"Derrotar o AKP é justo e mobilizador"
"É preciso assegurar que o movimento tenha uma
sequência"
por Aydemir Güler
[*]
entrevistado por Hugo Janeiro
Os protestos que eclodiram nos últimos dias na Turquia resultam da
confluência de descontentamentos com diversas origens, mas expressam um
denominador comum: a rejeição popular do projecto
reaccionário que o governo procura impor no país, disse ao
Avante!
o membro da Associação de Paz da Turquia e do CC do Partido
Comunista da Turquia (TKP), que esteve em Portugal a propósito das
reuniões do Secretariado e da Região Europa do Conselho Mundial
da Paz.
As movimentações de massas na Turquia surgem depois da
realização de manifestações contra o envolvimento
turco no conflito sírio. É essa ingerência o seu principal
factor desencadeador?
A recusa da via intervencionista adoptada pelo governo, ao lado dos grupos
armados e contra a Síria, foi um dos detonadores, sem dúvida, mas
o alastramento da revolta surge na sequência de uma luta aparentemente
menor e mais simples. Na Praça Taksim, o coração de
Istambul, há um parque público muito apreciado que o governo do
AKP [Partido da Justiça e do Desenvolvimento] quer demolir, argumentando
que vai reconstruir uma antiga caserna militar otomana. Isso é a
fachada. Na realidade, onde hoje está o Parque Gezi, o AKP pretende
construir mais um centro comercial.
A rejeição do empreendimento foi desencadeada há muito,
mas a repressão violenta da defesa do Parque provocou a
indignação e o alastramento dos protestos.
A maioria dos turcos, e mesmo muitos dos habitantes dos subúrbios de
Istambul, nunca estiveram no Parque Gezi, mas consideram-no parte da identidade
da cidade.
Então o que move milhões de pessoas em todo o território?
A destruição do Parque Gezi foi a gota de água que fez
transbordar a paciência do povo. Foi a centelha da revolta dos
trabalhadores, dos jovens, dos estudantes, de sectores e camadas
intermédias que recusam o alinhamento do país numa guerra
imperialista na região; que estão contra a proposta de nova
constituição apresentada pelo AKP, o desemprego galopante que
atinge jovens qualificados e não-qualificados; contra as
orientações neoliberais impostas pelo primeiro-ministro Recep
Erdogan e as suas consequências sociais; contra a violência
policial cada vez mais frequente e o autoritarismo do governo que sempre se
recusa a negociar.
A Síria é uma questão central. A 11 de Maio, o governo
turco acusou a Síria de ser responsável pelas explosões em
Reyhanli. Ninguém acreditou nisso. Ninguém acredita que a Frente
al-Nusra, vinculada à al-Qaeda, produza armas em Adana, a quinta maior
cidade turca, sem o conhecimento de Ancara.
A iniciativa que a Associação de Paz da Turquia e o Conselho
Mundial da Paz promoveram em Antakya, no final de Abril, incluindo um acto
público com milhares de pessoas, esclareceu e mobilizou contra a guerra.
A esmagadora maioria dos populares da província de Hatay tiveram algum
contacto com o movimento da paz. A isto acresce o facto de observarem a
liberdade com que se movimentam os terroristas na fronteira e, sobretudo,
constatarem que dois anos de guerra na Síria provocaram o colapso da
economia na sua região.
Para mais, os atentados em Reyhyanli vitimaram cerca de uma centena de pessoas.
O primeiro-ministro acusa um Estado vizinho da sua autoria e a primeira coisa
que faz é deslocar-se aos EUA para reunir com Barack Obama e apelar a um
intervenção na Síria? Tudo isto tornou muito claras as
intenções do AKP e desacreditou o governo aos olhos do povo, que
recusa que a Turquia seja o principal centro de provocação
à Síria, que rejeita que a «oposição» se
reúna no país e tenha bases.
Há então um denominador comum?
Sim, há, a islamização da sociedade num determinado
sentido. Recentemente, o governo fez aprovar legislação que
limita a comercialização e consumo de álcool. O que os
turcos vêm nisto não é a defesa da saúde
pública, mas o aprofundamento de uma orientação por parte
do AKP. A maioria dos turcos são muçulmanos, mas convivem com a
religião de uma forma diferenciada face a outras facções
islâmicas. Defendem o Estado laico e os valores do secularismo.
O AKP não é somente um partido, mas um projecto. Podemos
até dizer que terá servido de inspiração no
desfecho das chamadas primaveras árabes para a instalação
no poder de partidos afectos à Irmandade Muçulmana. O AKP foi a
primeira experiência bem sucedida de um modelo de
consolidação de um poder islâmico promotor de
políticas neoliberais. O AKP acalenta a esperança de reconstruir
o império otomano, ser a maior potência regional. Washington apoia
um poder desse tipo. O AKP é apoiado pelo grande capital na Turquia.
Qual o rumo que os acontecimentos podem tomar?
As movimentações de massas cresceram de uma forma
espontânea. O governo mostra-se incapaz de manipular essa dinâmica.
Tem a maioria no parlamento, tem dinheiro e apoio das petro-monarquias
árabes do Golfo, mas não vai conseguir controlar um povo inteiro
que sempre se tem manifestado. A Turquia não é uma sociedade
abafada, calada, amorfa. Milhões de pessoas estão nas ruas com
reivindicações específicas. Demitir o governo é a
tarefa imediata.
O TKP está a desempenhar um papel fundamental no estímulo da
luta. No último sábado, apoiou e chamou para uma
manifestação na Praça Taksim. O Partido Popular
Republicano, maior partido da oposição parlamentar, fundador da
República Turca, social-democrata, foi obrigado a desconvocar o
protesto, agendado para uma outra praça de Istambul e a mobilizar para
Taksim.
É certo que os protestos carecem de uma direcção
política. Neste momento, nenhum partido pode reivindicar a
condução de um processo onde sobressai a grande energia e
disponibilidade das massas. É urgente garantir a unidade de
acção e propósito, assegurar que a resistência
prossegue. Se este movimento deixa as ruas para a polícia, o governo vai
entender que forçou o regresso do povo a casa e avançar com mais
limitações à liberdade, mais repressão, mais
autoritarismo.
Derrotar o AKP e exigir eleições antecipadas é um
objectivo justo e mobilizador que contribui para o recuo do seu projecto
político.
O original encontra-se em
www.avante.pt/pt/2062/internacional/125524/
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
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