A ciência ao serviço
da guerra?
A CIÊNCIA E A TÉCNICA AO SERVIÇO
DO PODER POLÍTICO?
Os impérios governam povos e territórios. Exploram os recursos
humanos e os recursos naturais, em que o conhecimento e a técnica são factores de
produção para a consolidação do poder político.
A "revolução industrial", tendo subjacentes os fundamentos
da ciência moderna, permitiu a intensificação da produção económica e a aceleração
do crescimento demográfico; uma e outra estão na base da emergência de um nova, agora
velha, forma de organização sócio-económica, uma formação social, um modo de
produção, o capitalismo.
No confronto entre impérios, o império britânico adquiriu a
hegemonia mundial no confronto com o império francês; mas a sua co-existência era
possível, na medida em que não havia escassez mundial de recursos. Na Conferência de
Berlim (1880) as potências coloniais e as industriais emergentes puderam ainda acordar
entre si a partilha de um continente inteiro a África. Essa agressão capitalista
agravou a sua dependência e inviabilizou, até hoje, o seu desenvolvimento autónomo.
Com as Primeira e Segunda Guerra Mundiais assistiu-se ao confronto pela
hegemonia mundial entre as duas principais potências industriais em ascensão os
EUA e a Alemanha. Tendo a Alemanha saído derrotada pelas forças aliadas na frente
ocidental e pela URSS na frente oriental, sobre os acordos de Yalta emergiu um mundo
bipolar, com um pólo capitalista sob a liderança dos EUA e um pólo socialista liderado
pela URSS. Uma "nova ordem mundial" foi estabelecida de acordo com essa nova
correlação de forças. A ONU foi então criada para velar pela legalidade internacional
e posteriormente, através dos seus órgãos especializados, para compatibilizar práticas
e políticas nacionais e executar programas intergovernamentais. Na esfera capitalista, a
Conferência de Brentton Woods (1944) lançou as bases para o plano de consolidação da
hegemonia norte-americana, de que o BM (BIRD) e o IMF (criados em 1948), em íntima
associação com o Departamento do Tesouro e à Reserva Federal dos EUA, vieram a ser os
pilares do domínio financeiro; enquanto o acordo GATT (General Agreement on Tariffs and
Trade, estabelecido em 1947) foi o pilar do domínio comercial, mais tarde estruturado em
OMC (1995)..
Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo bipolar permitiu o avanço dos
movimentos de libertação nacional, conducentes à descolonização e à nacionalização
de recursos em muitos dos países que acederam à independência. Insere-se aqui o
nacionalismo Árabe e a nacionalização do Canal do Suez e da indústria petrolífera em
vários desses países. Todavia, o sistema capitalista, mediante acção ideológica e
económica, exercidas através da propaganda, dos organismos internacionais e quando
"necessário" da acção diplomática e militar, manteve o essencial do sistema
colonial, isto é, a exploração de recursos humanos e naturais dos países periféricos,
o seu sub-investimento em capacidade industrial própria, por essa via assegurando a
persistência da sua dependência face ao centro do sistema. Assim, a Guerra Fria teve
duas faces: um confronto ideológico e de dissuasão militar entre os dois pólos
mundiais, por um lado, e, por outro, a descolonização, porém neutralizada por um
persistente processo de neocolonização.
A ciência e a técnica estiveram, desde sempre, subjacentes ao poder
político. Essa realidade tornou-se mais actuante com a ascensão do capitalismo, que
progressivamente as integrou na sua própria renovação e no exercício do seu poder. É
aqui exemplar o Manhattan Project que nos EUA mobilizou, entre 1941 e 1945, dezenas de
milhar de pessoas, sob a direcção de um general e uma equipa de cientistas eminentes,
com o objectivo preciso de demonstrar a viabilidade e de produzir a bomba nuclear, antes
de qualquer outra potência mundial. O lançamento das duas primeiras bombas nucleares no
Japão, em Agosto de 1945, foi um acto de agressão de violência sem precedentes, de que
ainda hoje a humanidade guarda viva memória e com a qual nunca poderá se reconciliar.
Já então era íntima a relação dos interesses económicos com o
poder político, relação que ainda mais se aprofundou nos EUA, tendendo a conduzir à
sua identificação recíproca. Identificação perigosíssima e sinistra. Já então, em
1941, eram privadas as grandes empresas a que foi consignado o desenvolvimento das novas
armas nucleares, com financiamento público e realizado em laboratórios governamentais.
Desde então assim é nos EUA, bem como, em maior ou menor extensão, nas demais
potências capitalistas. Temos, pois, o financiamento público da I&D militares,
realizadas por grandes corporações que depois vendem ao estado os seus produtos
militares, bem como comercializam, no "mercado livre", os frutos civis dessa
mesma I&D. É um negócio 100% seguro que realiza lucros fabulosos. É o complexo
militar-industrial, o qual acumula capital industrial e gera fabulosos capitais
financeiros. Para ser mais preciso, este é o complexo militar-industrial-governamental do
capitalismo adulto e senil, nos países ditos democracias ocidentais, governados de facto
por oligarquias cujo discurso neo-liberal nada tem a ver com os conceitos idealistas de
igualdade e de liberdade, das versões clássicas do liberalismo e da economia, do tempo
em que o capitalismo se afirmava ainda em ascensão.
O conhecimento científico é um produto da mente humana e
indissociável da realidade social em que é gerado. O papel da ciência como instrumento
da acção política no seio social está bem ilustrado pela sua apropriação pelo poder
político para fins militares durante e após a Segunda Guerra Mundial. O radar, a energia
nuclear (reactores e bombas), o computador e os antibióticos, são algumas das
revolucionárias descobertas científicas e invenções técnicas iniciadas por esse
tempo. Ainda em 1945, foi finalizado o projecto do primeiro computador electrónico
ENIAC com os objectivos de quebrar códigos secretos em telecomunicações e de
calcular trajectórias balísticas.. A possibilidade (concebida por John von Neumann) de
armazenar no computador o próprio programa de cálculo, abriu caminho à sua aplicação
a uma infinidade de simulações numéricas de fenómenos e de modelos. Sintomaticamente,
os primeiros problemas que foram objecto de simulação foram problemas de dinâmica de
fluidos, designadamente a simulação da fusão termonuclear, em que se basearia depois a
"bomba de hidrogénio", e a previsão numérica do tempo, tendo em vista a
operação da aviação em teatro de guerra: ambas questões com expressos objectivos
militares. Posteriormente foram abordados os problemas da modelação da circulação
atmosférica e do próprio sistema climático, também com objectivos estritamente
militares; porém, estes progressivamente passaram também para o âmbito civil; mas sem
que o objectivo inicial de controlar o tempo com fins militares fosse abandonado;
lamentavelmente, esse objectivo sinistro continuaria a ser prosseguido até hoje..
OS CIENTÍSTAS E AS ARMAS DE GUERRA
As relações da Ciência e da Técnica com o poder político existiram
desde sempre, e na esfera militar em particular. Neste passado século de ascensão do
imperialismo, repetidamente a descoberta científica e a invenção técnica foram postas
ao serviço da indústria de guerra. Mas não só por iniciativa dos estrategas militares,
pois que em várias ocasiões foi a criatividade dos investigadores que imaginou novas
armas e foram alguns destes que convenceram os políticos a desenvolvê-las, a testá-las
e até mesmo a utilizá-las.
A história da indústria armamentista no século XX é indissociável
do protagonismo de alguns cientistas que teriam sido simplesmente notáveis se não fossem
também recordados pela sua perversa obsessão bélica. Em 1914-1915, Fritz Haber,
químico alemão de nomeada, inventou os "gases de combate", precursores das
armas químicas que assinalaram tragicamente a Primeira Guerra Mundial e diversos outros
conflitos posteriores. Só em 1997 viria a ser assinada uma convenção internacional para
o seu banimento (Chemical Weapons Convention) e constituída a estrutura que deveria
assegurar a sua aplicação universal (Organisation for the Prohibition of Chemical
Weapons); porém o cumprimento da convenção e a autoridade da organização estão longe
de ser respeitados; pelo contrário, assiste-se actualmente ao desenvolvimento de novos
conceitos de armas químicas. Em 1944, Wernher von Braun, então um jovem especialista
alemão de foguetões, inventou as «bombas voadoras» V-2, responsáveis por milhares de
vítimas em Londres e em Antuérpia, durante a Segunda Guerra Mundial. Prosseguiu depois o
seu percurso nos Estados Unidos da América como um dos mais entusiastas fundadores da
indústria balística, que tem produzido sucessivas gerações de mísseis mortíferos
utilizados nas Guerras do Golfo e dos Balcãs, no Afeganistão e mesmo na Palestina. Em
1952, Edward Teller, brilhante físico húngaro que integrara a equipa do Manhattan
Project para a produção da bomba de fissão nuclear, após obstinados esforços contra a
opinião de muitos dos seus colegas, prosseguiu e demonstrou o enorme potencial destruidor
da fusão termonuclear; foi assim o mais responsável inventor da "bomba de
hidrogénio" (nos EUA), após o que promoveu a constituição de um arsenal de tais
armas e defendeu a ideia do seu uso, contribuindo activamente para a corrida aos
armamentos que caracterizou o período da "guerra-fria".
Estas personagens não actuaram isolados, antes em grandes equipas,
portanto tiveram muitos cúmplices, como também tiveram muitos adversários, nos planos
técnico e moral. È pois fundamental registar também que a consciência social e o
pacifismo foi então, como têm sido sempre, uma outra face da acção de muitos outros
cientistas, a título individual ou de forma organizada, e em consequência do que muitos
deles foram mesmo pessoalmente vitimizados.
OS CIENTISTAS E A LUTA PELA PAZ
Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando as explosões
nucleares de Hiroshima e Nagazaky abalavam ainda as consciências por todo o mundo, na
sequência dos contactos internacionais promovidos por Federic Joliot-Curie e Paul
Langevin (em França), Patrick Blackett e John Bernal (no Reino Unido) e Linus Pauling
(nos Estados Unidos da América), entre outros, foi constituída, em Julho de 1946, a
Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos com o propósito de estabelecer o
diálogo internacional pela prevalência da Paz; essa federação, que foi um importante
"corredor" para o difícil diálogo leste-oeste durante a
"guerra-fria", continua hoje activa à escala mundial. Mas com a
"guerra-fria" e a corrida aos armamentos nucleares em marcha, Albert Einstein e
Bertrand Russell sentiram-se no dever moral de subscrevem um manifesto contra as armas
nucleares (Julho de 1955), secundados por vários outros cientistas iminentes. Bertrand
Russell, Joseph Rotblat, Eric Burhop e Cecil Powell procuram dar sequência a esse
manifesto promovendo uma Conferência (Pugwash, Canadá, 1957), a partir da qual ficou
constituído o movimento Pugwash, que desde então tem realizado anualmente conferências
internacionais sobre as problemáticas dos armamentos e da Paz. Joseph Rotblat, um dos
seus fundadores e activista de sempre, veio a ser reconhecido com o prémio Nobel da Paz
em 1995.
Por força da sua formação e ocupação profissional, os médicos
têm estado activamente presentes entre os que se têm batido nos movimentos pacifistas,
contra novos armamentos e no apoio às vítimas dos conflitos militares. O movimento
Internacional de Médicos pela Prevenção da Guerra Nuclear (IPPNW) tem-se batido
persistentemente pela abolição não só das armas nucleares como também de outras armas
particularmente inumanas, designadamente as minas terrestre;
em 1985 este movimento foi recipiente do
prémio Nobel da Paz.. Mas devemos ter presentes e louvar muitos outros movimentos, de
médicos e de outros profissionais da Saúde, que se entregam, no próprio campo de
batalha, ao alívio do sofrimento das vítimas da guerra.
O COMPLEXO INDUSTRIAL E MILITAR
Estamos presentemente perante uma renovada corrida aos armamentos. Não
temos hoje um mundo bipolar nem é óbvia a ameaça ao centro capitalista hegemónico; o
que se passa agora terá mais a ver com as necessidades intrínsecas do sistema, em luta
pela sua própria sobrevivência, em guerra contra o mundo.
Segundo o SIPRI Yearbook 2002 (SIPRI - Stockholm International
Peace Research Institute, http://projects.sipri.se/milex.html
), os gastos mundiais em defesa subiram 2% em 2001, chegando ao total de US$ 839 mil
milhões, o que corresponde a 2,6% do PIB mundial, ou seja, um gasto de US$ 136 por
habitante e ano. O crescimento de gastos registado desde 1998 contrasta com a contínua
redução ocorrida de 1987 a 1998, período em que os gastos da NATO desceram 40%. Uma
nova guerra dir-se-ia anunciada. O orçamento militar dos EUA para 2003 foi incrementado
em cerca de US$ 45 mil milhões, um crescimento anual superior a 10%, o maior verificado
desde 1966 (no auge da Guerra no Vietname). No ano fiscal de 2004, que começará em
Outubro próximo, Washington pretende dar ao Pentágono US$ 380 mil milhões num
orçamento federal total de US$ 2,2 milhões de milhões; somando todas as despesas
conexas de outros ministérios, os EUA gastarão US$ 399 mil milhões em 2004, sem contar
com o custo adicional das operações com a segunda Guerra do Golfo. Segundo a
programação anunciada, o orçamento militar norte-americano deverá atingir US$ 483 mil
milhões no fim da presente década. A guerra anunciada anuncia-se prolongada.
Entretanto, os maiores fabricantes de armamentos anunciam ganhos
resultantes do incremento das encomendas. A Lockheed Martin, o maior fabricante
norte-americano de equipamentos militares, anunciou um aumento de 11% nas vendas em 2002,
atingindo US$ 26,6 mil miliões. O desempenho também favorável da Raytheon, cujos lucros
duplicaram no quarto trimestre de 2002, é também devido ao aumento das encomendas que
incluem mísseis Stinger e Tomahawk, o novo avião de reconhecimento Global Hawk já usado
no Afeganistão, aviões e helicópteros de combate e satélites.
As maiores corporações produtoras de armamento são norte-americanas
também. A Lockhedd Martin e a McDonnel Douglas são as duas primeiras; Northrop Grumman,
General Motors e Hughes Electronics ocupam do quarto ao sexto lugares; em terceiro lugar
está a britânica British Aerospace e em sétimo a francesa Thomson; e assim por diante.
Destas corporações, a General Motors é a terceira maior transnacional, na totalidade
das suas actividades, e ocupa o quinto lugar no sector de armamentos; a General Electric,
sendo a nona na totalidade das suas actividades, é a 22.ª no ramo de armamentos. Etc.
O complexo militar-industrial está no coração do sistema capitalista
mundial. A indústria armamentista é também uma importante fonte do fluxo comercial
internacional; por essa via drena dos países periféricos (importadores de armamentos)
importantes recursos financeiros que são subtraídos ao investimento produtivo
(necessário ao respectivo desenvolvimento autónomo). A corrida às armas (estimulada à
escala planetária) é pois um instrumento de exploração dos povos.
BOMBAS CONVENCIONAIS E OUTRAS NÃO
A intensificação da inovação e da renovação dos arsenais
militares, verificada nos últimos cinco anos, conduziu à recuperação de conceitos
antigos, antes descartados por escrúpulo moral e pressão da opinião pública, e à
invenção de novas armas, ainda mais terríveis do que as já conhecidas. A distinção
entre armas convencionais e não convencionais esbate-se nesta corrida. A legislação
internacional nesta matéria tem dificuldade em se ajustar à inovação técnica e não
é respeitada ou é manipulada pelas potências militares responsáveis por essas
inovações.
A história dos tratados internacionais que condicionam ou proíbem a
utilização de armas químicas e biológicas - Convenções de Haia (1899/1907), Protocolo de Genebra
(1925), Convenção sobre Armas Biológicas (BWC, 1972), Convenção sobre Armas Químicas
(CWC, 1993-1997) - tem sido uma história atribulada, reflectindo a evolução da
correlação de forças no plano internacional, o exercício do poder pelas potências
militares nos diferentes palcos estratégicos, e o facto de essas potências serem elas
próprias os principais agentes de inovação destas categorias de armas. A história dos
tratados relativos a armas nucleares - o Tratado de Não Proliferação Nuclear (NPT,
1970) teve sucesso relativo na contenção da multiplicação de potências nucleares e o
Tratado de Proibição Integral de Testes Nucleares (CTBT, 1996) está em risco de não
ser ratificado - demonstra também o seu modesto alcance, tanto mais que os EUA anunciaram
(2002) renunciar ao princípio da não utilização de armas nucleares contra países não
possuidores de tais armas e retomaram o desenvolvimento de novas armas nucleares com fins
"tácticos", isto é, a serem utilizadas no campo de batalha para fins
específicos (US Nuclear Posture Review, 2001).
[http://www.fas.org/spp/starwars/crs/#ac
http://www.fas.harvard.edu/~hsp/
http://www.pugwash.org/reports/cbw/cbwlist.htm]
As bombas convencionais ou de "utilização geral"
comportam cerca de metade da sua massa de explosivo e os seus efeitos combinam a onda de
choque com a projecção de fragmentos. A MOAB (Massive Ordnance Air Blast) são a maior
bomba convencional no arsenal norte-americano, com 10 toneladas, cuja detonação é tão
potente que origina a ascensão de uma coluna de gás e poeira com semelhança à de uma
explosão nuclear. Recentíssima, foi testada no início deste mês de Março de 2003 e
terá já sido utilizada no ataque ao Iraque.
As "bombas de fragmentação" contêm até 20% da sua
massa de explosivo; os danos são produzidos sobretudo pelos fragmentos projectados. Estas
bombas são evidentemente destinada a matar e não a destruir. As "cluster bombs"
são bombas de fragmentação especializadas, pois projectam não fragmentos mas sim
sub-munições, tais como granadas, minas, etc. de modo a atingir finalidades específicas
mais letais ou retardadas. A versão JSOW tem 500 kg e transporta 145 pequenas bombas
incendiárias que são ejectadas a 100 metros de altitude para se dispersarem sobre uma
superfície com um hectare de área; foi testada "ao vivo" no Iraque em 25 de
Janeiro de 1999 e em 16 Fevereiro de 2003 foram lançadas várias dezenas sobre a
"zona de exclusão aérea". Crê-se terem sido utilizadas de novo na recente
invasão do Iraque. Quer as bombas de fragmentação quer as "cluster bombs"
são consideradas armas inumanas.
As "Bombas explosivas de ar-fuel" (FAE) ou bombas
termobáricas foram desenvolvidas na década de 1960 pelos EUA e utilizadas no Vietname
tendo em vista a destruição de abrigos subterrâneos e a desflorestação de terreno.
Foram depois "aperfeiçoadas" e utilizadas sobre tropas entrincheiradas e sobre
campos de minas na primeira Guerra do Golfo. Esta bomba consiste num contentor com uma
substância volátil e duas cargas explosivas; a primeira carga explosiva produz a
dispersão da substância volátil, gerando uma ampla nuvem de aerossol, e a segunda carga
produz a detonação da mistura ar - aerossol. Forma uma enorme e fulgurante bola de fogo
e uma intensíssima onda de choque. Pelo seu poder destrutivo, é comparável a uma
munição nuclear de baixa potência. Quando a segunda carga não detonar ou não for
accionada, a nuvem de aerossol, altamente tóxica, funcionará como uma arma química.
Estas bombas sobrepõem-se em alguns aspectos às armas nucleares tácticas e às armas
químicas, pelo que a sua utilização deveria ser renunciada.
Os "projécteis perfurantes ou de profundidade" EPW
(Earth Penetrating Warheads) são granadas, bombas ou mísseis com configuração alongada
para maximização da capacidade de penetração no alvo e que só depois são feitas
explodir; a energia necessária para o efeito é a energia cinética adquirida em voo por
acção de um propulsor ou por acção da gravidade. Actualmente, os EUA têm operacionais
bombas EPW com 2 toneladas de massa e 300kg de explosivo convencional; lançadas de
avião, por gravidade adquirem energia cinética suficiente para atravessarem 30 metros de
solo. O seu desenvolvimento tem sido "justificado" pelo objectivo de atingir
tenebrosas instalações subterrâneas onde estariam alojadas fábricas ou armazenadas
armas químicas e biológicas.
Entretanto, os EUA dispõem já de bombas EPW com cargas nucleares, as
B61-11, desenvolvidas por reconversão de bombas pré-existentes, tornadas operacionais em
1997, embora nunca testadas. A RNEP (Robust Nuclear Earth Penetrator) será uma nova EPW
portadora de carga nuclear, cujo desenvolvimento se encontra proposto no relatório US
Nuclear Posture Review, submetido pelo Pentágono ao Congresso dos EUA em Dezembro de
2001, e que foi orçamentado. Estas bombas são e serão extremamente perigosas pois que a
profundidade a que a explosão deveria dar-se para prevenir a libertação para a
atmosfera dos produtos radioactivos é muito superior à profundidade que qualquer
projéctil possa atingir. A existência e o desenvolvimento destas bombas nucleares
tácticas é muito grave, quer pelo perigo iminente de poderem ser utilizadas, quer por
porem em causa a presente moratória aos testes nucleares, quer ainda por incentivarem a
corrida a armas nucleares, contrariando o Tratado de Não Proliferação Nuclear e
retrocedendo sobre o caminho para a adesão universal ao Tratado de Proibição Integral
de Ensaios Nucleares.
As "bombas sujas" serão bombas com carga explosiva
convencional cujo propósito será a dispersão de substâncias radioactivas. O conceito
foi introduzido em cenários de ataques terroristas e a sua exploração mediática tem
servido o propósito de aterrorizar psicologicamente o povo norte-americano, tendo em
vista alimentar uma opinião pública favorável ao conceito de "guerra preventiva".
Todavia, as munições de "urânio empobrecido", desenvolvidas na década
de 1970 e que entraram no campo de batalha na primeira Guerra do Golfo em 1991, são de
facto "bombas sujas", enquanto armas químicas e radiológicas, e armas
ambientais também, por terem a prazo incidência sobre as populações residentes nos
territórios contaminados. As munições de urânio penetram mais de um metro no solo e
aí ficam não detectáveis no imediato até que a sua oxidação e dissolução
contaminará o solo e a água. Sobre um alvo duro o impacto dá origem a uma explosão
pirofórica que gera uma nuvem de aerossol radioactivo que funciona como arma química e
radiológica. O urânio empobrecido é também utilizado nos mísseis Tomahawk e de
Cruzeiro, quer como massas de estabilização do voo quer como ogivas perfurantes.
Não obstante a forte contra-informação da NATO, das autoridades dos
EUA e dos seus aliados, e mesmo da EURATOM (órgão da União Europeia), os estudos feitos
pela Organização Mundial de Saúde e pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente,
bem como estudos de instituições independentes e declarações de sociedades
científicas, aberta ou "diplomaticamente" confirmaram os efeitos nefastos já
produzidos e os riscos pendentes sobre as populações nas áreas afectadas no Iraque e na
ex-Jugoslávia. Os seus efeitos são conhecidos pelos ex-combatentes das tropas agressoras
como "síndroma do Golfo" e "síndroma dos Balcãs" cuja
origem é porém oficialmente "desconhecida".
A SEGUNDA GUERRA DO GOLFO
Doze anos após a primeira Guerra do Golfo, período durante o qual
duplicou o número de bases militares norte-americanas na área envolvente do Golfo
Arábico-Pérsico, foi desencadeada a segunda Guerra do Golfo, com grande soma e variedade
de armas sinistramente espectaculares.
Os EUA utilizam o urânio em diversas das armas que fabricam. Esse
facto está documentado em manuais relativos a esses armamentos bem como em numerosas
patentes registadas. Assim, estima-se que haverá cerca de 23 sistemas de armamentos no
mínimo suspeitos de conterem urânio (empobrecido ou natural) na sua estrutura ou em
ogivas - entre eles se incluindo munições, tanques de guerra e outras viaturas
blindadas, mísseis Tomahawk e de Cruzeiro, Bunker Busting Bombs (EPW), Small
Smart Bombs, e Cluster Bombs.
Durante a Primeira Guerra do Golfo terão sido "consumidas"
300 a 800 toneladas de urânio em munições. Na Guerra dos Balcãs terão sido
"consumidas" 300 toneladas. Na recente Guerra no Afeganistão terão sido
"consumidas" cerca de 1000 toneladas, em resultado do lançamento de cerca de
2000 mísseis e bombas perfurantes com ogivas de urânio sobre alvos duros, para além de
outras munições com DU (depleted uranium urânio empobrecido). Agora na
segunda Guerra do Golfo o montante poderá ter atingido 2000 toneladas e a população
atingida e em risco é mais numerosa.
A experiência de conflitos anteriores, mormente a primeira Guerra do
Golfo, revelou consequências de saúde graves atribuíveis ou mesmo atribuídas à
inalação, ingestão, ou exposição externa ao urânio utilizado em armas. Tanto civis
como militares foram atingidos por sintomas e doenças semelhantes: problemas
respiratórios, doenças raras do aparelho digestivo ou renal, síndromas de deficiência
imunológica, desordens neurológicas, cancros e leucemias; as crianças são
particularmente afectadas, nascidas com defeitos genéticos traduzidos em deformidades,
cancro precoce, doenças raras. Um terço dos soldados estrangeiros que actuaram na
primeira Guerra do Golfo desenvolveu, mais cedo ou mais tarde, um conjunto de disfunções
e doenças designado por "síndroma do Golfo", em resultado do qual
vários milhares faleceram. Mas nunca as Forças Armadas dos EUA reconheceram formalmente
a origem dessa afecção. Os estudos mais tarde efectuados nos Balcãs pelo Programa das
Nações Unidas para o Ambiente - UNEP e pela Organização Mundial de Saúde - WHO, no
fim da década de 1990, foram fortemente contrariados, iniciados tardiamente,
condicionados quanto a informação militar disponibilizada, liberdade de acesso a locais
e a extensão da sua cobertura. Não obstante, os seus resultados oficiais, embora
forçados a enfantizar o princípio da precaução, identificaram também diversos riscos
e consequências graves concretas.
Recentemente (Janeiro 2003) , a Comissão Europeia sobre o Risco
Radiológico do Parlamento Europeu [http://www.euradcom.org/index.html]
publicou um relatório em que afirma que os anteriores modelos sobre o risco de
exposição a radiações ionizantes e em particular ao DU são incorrectos e que, em
particular, o risco carcinogénico será centenas de vezes superior ao previamente
admitido. E o Parlamento Europeu, que já em 2000, no final da Guerra nos Balcãs, votara
uma resolução pela moratória sobre a utilização de DU em armamentos, votou uma nova
resolução (12 de Fevereiro de 2003) em que apela à abolição efectiva de armas como
"minas terrestres" e "cluster bombs" e, de novo, a uma
moratória quanto à utilização de munições e ogivas com urânio.
Na realidade, o DU confere às armas em que é utilizado as
características de armas de destruição maciça (WMD) e de efeitos indiscriminados
(WIE). As WMD produzem morte ou destruição súbita nos seus alvos, com efeitos de grande
alcance no espaço ou no tempo. As WIE produzem contaminação ou outros riscos, sobre uma
vasta área ou por um longo período, com consequências graves conducentes a ferimento,
doença crónica ou doença mortal ou efeitos severos nos nascituros. Ambas as categorias
são ilegais face ao Primeiro Protocolo das Convenções de Genebra. O movimento IPPNW
considera as armas com DU armas radiológicas e tóxicas que violam a Carta da ONU, as
Convenções de Genebra, a Convenção das Armas Convencionais e as Convenções de Haia.
Em 6 de Abril de 2003 o Programa das Nações Unidas para o Ambiente
(UNEP) emitiu a recomendação para a realização de estudos sobre a utilização de
urânio empobrecido (DU) no Iraque. Embora a respectiva Unidade de avaliação operacional
pós-conflito (PCAU) tenha iniciado a planificação da sua intervenção logo no dia 21
de Março, a UNEP não se encontra ainda autorizada e não disporá mesmo dos meios para
avançar para o terreno. Também a Organização Mundial de Saúde (WHO) deveria já ter
iniciado investigação urgente sobre os níveis de contaminação com urânio em
populações doentes ou não, incluindo feridos civis e militares e vítimas de
situações epidémicas que se venham a manifestar durante os próximos anos.
É provável o cenário de as forças da coligação agressora terem
utilizado até 2000 toneladas, ou seja, várias vezes mais urânio empobrecido do que na
primeira Guerra do Golfo, e muito mais do que na Guerra dos Balcãs, o que torna mais
premente a necessidade de avaliar a contaminação ambiental, identificar casos de
exposição entre vítimas, populações civis e militares, e monitorizar a situação
actual e a evolução do estado de saúde pública.
A gravidade da situação e a urgência de a avaliar e de mitigar as
suas consequências é agora ainda maior do que foi nas referidas situações anteriores.
Estudos comparáveis são aliás também urgentemente necessários no Afeganistão, em
consequência da utilização que aí foi feita de armas semelhantes, algumas aí
"ensaiadas" pela primeira vez. Mas todos estes estudos estão constrangidos pela
ocupação e pela situação militar, e pelos poderosos interesses militares, comerciais e
políticos, apostados em esconder as graves consequências imediatas, e sobretudo a prazo,
do urânio utilizados em armamentos diversos. Os EUA afirmaram não considerarem ter
responsabilidade na descontaminação dos territórios objecto de operações militares; o
Reino Unido assumiu uma posição de princípio de alguma disponibilidade para partilhar
essa responsabilidade. Entretanto, tropas de países terceiros (incluindo previsivelmente
Portugal), serão chamadas para o terreno para aí manterem a "segurança e a ordem
pública" e partilharem com as populações locais os riscos de exposição a solos e
a águas contaminados.
As semanas, daqui a pouco os meses, vão passando sem que os organismos
da ONU tenham claro mandato nem os requeridos meios para lançarem programas sobre um
vasto território e uma numerosa população, sobretudo em Bagdad. Neste contexto, a
destruição sistemática das já precárias infra-estruturas hospitalares e dos registos
de saúde pública são um pesadíssimo obstáculo para a realização do trabalho que
deve ser feito. E é sinistro, mas claramente plausível, no quadro de mentiras subjacente
à suposta "justificação" para a acção militar desencadeada contra o Iraque,
que a destruição dos sistemas de serviços médico e de saúde pública tenha sido mais
uma frente da mesma guerra, esta com o objectivo de esconder do povo Iraquiano e da
opinião pública mundial a natureza e a real dimensão das gravíssimas repercussões a
prazo da utilização maciça de armas ilegais, designadamente as que utilizam o urânio
empobrecido.
UMA CATÁSTROFE ESCONDIDA
Perante a dimensão da catástrofe escamoteada, a organização médica
belga "Ajuda Médica para o Terceiro Mundo" emitiu de Bagdade, em 16 de
Abril de 2003, uma declaração e um apelo urgentes, verdadeiro grito de revolta e de
denúncia que não devemos deixar cair no silêncio do esquecimento.
«A presente catástrofe humanitária é da exclusiva e inteira
responsabilidade das autoridades dos EUA e do RU, que lançaram uma guerra de agressão
contra o Iraque em completa violação da lei internacional. No curso das suas guerras, as
tropas dos EUA e do RU violaram grosseira e repetidamente a lei humanitária internacional
(artigos 10, 12, 15, 21, 35, 36, 45, 47, 48, e 51 do Protocolo I adicional às
Convenções de Genebra). Uma solução genuína e duradoura para a catástrofe
humanitária no Iraque só pode ser alcançada após a saída imediata e incondicional das
forças de ocupação e da restauração plena da soberania Iraquiana em todo o seu
território e na base da livre vontade do seu povo. Os EUA e o RU devem ser obrigados a
pagarem os estragos e o sofrimento que directa e indirectamente infligiram ao povo, ao
país à sociedade Iraquianos. Entretanto, as potências ocupantes têm o dever de
garantir alimentação e assistência médica à população (artigo 55 da IV Convenção
de Genebra). Devem igualmente garantir, em cooperação com as autoridades nacionais e
locais, os estabelecimentos e serviços médicos e hospitalares, saúde pública e higiene
no território ocupado. Devem permitir que o pessoal médico exerça os seus deveres
(artigo 56). Apelamos às agências competentes da ONU, designadamente UNFP, UNICEF e WHO
para imediatamente retomarem as respectivas operações humanitárias no Iraque; um
bombeiro não aguarda até que a casa acabe de arder por completo, mas toma riscos para
combater o fogo e evitar o colapso completo do edifício. Apoiamos todas as iniciativas
espontâneas e organizadas da população Iraquiana de denúncia da ocupação pelos EUA e
o RU e de exigência para que as respectivas autoridades cumpram os seus deveres à luz da
lei humanitária internacional. Apoiamos toda a iniciativa que tenha como objectivo levar
o General Tommy Franks e outros responsáveis norte-americanos e britânicos perante um
tribunal para que respondam pela sua violação da lei humanitária internacional. Em
resposta ao pedido de vítimas directas da violação das leis humanitárias
internacionais, como sejam doentes e pessoal médico, solicitámos ao Senhor Jan Fermon,
reconhecido jurista belga de direitos humanos, que estudasse as possibilidades concretas
de incriminar por crimes de guerra o General dos EUA Tommy Franks perante um tribunal
Belga, na base da lei belga de competência universal.»
É esta a denuncia que partilhamos contra a agressão iníqua que se
repete cada dia. A guerra não acabou para quem ficou ainda vivo no campo de batalha, num
país destroçado, um povo ameaçado por uma catástrofe escamoteada, que se finge
escondida.
Lisboa, 7 de Junho de 2003.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/
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