Lógico porque é ilógico (1)

Daniel Vaz de Carvalho [*]

Nau de loucos, Hyeronimus Bosch.

1 – A natureza do ilógico

A parábola da rã e do escorpião, em que o escorpião mata a rã quando esta o transportava para atravessar o riacho, reflete a dualidade do lógico e do ilógico:   lógico porque o escorpião cede à sua natureza, ilógico porque também morre.

Podemos ficar espantados com as políticas da UE e da NATO, qualificá-las como estúpidas ou suicidas, questionar a sanidade mental que as concebe, porém são lógicas: seguem a natureza do seu sistema neocolonial e imperialista. Mentem, fomentam provocações que podem levar à destruição global porque a exploração e o domínio sobre outros é o que faz existir esse sistema.

Mentiram quanto à expansão da NATO, tripudiaram nos acordos de Minsk, ignoraram as propostas de segurança coletiva de dezembro de 2021, cancelaram as negociações de paz de abril de 2022, procuram sabotar as atuais negociações. Como nada disto parece suficiente para a guerra que destruiria o "inimigo principal", a provocação sobe de nível atacando bases estratégicas russas protegidas pelos acordos SALT e enquanto estavam em curso negociações entre os EUA e o Irão este é objeto, sem declaração de guerra, de um ataque maciço por parte de Israel, apoiado pelos EUA.

Seria lógico que a UE/NATO estivesse interessada em parar a guerra na Ucrânia, mas a sua natureza leva-os no caminho ilógico de mais sanções para escalar a guerra. Tal como Israel, a natureza do seu sistema fá-los acreditar na excecionalidade e impunidade perante os outros povos, algo que pode resultar numa tragédia de que nos estamos a aproximar perigosamente.

Somente loucos continuam a insistir em sanções autodestrutivas contra a Rússia ou mesmo sonhar com mais medidas punitivas contra a China, mas é neste mundo de insanidade e fantasia autodestrutiva, que se vive no ocidente, acreditando que propaganda e ameaças representam mais segurança e superioridade sobre qualquer país que considerem inimigos do seu sistema.

Na mais irracional contradição, vemos num novo pacote de sanções da UE anunciado por von der Leyen e a Alemanha apoiar o plano de eliminar o Nord Stream e bloquear qualquer hipótese de cooperação com a Rússia. Lavrov, comenta que os políticos europeus que se opõem a restaurar o funcionamento dos Nord Stream, são "doentes ou suicidas".

Pela lógica os líderes europeus deveriam aproveitar qualquer caminho viável para a paz, estabelecer acordos de segurança mútua e restabelecer relações de cooperação económica com a Rússia. Em vez disso, respondem com uma "ameaça russa", enquanto se afundam económica e socialmente no apoio militar e financeiro à Ucrânia e anunciam planos de rearmamento, preparando um confronto com a Rússia, sem ponderar as consequências.

Esta postura auto-destrutiva expressa a lógica do ilógico, burocratas e políticos cada vez mais distantes da realidade, adotando narrativas com paralelo na delirante propaganda nazi quando sucessivas derrotas prenunciavam o inevitável fim. Tal como Goebbels proclamava a "guerra total" quando o exército soviético se aproximava das fronteiras do "Reich", sobram os apelos à preparação para uma guerra total contra a Rússia.

A UE tornou-se uma organização cada vez mais autoritária e antidemocrática, as crises têm sido usadas para aumentar a sua influência sobre áreas reservadas aos governos nacionais, como orçamentos, relações externas, defesa, até mesmo com as vacinas Covid, o Pfizergate. Acelerando o processo de centralização a UE foi transformada num braço da NATO.

Assim a palavra de ordem é que "a Rússia ameaça a segurança comum da Europa", um último esforço para salvar o estatuto da burocracia instalada em Bruxelas e Frankfurt. Admitir o fracasso na Ucrânia equivaleria a um suicídio político, especialmente devido aos custos económicos suportados pelas populações. A guerra tornou-se uma justificação para sua dominação, encobrindo os fracassos das suas políticas. Acabar com a guerra exigiria reconhecer que o desrespeito da NATO pelas preocupações de segurança da Rússia desempenhou um papel no desencadeamento do conflito, minando a narrativa de uma injustificada agressão. Sofrem dos problemas dos mentirosos compulsivos, não podem parar de mentir.

A UE tem como sua diplomata-chefe a russófoba Kaja Kallas, que no fórum de segurança de Shangri-La falou sobre a ousadia (sic!) da Rússia e da China discutirem "mudanças não vistas em cem anos" e uma nova "ordem de segurança global", dizendo que este é “o maior desafio do nosso tempo”. "Qualquer pessoa preocupada com a China também deveria entrar em pânico com a Rússia porque, eles vêm como no mesmo pacote".

Isto quando para contrariar as tarifas de Trump, a UE procura acordos comerciais com a China o que mostra o nível de contradições e irrelevância geopolítica da UE/NATO delirando numa realidade que só existe nas suas transtornadas cabeças.

2 – O ilógico económico

O lógico seria mudar de sistema, o ilógico é manter um sistema que nitidamente falha social e economicamente. Na UE a crise é geral. A incapacidade da UE fazer algo significativo está patente no falhanço do Mecanismo de Recuperação e Resiliência: os países e as pessoas estão em piores condições que antes. Agora deliram na vertigem das despesas militares, mais uma visão virtual sem se saber o que vão fazer, como, onde e quem.

Desde 2022, as economias da UE e do RU permanecem estagnadas ou em recessão e endividadas, embora continuem a aumentar as despesas militares e financiar Kiev. Com défices orçamentais crónicos financiados por dívidas, mesmo um pequeno aumento nas taxas de juros irá agravar a crise de forma dificilmente controlável. A França está à beira da recessão, com a dívida pública a aumentar para 112% do PIB, em 2024, segundo os critérios da UE, na realidade 128,2%. A Alemanha está em colapso, de acordo com uma pesquisa realizada pela Câmara de Comércio e Indústria Alemã e 2025 deverá ser o terceiro ano consecutivo de contração económica.

Com recursos energéticos quatro vezes mais altos do que na Ásia, perderam capacidade económica e competitividade. Como podem passar da propaganda e competir com a Rússia, China, Índia, no Sul Global? Desde 2000, a participação da UE/NATO na indústria global caiu de 22,5% para 14%; a produção global de aço diminuiu de 7% para 4%; a produção química caiu 15%; os carros produzidos na UE passaram de 18,7 milhões para 14 milhões nos últimos oito anos.

Nos últimos dois anos, a economia russa teve um crescimento de 8%. a UE no seu conjunto apenas 1%. A Rússia ocupa o primeiro ou terceiro lugar mundial na produção de mais de 12 minerais, sendo líder em termos de reservas de muitos recursos naturais. A Rússia não só pode resistir a sanções, como se tornam autodestrutivas para os países que as aplicam, ao serem condicionadas as compras de hidrocarbonetos, urânio, titânio, níquel, etc. Destaque-se que uso de moedas nacionais em acordos comerciais entre países da CEI agora ultrapassa 85%.

É neste cenário, económico que se pretende "apoiar a Ucrânia enquanto for preciso". Mas não é para a finança, que a oligarquia não paga as crises que provoca, nem vai nos jogos florais dos propagandistas. Se querem guerras, o Zé Povinho que as pague.

Em 2 de junho, a Ucrânia deveria ter efetuado o pagamento aos detentores títulos emitidos durante a reestruturação da dívida externa de 2015. O pagamento não foi efetuado, conforme relata a agência de classificação de risco S&P, encontrando-se na situação de incumprimento, isto é, incapacidade de cumprir com as obrigações financeiras. Consequências: restrição de crédito, aumento de juros, perda de património (o que resta?).

Já em 31 de maio de 2024, a Ucrânia deixou de pagar os valores em dívida, com uma moratória até existir uma reestruturação da dívida com condições de pagamento mais suaves. Duvidando de uma resolução, a S&P rebaixou os títulos da Ucrânia para D (default – incapacidade de pagar) e o crédito de longo prazo para SD (default seletivo – admite que paga alguns títulos).

Em dívidas associadas a "warrants do PIB", os juros estão vinculados ao crescimento do PIB desde que ultrapasse o limite estabelecido, 3% no caso da Ucrânia, a partir do qual é obrigada a pagar valores adicionais aos credores. Em 2023, o crescimento oficial do PIB atingiu 3,6% (o dinheiro que lhe dão contou para o PIB), levando à obrigação de pagamento de 665 milhões de dólares aos detentores desses garantias, que incluem fundos americanos como Aurelius Capital Management LP e VR Capital Group.

Kiev, mantêm-se com o que lhe dão e não tem condições para cumprir mesmo os termos revistos da dívida, abrindo caminho para um calote total, o que pode levar investidores a confiscarem ativos ucranianos para saldar dívidas.

É facto que quando toca a dinheiro, a música é outra. A oligarquia não deixa o seu dinheiro nas mãos rotas de Kiev. Se a UE e a NATO querem fazer a guerra – no interesse da oligarquia! – que o vão buscar aos países e a entidades oficiais, que retirem do que seria investimento público e funções sociais, para os quais se aplicam as regras das "contas certas".

A Ucrânia corre também o risco de perder até 3,5 mil milhões de euros anualmente após o cancelamento das importações isentas de impostos de produtos ucranianos – basicamente agrícolas – para a UE. As cotas de importação do Acordo de Associação de 2014 serão restabelecidas, acima das quais pagarão taxas alfandegárias.

Cristine Lagarde fez uma conferência com o título sugestivo: "O papel da Europa num mundo fragmentado", confissão do fim do domínio global do imperialismo. Delira ao dizer que o euro pode tornar-se uma alternativa ao dólar, sendo que o papel mais relevante do euro tem que estar associado a um maior poder militar para que possa apoiar parcerias! Será necessário explicar a esta senhora – que ganha 35,6 mil euros por mês (além das mordomias) – que o comércio internacional tem que ver com capacidade de financiamento, competitividade, economias fortes e não endividadas, capacidade de colaboração mutuamente vantajosa com parceiros locais.

Contudo, o que a oligarquia sabe fazer melhor é explorar e deixar os povos no atraso. Um exemplo: a industria extrativa em Portugal em que devido às políticas de direita o minério é exportado com um mínimo de transformação para transporte... de acordo com o interesse dos "investidores".

3 – A lógica do antissocial

Durante décadas, a História da União Soviética e da Rússia foi distorcida, fomentaram-se sentimentos primeiro de menosprezo depois de agressividade, facilitando a ascensão do nazismo na Ucrânia e da extrema-direita na UE e NATO. Isto a cargo de políticos e media com o argumento de que se estava a "defender a democracia e a liberdade". Para manter esta farsa, de que não se podem livrar sem se desacreditarem a eles próprios e ao sistema que promovem, recorrem ao alarmismo de que se não se der dinheiro à Ucrânia para "se defender da agressão russa" o resto da Europa será invadido por Moscovo.

Este alarmismo serve como chantagem, forçando as pessoas a prescindir dos direitos sociais em nome do reforço militar. O Financial Times, expressou a lógica subjacente: "A Europa deve reduzir seu estado de bem-estar social para construir um estado de guerra".

Quem semeia ventos colhe tempestades e é isso que acontece nesta Europa. Perante a degradação dos níveis de vida, os protestos contra as políticas praticadas e o belicismo sucedem-se nos vários países, com os governos não só prosseguido, mas agravando medidas desastrosas.

Protestos de agricultores têm-se realizado repetidamente em praticamente todos os países, exigindo subsídios, preços de venda adequados, cortes de impostos dado os incomportáveis aumentos de preços dos combustíveis e “importações descontroladas” da Ucrânia.

A França tem sido dos países mais abalado por protestos não só de agricultores mas de sindicatos e cidadãos em geral contra "reformas" cujo objetivo é liquidar os direitos laborais e sociais adquiridos. Em Londres numa massiva manifestação contra a austeridade do governo "trabalhista" eram exibidos cartazes como: "Bem-estar, não guerra!" "Acabem com a guerra, não com os benefícios!" "Financie enfermeiros, não armas nucleares!" Entretanto, o governo – trabalhista!! – corta pensões e cuidados de saúde, congela salários, envia milhares de milhões para uma guerra perdida na Ucrânia, propõe-se alinhar com os EUA contra o Irão...

No mundo dos tresloucados belicistas da NATO, um ex-presidente do Comité de Defesa do RU, Tobias Ellwood, diz que é "hora de a Grã-Bretanha lutar diretamente contra a Rússia:   "Estamos em guerra na Europa. Precisamos adotar uma postura de guerra". Então e os custos das guerras, quem paga? Os mesmos de sempre. Embora protestem, a oligarquia vai dando a volta com a sua democracia liberal, ajudados pela extrema-direita que procura desviar o descontentamento através do racismo, canalizando-o contra imigrantes.

As lideranças políticas, pensam que o sistema pode manter-se indefinidamente pela propaganda. O perigo vem tanto da cegueira belicista de uns, como da cobardia intelectual e oportunismo de outros. Mas apesar da intensa propaganda, são uma camada desacreditada em que poucos atingem sequer 30% de aprovação nos seus países. Uma camada dirigente sobrevive pelas consecutivas aldrabices de "analistas" e sites programados. O que dizem sobre a guerra na Ucrânia ou no Médio Oriente, reflete não uma estratégia militar e geopolítica consistente com a realidade, mas delirantes tentativas de preservar a ordem oligárquica.

O "projeto europeu e transatlântico" caiu na militarização, erosão das normas democráticas, consolidação do poder burocrático, supressão da contestação. A guerra serve de argumento para generalizar políticas de medo mascarando a incapacidade da burocracia proporcionar condições para o desenvolvimento e a melhoria da vida dos cidadãos.

Os EUA estão submersos numa crise financeira em que os juros atingem este ano 9 milhões de milhões de dólares. Precisam de os refinanciar, precisam de se industrializar, reduzir o défice comercial, atualizar o seu poder militar, resolver terríveis problemas sociais como a saúde, criminalidade, toxicodependência, endividamento dos cidadãos e empresas, etc. Para isto, precisariam – logicamente – de acabar as guerras na Europa e no Médio Oriente. Mas é o contrário que acontece, cedendo à natureza do seu sistema.

A subida da extrema-direita não é um sinal de vitalidade da oligarquia. É pelo contrário a expressão da sua crise estrutural e do declínio do seu poder global. É, como historicamente se verifica, um recurso para tentar prolongar e consolidar o sistema, tendo ao seu serviço anos de campanhas anticomunistas, silenciando ou deturpando posições e propostas progressistas, a par da social-democratização de várias esquerdas.

Os debates centram-se no acessório, não só na ausência de desmascarar as mentiras e insultos do populismo, mas também ignorando as consequências das regras da UE nas condições económicas e sociais, o belicismo da UE e da NATO, o significado das alterações geopolíticas no futuro da Europa e do Mundo, além da necessária defesa da soberania e independência nacional como exigência básica para o progresso do país e das pessoas.

Por cá, o inconsequente líder da extrema-direita foi promovido a figura política central, com mais visibilidade televisiva que qualquer outro e incontestado nas suas diatribes. Redes organizadas multiplicam intervenções espalhando a mentira, a calúnia, o insulto. A extrema-direita recebeu ainda outro apoio não despiciendo: uma justiça parcial politizada à direita considerou legítima a mentira e calúnia contra o regime democrático: os infames cartazes dos "50 anos de corrupção" entre outros do mesmo estilo, significam o branqueamento do fascismo.

O grão-mestre da mentira e da calúnia, Goebbels, dizia que quanto maior a mentira mais gente acredita nela. De facto assim acontece, se for dita esbracejando e em esganiçadas altercações e intervenções. É assim que num país ex-colonial e de emigrantes uma parte se volta contra os imigrantes como fautores de insegurança (o que é falso) recebendo benefícios de subsídios e habitação negados aos cidadãos (o que é falso, talvez para ucranianos por razões da UE), quando os emigrantes são vítimas da intensa exploração capitalista e contribuem para o sistema social. Aquela verborreia passou incólume sendo aceite a habilidade histriónica do protagonista.

Também não se ouviu perguntar à extrema-direita como resolvia os problemas que motivavam as acusações, tanto mais que a sua propaganda vive disto. Por exemplo, a corrupção. Como vai acabar? Ou a emigração, que além dos PALOP uma minoria vem de países levados ao caos pelas guerras imperialistas. Que processos judiciais propõem ou vão prescindir deles? No entanto, as soluções da extrema direita são conhecidas: perseguir, prender, reprimir, aumentar a exploração e uma nova versão das "medidas de segurança", a prisão perpétua.

É espantoso que pessoas acreditem na extrema-direita quando todas as regalias sociais que usufruem foram obtidas por lutas sindicais e pela esquerda consequente. O oportunismo da social-democratização foi incapaz de elaborar um discurso contra a extrema-direita, ressaltando a defesa do que na Constituição – que a direita recusou que fosse apresentada no ensino secundário – se mantém progressista e contra as ideologias da direita.

Que acordos, que compromissos, são possíveis em torno de propostas realmente de esquerda em questões centrais do desenvolvimento e progresso como o planeamento económico, o controlo do sistema financeiro e de sectores estratégicos pelo Estado?

Os cidadãos revoltam-se, protestam, mas terão consciência que os seus problemas – comuns na UE – só serão resolvidos pela superação do sistema oligárquico/monopolista? Se orientações do passado têm algum valor (claro que têm!) há que esclarecer e organizar; organizar e esclarecer.

A seguir:
– A lógica ilógica da guerra
– A lógica das contradições

17/Junho/2025

Este artigo encontra-se em resistir.info

19/Jun/25

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