma soma imensa para se rearmar, principalmente com armas dos EUA. Esta despesa irá afastar as despesas sociais para ajudar a Europa a lidar com a sua crescente depressão industrial e subsídios para reavivar a sua indústria. Uma economia militarizada irá tornar-se uma sobrecarga crescente. De facto a Europa está a autodestruir-se”.[2]
(continua)