Lógico, porque é ilógico (2)

Daniel Vaz de Carvalho

Cartoon de Latuff.

4 - A lógica ilógica da guerra

Os acontecimentos na Ucrânia ou no Médio Oriente mostram que, seja Biden ou Trump, a natureza do sistema impõe-se. Os "comentadores" adoram discutir pessoas, isso permite-lhes não discutir o sistema, assumido como perfeito. Contudo só muito raramente personalidades têm capacidade de o alterar e nunca os que são uma emanação do seu declínio.

Trump apresentou-se como pacificador, o que era lógico atendendo à situação dos EUA, económica, financeira, social, mesmo militar, porém acaba por assumir o ilógico dos neocons e suas guerras. Na Ucrânia a guerra não mostra tendência de terminar, no Médio Oriente enquanto decorriam negociações entre os EUA e o Irão, Israel com apoio dos EUA, sem declaração de guerra, lança um ataque maciço contra o Irão.

Lógico? Sim, porque ilógico. Sobre esta guerra ainda no início não há muito a dizer:   sem a intervenção dos EUA, Israel está à partida derrotado inclusivamente porque os mísseis iranianos estão a penetrar com sucesso em todas as camadas dos sistemas de defesa de Israel.

O ataque de Israel violou a Carta da ONU, foi lançado sem base legal para legítima defesa. Em março, Tulsi Gabbard, chefe de segurança e informações dos EUA tinha rejeitado as alegações de Israel:   "O Irão não está a construir uma arma nuclear". Em 12 de junho a AIEA acusava o Irão de violações do Tratado de Não Proliferação, sem apresentar provas, baseando-se em "intenções", dando justificação para as ações de Israel, que concretamente violou esse Tratado (que nunca assinou) em que qualquer ataque a instalações nucleares é vedado.

Como bons vassalos dos neocons, a UE em vez de condenar o ataque alinhou nas alegações de Israel, em perfeita orquestração e felizes por poderem ignorar o drama palestino. Macron: "A França condenou repetidamente o programa nuclear em andamento do Irão. A França reafirma o direito de Israel se defender e garantir sua segurança". Merz: "O programa nuclear [do Irão] viola as disposições do Tratado de Não Proliferação Nuclear. Reafirmamos que Israel tem o direito de defender sua existência e a segurança de seus cidadãos". Von der Leyen: "Reiterei o direito de Israel se defender e proteger seu povo". A França e o RU colocaram-se desde logo à disposição dos EUA na guerra contra o Irão. Com isto ainda se descredibilizam mais internacionalmente e agravam as já débeis condições económicas.

Claro que Israel atacar o Irão é a forma mais ilógica de "defender e proteger seu povo", mas o aventureirismo reina no ex-império unipolar. Não vencendo na Rússia avançam para o Irão, tentando colocar em cheque a Rússia e a China. Prolongar conflitos, sabotar negociações de paz e esforços diplomáticos, faz parte da lógica de eliminar os inimigos da "ordem" imperialista. De provocação em provocação, os vassalos do ex-império procuram criar situações de não retorno, arrastando os EUA para uma guerra contra a Rússia e contra o Irão, sem medirem as consequências de se tornar um conflito global e nuclear.

Numa linguagem de filme de terror, o SG da NATO, Rutte, apelou aos aliados para aumentarem os gastos militares e assumirem uma “mentalidade de guerra” (!?). "Mesmo que não exista uma ameaça militar iminente contra a NATO, isso não impede a Rússia de se preparar para um confronto a longo prazo com a NATO". "Para além da Rússia, a China, o Irão e a Coreia do Norte estão a trabalhar arduamente para enfraquecer a América do Norte e a Europa”.

Pequim tem também de ser levado à submissão: as "ambições e políticas coercivas declaradas" de Pequim constituem um desafio para os interesses aliados e à segurança euro-atlântica. A China "esforça-se por subverter a ordem internacional baseada em regras, incluindo nos domínios espacial, cibernético e marítimo". Perante o "aprofundamento da parceria estratégica" entre Pequim e Moscovo, o SG da NATO em 2024, acusava a China de ser o principal facilitador da guerra da Rússia contra a Ucrânia exigindo (!) uma mudança de postura de Pequim.

O ilógico de tudo isto é que diariamente milhões de euros em equipamentos são destruídos. A Ucrânia perdeu um grande número de efetivos e as campanhas de recrutamento não resultam. O tenente-coronel dos EUA, Alex Vershinin, com experiência no Iraque e no Afeganistão e como oficial de modelagem e simulações, elaborou um estudo amplamente documentado sobre as perdas na guerra na Ucrânia. Em 40 meses de guerra, um total de 144 000 soldados russos terão sido mortos e 288 000 baixas permanentes. Quanto à Ucrânia, a estimativa é de cerca de 769 000 mortes e cerca de 769 000 baixas permanentes, o que corresponde à estimativa da Fundação Jamestown de cerca de 1,5 milhão de baixas.

Os recursos da Ucrânia estão esgotados, o país está à beira do colapso, o regime só se mantém pelas transferências de armas e capital da UE e NATO, que prosseguem políticas autodestrutivas e disfuncionais. Dos 31 Abrams (6 milhões de dólares cada) dos EUA, restam 5. Os Patriot têm sido sistematicamente destruídos, cada bateria custa cerca de 1000 milhões de dólares, cada míssil 4 milhões.

A produção de equipamento militar na UE/NATO, enfrenta para além do financiamento, da desindustrialização e correspondentes competências técnicas, a questão das matérias-primas. Mais de 75% das compras militares dos países da UE são feitos fora do bloco, com 63% de todos os contratos a empresas dos EUA.

Tanto Israel como na UE/NATO recusam-se a entender que numa guerra em grande escala, a capacidade industrial prevalece, dado o consumo intensivo de equipamentos, munições, combustíveis, tudo necessitando de matérias-primas que não dispõem e capacidade de transformação em ambos os casos limitada. Pela lógica da sua segurança, Israel devia aproveitar as negociações em curso entre o Irão e os EUA, para garantir a sua segurança e ter uma solução para o conflito com a Palestina que foi incapaz de resolver. Mas o que prevalece é a natureza racista e fascista do seu governo e o imperialismo dos seus aliados encetando uma fuga em frente de destruição.

Porém, já lá vai o tempo em que os EUA e seus vassalos europeus ditavam as condições das guerras e obrigavam os países a alinharem-se segundo os seus interesses. A irrelevância desta Europa, ficou patente na fantasia de querer um cessar-fogo na Ucrânia como condição para negociações de paz, sem meios políticos ou militares para o impor. Foi uma tentativa canhestra de repetir os acordos de Minsk para uma "coligação dos dispostos" liderada pela França e RU enviar tropas para a Ucrânia e prolongar a guerra. Representou mais um fracasso de líderes e burocratas da UE/NATO, recusando-se a perceber que o mundo unipolar dos neocons ruiu irremediavelmente.

"Analistas" passam o tempo tanto a propagandear a superioridade do armamento da NATO, a falar de miríficas vitórias de Kiev ou a considerar a "Rússia um anão comercial, militar e demográfico perante a Europa". Diz o tenente-coronel Daniel L. Davis, veterano dos EUA: as alegações ocidentais sobre a fraqueza da Rússia não poderiam estar mais longe da verdade. Por um lado, os media dizem que a Rússia está em seus últimos dias, mas, ao mesmo tempo, alertam que se prepara para atacar os 32 membros da NATO após o fim do conflito na Ucrânia.

Segundo o comodoro britânico Steve Jermy a NATO não poderia vencer uma guerra com a Rússia. Ao contrário da Rússia, nenhuma grande nação da NATO está mobilizada industrialmente para a guerra. Não é claro que a NATO possa mobilizar-se na velocidade e escala necessária para ter os níveis de equipamento, munições e pessoal equiparáveis à Rússia. Não se trata apenas de perda de capacidade industrial, mas também de perda de capacidade financeira. Das maiores nações da NATO, apenas a Alemanha tem uma relação dívida/PIB abaixo de 100% (embora em recessão há quase três anos).

Especialista em guerra subaquática, o comodoro não acredita que a NATO tenha as forças anti-submarinas necessárias para proteger com êxito as comunicações marítimas da Europa, nomeadamente importações de petróleo e GNL, críticos para a sobrevivência económica da Europa.

Os belicistas fazem propaganda dos mísseis da NATO que podem atingir cidades russas, mas os Taurus ou os Storm Shadow limitam-se a Mach 0,95, os Towmahawk dos EUA (alcance 2500 km) a Mach 0,75. Fariam bem em avaliar como as cidades europeias poderiam ser atingidas por mísseis russos. As defesas da NATO são insuficientes ou mesmo inúteis para deter mísseis hipersônicos manobrando de forma imprevisível como os Zircon, Mach 5; Kinzhal, Mach 10; Avangard, Mach 27; Yars, Mach 25 alcance 12 000 km ou os transportadores múltiplos como o Sarmat ou o Oreshnik.

O que Steve Jermy escreve sobre os europeus aplica-se também a Israel: temo que não tenham a capacidade de calcular o equilíbrio de poder, uma competência crucial na guerra. Se quisermos contribuir de forma inteligente para acabar com a guerra devemos voltar aos fundamentos da formulação estratégica e calcular os equilíbrios relativos de poder. O que conta no campo de batalha é a capacidade industrial e a energia. A capacidade industrial e as operações militares, dependem de um fornecimento fiável de energia barata, de alta qualidade e abundante, que os europeus não dispõem. Israel necessita de 220 000 barris por dia de crude.

O desafio logístico, a distância entre centros produtores e locais das operações é também muito importante, dadas as vulnerabilidades das linhas de comunicação e despesas envolvidas. A Rússia, grande potência terrestre, opera em rotas logísticas domésticas. Segundo o comissário europeu para a Defesa e Espaço, Andrius Kubilius, a UE necessita de um investimento inicial de 70 mil milhões de euros apenas para urgentemente adaptar os corredores ferroviários, rodoviários, marítimos e aéreos, de modo a facilitar a deslocação rápida de tropas e equipamentos através do bloco. Por que não falam os "comentadores" destes temas?

A UE/NATO justifica os investimentos e preparativos de guerra apresentando a Rússia como um estado agressivo, na realidade a Rússia está a defender-se contra a expansão da NATO para suas fronteiras. Pela lógica seria o momento do debate político se centrar na forma de estabelecer um ambiente de paz e cooperação na Europa.

5 - A lógica das contradições

O império unipolar acabou. Mas não se pense que os impérios desaparecem pacificamente. Os ataques de Israel ao Irão e os confrontos posteriores colocam o mundo mais perto da guerra global. A Rússia e a China, sabem que uma derrota do Irão se tornaria uma questão existencial para ambos.

Henri Krasucki resistente e líder da CGT francesa, escreveu que "nada faz pior aos trabalhadores que a colaboração de classes". O mesmo se aplica aos países que procuram a conciliação com o imperialismo. Estas tentativas resultam sempre no mesmo, seja na Rússia, mesmo com Putin, na Ucrânia antes de 2014, na Líbia, na Síria nos últimos tempos de al-Assad, agora com o Irão. A exceção vai para a RPDC.

A lógica é que sendo aqueles países capitalistas, pensam ter interesses comuns com outros capitalistas, a contradição é não perceberem que lidam com o imperialismo.

A Rússia ofereceu ao Irão um tratado semelhante ao assinado entre a Rússia e a RPDC com uma cláusula de segurança mútua, mas em Teerão esperavam um acordo com o Ocidente. Assim a parceria estratégica assinada, após vários adiamentos, não contém uma aliança militar. [NR]

Trump como Biden são expressões do declínio do império. A desdolarização prossegue imparável, as tarifas alfandegárias não conseguem impor-se e tornam-se – como as sanções – contraproducentes. O afastamento de Musk mostra as divisões na oligarquia imperialista. A insatisfação com o desempenho de Trump e ausência de resultados, reflete-se na agitação interna dos adeptos do projeto MAGA de Trump, dos apoiantes dos neocons e da resistência das burocracias da USAID, CIA e suas ONG, etc, às mudanças pretendidas e perda de estatuto.

Na UE/NATO fazem-nos pagar bem caro a sua incompetência, falta de seriedade, facciosismo belicista. As sanções tiveram como consequência aumentar os custos de energia, perda competitividade e do nível de vida das populações mas os belicistas ainda querem mais. O euro está em colapso contra o ouro, em relação a 2000 o seu valor é 7,6 vezes inferior. O BCE imprime dinheiro descontroladamente, disparando entre 2000 e 2024, de 1 milhão de milhões de euros para 7 milhões de milhões, sem que a crise do endividamento tenha terminado. O ilógico é não entenderem que imprimindo mais dinheiro, endividando-se os países ainda mais, alimentam processos de crise.

As novas sanções pretendidas pela UE ameaçando o comércio de países terceiros com a Rússia, teriam como consequência um maior isolamento europeu, na tentativa de retirar produtos russos (energéticos, alimentares, minerais) da economia global. Se não percebem as consequências disto...

Entretanto a China realizou uma cimeira em Changsha (província de Hunan) com todos os países africanos (exceção do minúsculo Essuatini/Suazilândia), sendo emitido um manifesto declarando a intenção de resistir conjuntamente ao "unilateralismo e protecionismo" dos EUA e prometendo implementar as iniciativas de Desenvolvimento Global, de Segurança Global e de Civilização Global da China.

Líderes e burocratas não parecem dar conta que os interesses da sua Europa pouco ou nada contam nem mesmo para os EUA. Trump olha-a como um rival económico e um abusador da sua riqueza; os neocons - que a burocracia e propagandistas seguem religiosamente - como agentes das suas guerras.

Kaja Kallas, exemplo da incompetência e irresponsabilidade da UE, diz que "a UE planeia substituir parcialmente a USAID no Sul Global, concentrando-se na “promoção da democracia”. Alguém lhe terá falado no orçamento da USAID sujeito a cortes pelos custos e corrupção associada?

Independentemente da propaganda belicista, esta Europa é fundamentalmente fraca. Para aumentarem os níveis de produção militar terão que exceder os 5% do PIB. Contudo, o contexto real é que a unidade política e o apoio para colocar tropas em número significativo no terreno, não existem. A Ucrânia está dominada pela repressão dos neonazis, as eleições foram canceladas, a população está devastada pelo cansaço da guerra e pelos gangues de recrutamento forçado. Quanto ao governo de Israel o descrédito interno e externo generaliza-se pelos comportamentos agressivos e genocidas.

Com políticas consistentes a guerra e as crises poderiam ser evitadas. Como não sabem ou não querem, falam, mas é tudo inconsequente e já quase ninguém fora dos círculos da UE/NATO os leva a sério. O simples bom senso levaria a que promovessem a paz e boas relações nas suas fronteiras e zona mediterrânica, em vez disso submetem-se a desastrosas políticas imperialistas.

A liberdade e a democracia acabam por ceder perante as contradições insanáveis do sistema, cuja prioridade são os interesses oligárquicos e imperialistas. Nesta situação de declínio e confusão ideológica, a extrema-direita torna-se o recurso mais ativo na defesa e manutenção do sistema. O que não deveria ser novidade ou causar espanto em particular aos que se consideram de esquerda.

Os imigrantes, gente que fugiu da miséria e caos que o sistema origina, servem para a extrema-direita expandir o racismo, apoiada em importantes media. O simples bom-senso de dizer que é urgente mudar o sistema, é alvo de boicote e formas de marginalização ou mesmo perseguição.

Para Marx o Estado representava opressão. Na sociedade de classes existe a luta de classes entre a burguesia, no conceito de Engels, e o proletariado. Esta situação traduz-se na ditadura da burguesia que quando aliviada pela luta popular constitui a democracia burguesa, ou na democracia popular revolucionária. A democracia burguesa não é garantida e está sempre em perigo se não se luta por ela, como a social-democracia minimamente honesta descobre tarde e a más horas.

Claro que em tudo isto há que distinguir entre tática e estratégia, não baralhando conceitos e tendo em conta que a primeira só é válida se estiver ao serviço da segunda, a construção do socialismo e no futuro o comunismo em que o papel repressivo do Estado é anulado.

Será que com a vitória da revolução é garantida uma plena democracia? Não, as contradições não desaparecem por decreto e enquanto houver imperialismo não há plena democracia. Lembremos que o "puritanismo revolucionário" provou bastas vezes – como no pós 25 de ABRIL – ser uma máscara contra revolucionária.

A revolução e suas políticas progressistas só são possíveis de se realizar e manter controlando os grupos financiados pelas ONG da CIA ou seduzidos através da USAID. Trata-se de uma questão existencial para o processo revolucionário, que a social-democracia aproveita para alinhar com a direita e o imperialismo e clamar por democracia, que se traduz em ceder face à oligarquia e ao imperialismo.

A dissidência social-democrata do marxismo (Bernstein e outros) baseou-se em que em vez das transformações revolucionárias no âmbito da luta de classes preexistente, encaravam a democracia burguesa como uma via para o socialismo através de reformas. Recusando entender as contradições do sistema, o que a História mostrou e mostra é que de cedência em cedência o que avança são os fascismos.

Em fascismo praticamente tudo o que é negativo na vida social torna-se norma:   discriminação, perseguições, racismo, guerra. Pode perguntar-se:   e o sofrimento do povo? Mas onde é que o sofrimento do povo interessou ao fascismo? Basta-lhes ter o poder e as oligarquias aumentarem os benefícios financeiros.

[NR] Além disso os iranianos atrasaram absurdamente a ratificação do Tratado de Parceria Estratégica com a Rússia. Ver https://t.me/resistir_info/4954

17/Junho/2025

Ver também:
  • Lógico porque é ilógico (1)
  • Este artigo encontra-se em resistir.info

    20/Jun/25

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