Intervenção de Rui Namorado Rosa
no I Fórum Social Português


fsp.gif (1967 bytes) A ciência ao serviço da guerra?

A CIÊNCIA E A TÉCNICA AO SERVIÇO DO PODER POLÍTICO?

Os impérios governam povos e territórios. Exploram os recursos humanos e os recursos naturais, em que o conhecimento e a técnica são factores de produção para a consolidação do poder político.

A "revolução industrial", tendo subjacentes os fundamentos da ciência moderna, permitiu a intensificação da produção económica e a aceleração do crescimento demográfico; uma e outra estão na base da emergência de um nova, agora velha, forma de organização sócio-económica, uma formação social, um modo de produção, o capitalismo.

No confronto entre impérios, o império britânico adquiriu a hegemonia mundial no confronto com o império francês; mas a sua co-existência era possível, na medida em que não havia escassez mundial de recursos. Na Conferência de Berlim (1880) as potências coloniais e as industriais emergentes puderam ainda acordar entre si a partilha de um continente inteiro – a África. Essa agressão capitalista agravou a sua dependência e inviabilizou, até hoje, o seu desenvolvimento autónomo.

Com as Primeira e Segunda Guerra Mundiais assistiu-se ao confronto pela hegemonia mundial entre as duas principais potências industriais em ascensão – os EUA e a Alemanha. Tendo a Alemanha saído derrotada pelas forças aliadas na frente ocidental e pela URSS na frente oriental, sobre os acordos de Yalta emergiu um mundo bipolar, com um pólo capitalista sob a liderança dos EUA e um pólo socialista liderado pela URSS. Uma "nova ordem mundial" foi estabelecida de acordo com essa nova correlação de forças. A ONU foi então criada para velar pela legalidade internacional e posteriormente, através dos seus órgãos especializados, para compatibilizar práticas e políticas nacionais e executar programas intergovernamentais. Na esfera capitalista, a Conferência de Brentton Woods (1944) lançou as bases para o plano de consolidação da hegemonia norte-americana, de que o BM (BIRD) e o IMF (criados em 1948), em íntima associação com o Departamento do Tesouro e à Reserva Federal dos EUA, vieram a ser os pilares do domínio financeiro; enquanto o acordo GATT (General Agreement on Tariffs and Trade, estabelecido em 1947) foi o pilar do domínio comercial, mais tarde estruturado em OMC (1995)..

Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo bipolar permitiu o avanço dos movimentos de libertação nacional, conducentes à descolonização e à nacionalização de recursos em muitos dos países que acederam à independência. Insere-se aqui o nacionalismo Árabe e a nacionalização do Canal do Suez e da indústria petrolífera em vários desses países. Todavia, o sistema capitalista, mediante acção ideológica e económica, exercidas através da propaganda, dos organismos internacionais e quando "necessário" da acção diplomática e militar, manteve o essencial do sistema colonial, isto é, a exploração de recursos humanos e naturais dos países periféricos, o seu sub-investimento em capacidade industrial própria, por essa via assegurando a persistência da sua dependência face ao centro do sistema. Assim, a Guerra Fria teve duas faces: um confronto ideológico e de dissuasão militar entre os dois pólos mundiais, por um lado, e, por outro, a descolonização, porém neutralizada por um persistente processo de neocolonização.

A ciência e a técnica estiveram, desde sempre, subjacentes ao poder político. Essa realidade tornou-se mais actuante com a ascensão do capitalismo, que progressivamente as integrou na sua própria renovação e no exercício do seu poder. É aqui exemplar o Manhattan Project que nos EUA mobilizou, entre 1941 e 1945, dezenas de milhar de pessoas, sob a direcção de um general e uma equipa de cientistas eminentes, com o objectivo preciso de demonstrar a viabilidade e de produzir a bomba nuclear, antes de qualquer outra potência mundial. O lançamento das duas primeiras bombas nucleares no Japão, em Agosto de 1945, foi um acto de agressão de violência sem precedentes, de que ainda hoje a humanidade guarda viva memória e com a qual nunca poderá se reconciliar.

Já então era íntima a relação dos interesses económicos com o poder político, relação que ainda mais se aprofundou nos EUA, tendendo a conduzir à sua identificação recíproca. Identificação perigosíssima e sinistra. Já então, em 1941, eram privadas as grandes empresas a que foi consignado o desenvolvimento das novas armas nucleares, com financiamento público e realizado em laboratórios governamentais. Desde então assim é nos EUA, bem como, em maior ou menor extensão, nas demais potências capitalistas. Temos, pois, o financiamento público da I&D militares, realizadas por grandes corporações que depois vendem ao estado os seus produtos militares, bem como comercializam, no "mercado livre", os frutos civis dessa mesma I&D. É um negócio 100% seguro que realiza lucros fabulosos. É o complexo militar-industrial, o qual acumula capital industrial e gera fabulosos capitais financeiros. Para ser mais preciso, este é o complexo militar-industrial-governamental do capitalismo adulto e senil, nos países ditos democracias ocidentais, governados de facto por oligarquias cujo discurso neo-liberal nada tem a ver com os conceitos idealistas de igualdade e de liberdade, das versões clássicas do liberalismo e da economia, do tempo em que o capitalismo se afirmava ainda em ascensão.

O conhecimento científico é um produto da mente humana e indissociável da realidade social em que é gerado. O papel da ciência como instrumento da acção política no seio social está bem ilustrado pela sua apropriação pelo poder político para fins militares durante e após a Segunda Guerra Mundial. O radar, a energia nuclear (reactores e bombas), o computador e os antibióticos, são algumas das revolucionárias descobertas científicas e invenções técnicas iniciadas por esse tempo. Ainda em 1945, foi finalizado o projecto do primeiro computador electrónico – ENIAC – com os objectivos de quebrar códigos secretos em telecomunicações e de calcular trajectórias balísticas.. A possibilidade (concebida por John von Neumann) de armazenar no computador o próprio programa de cálculo, abriu caminho à sua aplicação a uma infinidade de simulações numéricas de fenómenos e de modelos. Sintomaticamente, os primeiros problemas que foram objecto de simulação foram problemas de dinâmica de fluidos, designadamente a simulação da fusão termonuclear, em que se basearia depois a "bomba de hidrogénio", e a previsão numérica do tempo, tendo em vista a operação da aviação em teatro de guerra: ambas questões com expressos objectivos militares. Posteriormente foram abordados os problemas da modelação da circulação atmosférica e do próprio sistema climático, também com objectivos estritamente militares; porém, estes progressivamente passaram também para o âmbito civil; mas sem que o objectivo inicial de controlar o tempo com fins militares fosse abandonado; lamentavelmente, esse objectivo sinistro continuaria a ser prosseguido até hoje..


OS CIENTÍSTAS E AS ARMAS DE GUERRA

As relações da Ciência e da Técnica com o poder político existiram desde sempre, e na esfera militar em particular. Neste passado século de ascensão do imperialismo, repetidamente a descoberta científica e a invenção técnica foram postas ao serviço da indústria de guerra. Mas não só por iniciativa dos estrategas militares, pois que em várias ocasiões foi a criatividade dos investigadores que imaginou novas armas e foram alguns destes que convenceram os políticos a desenvolvê-las, a testá-las e até mesmo a utilizá-las.

A história da indústria armamentista no século XX é indissociável do protagonismo de alguns cientistas que teriam sido simplesmente notáveis se não fossem também recordados pela sua perversa obsessão bélica. Em 1914-1915, Fritz Haber, químico alemão de nomeada, inventou os "gases de combate", precursores das armas químicas que assinalaram tragicamente a Primeira Guerra Mundial e diversos outros conflitos posteriores. Só em 1997 viria a ser assinada uma convenção internacional para o seu banimento (Chemical Weapons Convention) e constituída a estrutura que deveria assegurar a sua aplicação universal (Organisation for the Prohibition of Chemical Weapons); porém o cumprimento da convenção e a autoridade da organização estão longe de ser respeitados; pelo contrário, assiste-se actualmente ao desenvolvimento de novos conceitos de armas químicas. Em 1944, Wernher von Braun, então um jovem especialista alemão de foguetões, inventou as «bombas voadoras» V-2, responsáveis por milhares de vítimas em Londres e em Antuérpia, durante a Segunda Guerra Mundial. Prosseguiu depois o seu percurso nos Estados Unidos da América como um dos mais entusiastas fundadores da indústria balística, que tem produzido sucessivas gerações de mísseis mortíferos utilizados nas Guerras do Golfo e dos Balcãs, no Afeganistão e mesmo na Palestina. Em 1952, Edward Teller, brilhante físico húngaro que integrara a equipa do Manhattan Project para a produção da bomba de fissão nuclear, após obstinados esforços contra a opinião de muitos dos seus colegas, prosseguiu e demonstrou o enorme potencial destruidor da fusão termonuclear; foi assim o mais responsável inventor da "bomba de hidrogénio" (nos EUA), após o que promoveu a constituição de um arsenal de tais armas e defendeu a ideia do seu uso, contribuindo activamente para a corrida aos armamentos que caracterizou o período da "guerra-fria".

Estas personagens não actuaram isolados, antes em grandes equipas, portanto tiveram muitos cúmplices, como também tiveram muitos adversários, nos planos técnico e moral. È pois fundamental registar também que a consciência social e o pacifismo foi então, como têm sido sempre, uma outra face da acção de muitos outros cientistas, a título individual ou de forma organizada, e em consequência do que muitos deles foram mesmo pessoalmente vitimizados.


OS CIENTISTAS E A LUTA PELA PAZ

Logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando as explosões nucleares de Hiroshima e Nagazaky abalavam ainda as consciências por todo o mundo, na sequência dos contactos internacionais promovidos por Federic Joliot-Curie e Paul Langevin (em França), Patrick Blackett e John Bernal (no Reino Unido) e Linus Pauling (nos Estados Unidos da América), entre outros, foi constituída, em Julho de 1946, a Federação Mundial dos Trabalhadores Científicos com o propósito de estabelecer o diálogo internacional pela prevalência da Paz; essa federação, que foi um importante "corredor" para o difícil diálogo leste-oeste durante a "guerra-fria", continua hoje activa à escala mundial. Mas com a "guerra-fria" e a corrida aos armamentos nucleares em marcha, Albert Einstein e Bertrand Russell sentiram-se no dever moral de subscrevem um manifesto contra as armas nucleares (Julho de 1955), secundados por vários outros cientistas iminentes. Bertrand Russell, Joseph Rotblat, Eric Burhop e Cecil Powell procuram dar sequência a esse manifesto promovendo uma Conferência (Pugwash, Canadá, 1957), a partir da qual ficou constituído o movimento Pugwash, que desde então tem realizado anualmente conferências internacionais sobre as problemáticas dos armamentos e da Paz. Joseph Rotblat, um dos seus fundadores e activista de sempre, veio a ser reconhecido com o prémio Nobel da Paz em 1995.

Por força da sua formação e ocupação profissional, os médicos têm estado activamente presentes entre os que se têm batido nos movimentos pacifistas, contra novos armamentos e no apoio às vítimas dos conflitos militares. O movimento Internacional de Médicos pela Prevenção da Guerra Nuclear (IPPNW) tem-se batido persistentemente pela abolição não só das armas nucleares como também de outras armas particularmente inumanas, designadamente as minas terrestre;

em 1985 este movimento foi recipiente do prémio Nobel da Paz.. Mas devemos ter presentes e louvar muitos outros movimentos, de médicos e de outros profissionais da Saúde, que se entregam, no próprio campo de batalha, ao alívio do sofrimento das vítimas da guerra.


O COMPLEXO INDUSTRIAL E MILITAR

Estamos presentemente perante uma renovada corrida aos armamentos. Não temos hoje um mundo bipolar nem é óbvia a ameaça ao centro capitalista hegemónico; o que se passa agora terá mais a ver com as necessidades intrínsecas do sistema, em luta pela sua própria sobrevivência, em guerra contra o mundo.

Segundo o SIPRI Yearbook 2002 (SIPRI - Stockholm International Peace Research Institute, http://projects.sipri.se/milex.html ), os gastos mundiais em defesa subiram 2% em 2001, chegando ao total de US$ 839 mil milhões, o que corresponde a 2,6% do PIB mundial, ou seja, um gasto de US$ 136 por habitante e ano. O crescimento de gastos registado desde 1998 contrasta com a contínua redução ocorrida de 1987 a 1998, período em que os gastos da NATO desceram 40%. Uma nova guerra dir-se-ia anunciada. O orçamento militar dos EUA para 2003 foi incrementado em cerca de US$ 45 mil milhões, um crescimento anual superior a 10%, o maior verificado desde 1966 (no auge da Guerra no Vietname). No ano fiscal de 2004, que começará em Outubro próximo, Washington pretende dar ao Pentágono US$ 380 mil milhões num orçamento federal total de US$ 2,2 milhões de milhões; somando todas as despesas conexas de outros ministérios, os EUA gastarão US$ 399 mil milhões em 2004, sem contar com o custo adicional das operações com a segunda Guerra do Golfo. Segundo a programação anunciada, o orçamento militar norte-americano deverá atingir US$ 483 mil milhões no fim da presente década. A guerra anunciada anuncia-se prolongada.

Entretanto, os maiores fabricantes de armamentos anunciam ganhos resultantes do incremento das encomendas. A Lockheed Martin, o maior fabricante norte-americano de equipamentos militares, anunciou um aumento de 11% nas vendas em 2002, atingindo US$ 26,6 mil miliões. O desempenho também favorável da Raytheon, cujos lucros duplicaram no quarto trimestre de 2002, é também devido ao aumento das encomendas que incluem mísseis Stinger e Tomahawk, o novo avião de reconhecimento Global Hawk já usado no Afeganistão, aviões e helicópteros de combate e satélites.

As maiores corporações produtoras de armamento são norte-americanas também. A Lockhedd Martin e a McDonnel Douglas são as duas primeiras; Northrop Grumman, General Motors e Hughes Electronics ocupam do quarto ao sexto lugares; em terceiro lugar está a britânica British Aerospace e em sétimo a francesa Thomson; e assim por diante. Destas corporações, a General Motors é a terceira maior transnacional, na totalidade das suas actividades, e ocupa o quinto lugar no sector de armamentos; a General Electric, sendo a nona na totalidade das suas actividades, é a 22.ª no ramo de armamentos. Etc.

O complexo militar-industrial está no coração do sistema capitalista mundial. A indústria armamentista é também uma importante fonte do fluxo comercial internacional; por essa via drena dos países periféricos (importadores de armamentos) importantes recursos financeiros que são subtraídos ao investimento produtivo (necessário ao respectivo desenvolvimento autónomo). A corrida às armas (estimulada à escala planetária) é pois um instrumento de exploração dos povos.


BOMBAS CONVENCIONAIS E OUTRAS NÃO

A intensificação da inovação e da renovação dos arsenais militares, verificada nos últimos cinco anos, conduziu à recuperação de conceitos antigos, antes descartados por escrúpulo moral e pressão da opinião pública, e à invenção de novas armas, ainda mais terríveis do que as já conhecidas. A distinção entre armas convencionais e não convencionais esbate-se nesta corrida. A legislação internacional nesta matéria tem dificuldade em se ajustar à inovação técnica e não é respeitada ou é manipulada pelas potências militares responsáveis por essas inovações.

A história dos tratados internacionais que condicionam ou proíbem a utilização de armas químicas e biológicas - Convenções de Haia (1899/1907), Protocolo de Genebra (1925), Convenção sobre Armas Biológicas (BWC, 1972), Convenção sobre Armas Químicas (CWC, 1993-1997) - tem sido uma história atribulada, reflectindo a evolução da correlação de forças no plano internacional, o exercício do poder pelas potências militares nos diferentes palcos estratégicos, e o facto de essas potências serem elas próprias os principais agentes de inovação destas categorias de armas. A história dos tratados relativos a armas nucleares - o Tratado de Não Proliferação Nuclear (NPT, 1970) teve sucesso relativo na contenção da multiplicação de potências nucleares e o Tratado de Proibição Integral de Testes Nucleares (CTBT, 1996) está em risco de não ser ratificado - demonstra também o seu modesto alcance, tanto mais que os EUA anunciaram (2002) renunciar ao princípio da não utilização de armas nucleares contra países não possuidores de tais armas e retomaram o desenvolvimento de novas armas nucleares com fins "tácticos", isto é, a serem utilizadas no campo de batalha para fins específicos (US Nuclear Posture Review, 2001).

[http://www.fas.org/spp/starwars/crs/#ac
http://www.fas.harvard.edu/~hsp/
http://www.pugwash.org/reports/cbw/cbwlist.htm]

As bombas convencionais ou de "utilização geral" comportam cerca de metade da sua massa de explosivo e os seus efeitos combinam a onda de choque com a projecção de fragmentos. A MOAB (Massive Ordnance Air Blast) são a maior bomba convencional no arsenal norte-americano, com 10 toneladas, cuja detonação é tão potente que origina a ascensão de uma coluna de gás e poeira com semelhança à de uma explosão nuclear. Recentíssima, foi testada no início deste mês de Março de 2003 e terá já sido utilizada no ataque ao Iraque.

As "bombas de fragmentação" contêm até 20% da sua massa de explosivo; os danos são produzidos sobretudo pelos fragmentos projectados. Estas bombas são evidentemente destinada a matar e não a destruir. As "cluster bombs" são bombas de fragmentação especializadas, pois projectam não fragmentos mas sim sub-munições, tais como granadas, minas, etc. de modo a atingir finalidades específicas mais letais ou retardadas. A versão JSOW tem 500 kg e transporta 145 pequenas bombas incendiárias que são ejectadas a 100 metros de altitude para se dispersarem sobre uma superfície com um hectare de área; foi testada "ao vivo" no Iraque em 25 de Janeiro de 1999 e em 16 Fevereiro de 2003 foram lançadas várias dezenas sobre a "zona de exclusão aérea". Crê-se terem sido utilizadas de novo na recente invasão do Iraque. Quer as bombas de fragmentação quer as "cluster bombs" são consideradas armas inumanas.

As "Bombas explosivas de ar-fuel" (FAE) ou bombas termobáricas foram desenvolvidas na década de 1960 pelos EUA e utilizadas no Vietname tendo em vista a destruição de abrigos subterrâneos e a desflorestação de terreno. Foram depois "aperfeiçoadas" e utilizadas sobre tropas entrincheiradas e sobre campos de minas na primeira Guerra do Golfo. Esta bomba consiste num contentor com uma substância volátil e duas cargas explosivas; a primeira carga explosiva produz a dispersão da substância volátil, gerando uma ampla nuvem de aerossol, e a segunda carga produz a detonação da mistura ar - aerossol. Forma uma enorme e fulgurante bola de fogo e uma intensíssima onda de choque. Pelo seu poder destrutivo, é comparável a uma munição nuclear de baixa potência. Quando a segunda carga não detonar ou não for accionada, a nuvem de aerossol, altamente tóxica, funcionará como uma arma química. Estas bombas sobrepõem-se em alguns aspectos às armas nucleares tácticas e às armas químicas, pelo que a sua utilização deveria ser renunciada.

Os "projécteis perfurantes ou de profundidade" EPW (Earth Penetrating Warheads) são granadas, bombas ou mísseis com configuração alongada para maximização da capacidade de penetração no alvo e que só depois são feitas explodir; a energia necessária para o efeito é a energia cinética adquirida em voo por acção de um propulsor ou por acção da gravidade. Actualmente, os EUA têm operacionais bombas EPW com 2 toneladas de massa e 300kg de explosivo convencional; lançadas de avião, por gravidade adquirem energia cinética suficiente para atravessarem 30 metros de solo. O seu desenvolvimento tem sido "justificado" pelo objectivo de atingir tenebrosas instalações subterrâneas onde estariam alojadas fábricas ou armazenadas armas químicas e biológicas.

Entretanto, os EUA dispõem já de bombas EPW com cargas nucleares, as B61-11, desenvolvidas por reconversão de bombas pré-existentes, tornadas operacionais em 1997, embora nunca testadas. A RNEP (Robust Nuclear Earth Penetrator) será uma nova EPW portadora de carga nuclear, cujo desenvolvimento se encontra proposto no relatório US Nuclear Posture Review, submetido pelo Pentágono ao Congresso dos EUA em Dezembro de 2001, e que foi orçamentado. Estas bombas são e serão extremamente perigosas pois que a profundidade a que a explosão deveria dar-se para prevenir a libertação para a atmosfera dos produtos radioactivos é muito superior à profundidade que qualquer projéctil possa atingir. A existência e o desenvolvimento destas bombas nucleares tácticas é muito grave, quer pelo perigo iminente de poderem ser utilizadas, quer por porem em causa a presente moratória aos testes nucleares, quer ainda por incentivarem a corrida a armas nucleares, contrariando o Tratado de Não Proliferação Nuclear e retrocedendo sobre o caminho para a adesão universal ao Tratado de Proibição Integral de Ensaios Nucleares.

As "bombas sujas" serão bombas com carga explosiva convencional cujo propósito será a dispersão de substâncias radioactivas. O conceito foi introduzido em cenários de ataques terroristas e a sua exploração mediática tem servido o propósito de aterrorizar psicologicamente o povo norte-americano, tendo em vista alimentar uma opinião pública favorável ao conceito de "guerra preventiva". Todavia, as munições de "urânio empobrecido", desenvolvidas na década de 1970 e que entraram no campo de batalha na primeira Guerra do Golfo em 1991, são de facto "bombas sujas", enquanto armas químicas e radiológicas, e armas ambientais também, por terem a prazo incidência sobre as populações residentes nos territórios contaminados. As munições de urânio penetram mais de um metro no solo e aí ficam não detectáveis no imediato até que a sua oxidação e dissolução contaminará o solo e a água. Sobre um alvo duro o impacto dá origem a uma explosão pirofórica que gera uma nuvem de aerossol radioactivo que funciona como arma química e radiológica. O urânio empobrecido é também utilizado nos mísseis Tomahawk e de Cruzeiro, quer como massas de estabilização do voo quer como ogivas perfurantes.

Não obstante a forte contra-informação da NATO, das autoridades dos EUA e dos seus aliados, e mesmo da EURATOM (órgão da União Europeia), os estudos feitos pela Organização Mundial de Saúde e pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente, bem como estudos de instituições independentes e declarações de sociedades científicas, aberta ou "diplomaticamente" confirmaram os efeitos nefastos já produzidos e os riscos pendentes sobre as populações nas áreas afectadas no Iraque e na ex-Jugoslávia. Os seus efeitos são conhecidos pelos ex-combatentes das tropas agressoras como "síndroma do Golfo" e "síndroma dos Balcãs" cuja origem é porém oficialmente "desconhecida".


A SEGUNDA GUERRA DO GOLFO

Doze anos após a primeira Guerra do Golfo, período durante o qual duplicou o número de bases militares norte-americanas na área envolvente do Golfo Arábico-Pérsico, foi desencadeada a segunda Guerra do Golfo, com grande soma e variedade de armas sinistramente espectaculares.

Os EUA utilizam o urânio em diversas das armas que fabricam. Esse facto está documentado em manuais relativos a esses armamentos bem como em numerosas patentes registadas. Assim, estima-se que haverá cerca de 23 sistemas de armamentos no mínimo suspeitos de conterem urânio (empobrecido ou natural) na sua estrutura ou em ogivas - entre eles se incluindo munições, tanques de guerra e outras viaturas blindadas, mísseis Tomahawk e de Cruzeiro, Bunker Busting Bombs (EPW), Small Smart Bombs, e Cluster Bombs.

Durante a Primeira Guerra do Golfo terão sido "consumidas" 300 a 800 toneladas de urânio em munições. Na Guerra dos Balcãs terão sido "consumidas" 300 toneladas. Na recente Guerra no Afeganistão terão sido "consumidas" cerca de 1000 toneladas, em resultado do lançamento de cerca de 2000 mísseis e bombas perfurantes com ogivas de urânio sobre alvos duros, para além de outras munições com DU (depleted uranium – urânio empobrecido). Agora na segunda Guerra do Golfo o montante poderá ter atingido 2000 toneladas e a população atingida e em risco é mais numerosa.

A experiência de conflitos anteriores, mormente a primeira Guerra do Golfo, revelou consequências de saúde graves atribuíveis ou mesmo atribuídas à inalação, ingestão, ou exposição externa ao urânio utilizado em armas. Tanto civis como militares foram atingidos por sintomas e doenças semelhantes: problemas respiratórios, doenças raras do aparelho digestivo ou renal, síndromas de deficiência imunológica, desordens neurológicas, cancros e leucemias; as crianças são particularmente afectadas, nascidas com defeitos genéticos traduzidos em deformidades, cancro precoce, doenças raras. Um terço dos soldados estrangeiros que actuaram na primeira Guerra do Golfo desenvolveu, mais cedo ou mais tarde, um conjunto de disfunções e doenças designado por "síndroma do Golfo", em resultado do qual vários milhares faleceram. Mas nunca as Forças Armadas dos EUA reconheceram formalmente a origem dessa afecção. Os estudos mais tarde efectuados nos Balcãs pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente - UNEP e pela Organização Mundial de Saúde - WHO, no fim da década de 1990, foram fortemente contrariados, iniciados tardiamente, condicionados quanto a informação militar disponibilizada, liberdade de acesso a locais e a extensão da sua cobertura. Não obstante, os seus resultados oficiais, embora forçados a enfantizar o princípio da precaução, identificaram também diversos riscos e consequências graves concretas.

Recentemente (Janeiro 2003) , a Comissão Europeia sobre o Risco Radiológico do Parlamento Europeu [http://www.euradcom.org/index.html] publicou um relatório em que afirma que os anteriores modelos sobre o risco de exposição a radiações ionizantes e em particular ao DU são incorrectos e que, em particular, o risco carcinogénico será centenas de vezes superior ao previamente admitido. E o Parlamento Europeu, que já em 2000, no final da Guerra nos Balcãs, votara uma resolução pela moratória sobre a utilização de DU em armamentos, votou uma nova resolução (12 de Fevereiro de 2003) em que apela à abolição efectiva de armas como "minas terrestres" e "cluster bombs" e, de novo, a uma moratória quanto à utilização de munições e ogivas com urânio.

Na realidade, o DU confere às armas em que é utilizado as características de armas de destruição maciça (WMD) e de efeitos indiscriminados (WIE). As WMD produzem morte ou destruição súbita nos seus alvos, com efeitos de grande alcance no espaço ou no tempo. As WIE produzem contaminação ou outros riscos, sobre uma vasta área ou por um longo período, com consequências graves conducentes a ferimento, doença crónica ou doença mortal ou efeitos severos nos nascituros. Ambas as categorias são ilegais face ao Primeiro Protocolo das Convenções de Genebra. O movimento IPPNW considera as armas com DU armas radiológicas e tóxicas que violam a Carta da ONU, as Convenções de Genebra, a Convenção das Armas Convencionais e as Convenções de Haia.

Em 6 de Abril de 2003 o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP) emitiu a recomendação para a realização de estudos sobre a utilização de urânio empobrecido (DU) no Iraque. Embora a respectiva Unidade de avaliação operacional pós-conflito (PCAU) tenha iniciado a planificação da sua intervenção logo no dia 21 de Março, a UNEP não se encontra ainda autorizada e não disporá mesmo dos meios para avançar para o terreno. Também a Organização Mundial de Saúde (WHO) deveria já ter iniciado investigação urgente sobre os níveis de contaminação com urânio em populações doentes ou não, incluindo feridos civis e militares e vítimas de situações epidémicas que se venham a manifestar durante os próximos anos.

É provável o cenário de as forças da coligação agressora terem utilizado até 2000 toneladas, ou seja, várias vezes mais urânio empobrecido do que na primeira Guerra do Golfo, e muito mais do que na Guerra dos Balcãs, o que torna mais premente a necessidade de avaliar a contaminação ambiental, identificar casos de exposição entre vítimas, populações civis e militares, e monitorizar a situação actual e a evolução do estado de saúde pública.

A gravidade da situação e a urgência de a avaliar e de mitigar as suas consequências é agora ainda maior do que foi nas referidas situações anteriores. Estudos comparáveis são aliás também urgentemente necessários no Afeganistão, em consequência da utilização que aí foi feita de armas semelhantes, algumas aí "ensaiadas" pela primeira vez. Mas todos estes estudos estão constrangidos pela ocupação e pela situação militar, e pelos poderosos interesses militares, comerciais e políticos, apostados em esconder as graves consequências imediatas, e sobretudo a prazo, do urânio utilizados em armamentos diversos. Os EUA afirmaram não considerarem ter responsabilidade na descontaminação dos territórios objecto de operações militares; o Reino Unido assumiu uma posição de princípio de alguma disponibilidade para partilhar essa responsabilidade. Entretanto, tropas de países terceiros (incluindo previsivelmente Portugal), serão chamadas para o terreno para aí manterem a "segurança e a ordem pública" e partilharem com as populações locais os riscos de exposição a solos e a águas contaminados.

As semanas, daqui a pouco os meses, vão passando sem que os organismos da ONU tenham claro mandato nem os requeridos meios para lançarem programas sobre um vasto território e uma numerosa população, sobretudo em Bagdad. Neste contexto, a destruição sistemática das já precárias infra-estruturas hospitalares e dos registos de saúde pública são um pesadíssimo obstáculo para a realização do trabalho que deve ser feito. E é sinistro, mas claramente plausível, no quadro de mentiras subjacente à suposta "justificação" para a acção militar desencadeada contra o Iraque, que a destruição dos sistemas de serviços médico e de saúde pública tenha sido mais uma frente da mesma guerra, esta com o objectivo de esconder do povo Iraquiano e da opinião pública mundial a natureza e a real dimensão das gravíssimas repercussões a prazo da utilização maciça de armas ilegais, designadamente as que utilizam o urânio empobrecido.

UMA CATÁSTROFE ESCONDIDA

Perante a dimensão da catástrofe escamoteada, a organização médica belga "Ajuda Médica para o Terceiro Mundo" emitiu de Bagdade, em 16 de Abril de 2003, uma declaração e um apelo urgentes, verdadeiro grito de revolta e de denúncia que não devemos deixar cair no silêncio do esquecimento.

«A presente catástrofe humanitária é da exclusiva e inteira responsabilidade das autoridades dos EUA e do RU, que lançaram uma guerra de agressão contra o Iraque em completa violação da lei internacional. No curso das suas guerras, as tropas dos EUA e do RU violaram grosseira e repetidamente a lei humanitária internacional (artigos 10, 12, 15, 21, 35, 36, 45, 47, 48, e 51 do Protocolo I adicional às Convenções de Genebra). Uma solução genuína e duradoura para a catástrofe humanitária no Iraque só pode ser alcançada após a saída imediata e incondicional das forças de ocupação e da restauração plena da soberania Iraquiana em todo o seu território e na base da livre vontade do seu povo. Os EUA e o RU devem ser obrigados a pagarem os estragos e o sofrimento que directa e indirectamente infligiram ao povo, ao país à sociedade Iraquianos. Entretanto, as potências ocupantes têm o dever de garantir alimentação e assistência médica à população (artigo 55 da IV Convenção de Genebra). Devem igualmente garantir, em cooperação com as autoridades nacionais e locais, os estabelecimentos e serviços médicos e hospitalares, saúde pública e higiene no território ocupado. Devem permitir que o pessoal médico exerça os seus deveres (artigo 56). Apelamos às agências competentes da ONU, designadamente UNFP, UNICEF e WHO para imediatamente retomarem as respectivas operações humanitárias no Iraque; um bombeiro não aguarda até que a casa acabe de arder por completo, mas toma riscos para combater o fogo e evitar o colapso completo do edifício. Apoiamos todas as iniciativas espontâneas e organizadas da população Iraquiana de denúncia da ocupação pelos EUA e o RU e de exigência para que as respectivas autoridades cumpram os seus deveres à luz da lei humanitária internacional. Apoiamos toda a iniciativa que tenha como objectivo levar o General Tommy Franks e outros responsáveis norte-americanos e britânicos perante um tribunal para que respondam pela sua violação da lei humanitária internacional. Em resposta ao pedido de vítimas directas da violação das leis humanitárias internacionais, como sejam doentes e pessoal médico, solicitámos ao Senhor Jan Fermon, reconhecido jurista belga de direitos humanos, que estudasse as possibilidades concretas de incriminar por crimes de guerra o General dos EUA Tommy Franks perante um tribunal Belga, na base da lei belga de competência universal.»

É esta a denuncia que partilhamos contra a agressão iníqua que se repete cada dia. A guerra não acabou para quem ficou ainda vivo no campo de batalha, num país destroçado, um povo ameaçado por uma catástrofe escamoteada, que se finge escondida.

Lisboa, 7 de Junho de 2003.



Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

10/Jun/03