Sustentabilidade do SNS Não há dinheiro?
Os custos e a alegada insustentabilidade financeira do Serviço Nacional
de Saúde (SNS) têm constituído a espinha dorsal d a
argumentação usada por governos e partidos da área do
poder para justificarem os cortes orçamentais que hipotecam o
desenvolvimento do SNS, servindo de explicação para a
contínua retirada de direitos aos cidadãos.
Na realidade, as transferências do Orçamento de Estado para o SNS
têm vindo a diminuir drasticamente, sendo os governos muito criativos na
invenção de múltiplas e enviesadas formas de o
sub-financiar.
Se em 2010 foram transferidos do Orçamento de Estado para o SNS 8.848
milhões de euros, em 2012 essa verba diminuiu para 7.107 milhões,
um corte de cerca de 20% (19,7%)
[fonte: SNS Orçamento de Estado 2012, Ministério da
Saúde].
Contudo, o facto de sucessivos governos terem desenvolvido políticas
fiscais laxistas ou favorecedoras das grandes empresas cotadas em Bolsa e
desviado enormes somas para apoio a investimentos de prioridade mais que
discutível - BPN e BPP, BCP, SIRESP, submarinos, "perdão
fiscal" às mais valias da PT, do BES, da Jerónimo Martins,
"off-shore" da Madeira, auto-estradas em excesso, contratos ruinosos
nas PPP, "rendas" abusivas na energia, etc., - mostra que a apregoada
insustentabilidade financeira do SNS, não pode ser, dessa forma,
justificada, existindo muito dinheiro malparado que daria, caso as escolhas
políticas fossem outras, para assegurar, sem dificuldade, o presente e o
futuro do SNS.
De resto, quer no plano nacional, quer no internacional, não foi a
bancarrota do "Estado Social" ou o custo dos serviços por ele
prestados, a causa da crise em que o mundo e o país mergulharam. Na
realidade, foi a falência do sistema financeiro, originada por uma
política de desregulação que estimulou investimentos
não produtivos de elevado risco e crédito armadilhado para
estimular o consumo, a causa do previsível e inevitável
"crash" que, depois, os mesmos interesses egoistas fizeram repercutir
sobre toda a economia. A grave situação actual foi desencadeada
por esse desastre financeiro que governos cúmplices procuraram e
procuram encobrir, tapando buracos e "imparidades" com dinheiros
públicos, que depois dizem faltar à sustentabilidade dos direitos
sociais.
Em Fevereiro de 2008, depois de anos de apregoada insustentabilidade financeira
do
National Health Service
inglês, o governo britânico injectou, sem hesitação
e num piscar de olhos, 73 mil milhões de euros (aproximadamente o valor
total da "ajuda" do BCE-FMI a Portugal) para "salvar" o
Northern Bank que a especulação bolsista da
administração levara à falência.
Em Portugal, enquanto se corta no Ensino e na Saúde, perdoa-se aos
acionistas da PT 270 milhões de euros que deviam pagar ao fisco,
gastam-se 5 a 7 mil milhões de euros só para safar um banco
(BPN), que depois se vende por 40 milhões, gastam-se mais 450
milhões para "salvar" o BPP (ou alguns dos seus accionistas)
que acabou por fechar deixando os depositantes mais crédulos de bolsos
vazios. Retiram-se mil milhões de euros ao SNS, mas pretendeu-se dar 800
milhões de euros às grandes empresas, cortando a taxa social
única (TSU) que os trabalhadores teriam de compensar,. A Caixa Geral de
Depósitos, que gastou dinheiro no socorro ao BPP e ao BPN (que o estado
tem de repor), há pouco recapitalizada com fundos da "ajuda"
da
troika
, corta os empréstimos aos cidadãos e às pequenas e
médias empresas mas financia os Mellos em centenas de milhões de
euros para completarem a aquisição da Brisa (os mesmos Mellos que
continuam a investir nas Parcerias Público-Privadas da Saúde
ocupando o vazio criado com o sub-financiamento do SNS).
Confirmando que o problema não se centra na (in)capacidade financeira ou
na insuficiente produção de riqueza mas sim numa
opção ideológica facciosamente monetarista ao
serviço de interesses dos donos da banca e das grandes empresas, as
mesmos instituições (Comissão Europeia, BCE, FMI) que
afirmam, nos
media,
a dificuldade ou impossibilidade de resolver os problemas da dívida
soberana dos preguiçosos países do Sul, dolosamente apelidados de
PIGS, retirando direitos (nomeadamente na Saúde) aos seu povos,
encontraram a forma rápida de "dar", discretamente, só
em Dezembro de 2011 e Fevereiro de 2012,
um milhar de mil milhões de euros
(1000 de mil milhões) à banca.
Sublinhe-se, a propósito da grandeza dos números, que o total de
apoios à banca europeia, era, segundo afirmou Durão Barroso ao
Parlamento Europeu em Setembro de 2011, de
4.600 mil milhões de euros,
o que, somado aos recentes acrescentos, eleva essa ajuda a um total fabuloso
de
5.600 mil milhões de euros,
(7 a 10 vezes o fundo de estabilidade europeia - ESM, a "grande
bazuca" contra a especulação recentemente aprovada, cerca de
15 vezes o valor total da dívida grega e 71 vezes a "ajuda"
concedida a Portugal, uns "míseros" 78 mil milhões,
metade dos quais irão ser devolvidos em juros e comissões).
Então não há dinheiro?...
"Há e não há! É uma questão de
prioridades. Há para umas coisas e não há para
outras..." como disse o (tão ignorado pela TV) Prof. Bruto
da Costa, prestigiado economista, presidente da Comissão Nacional
Justiça e Paz, organismo oficial da Igreja Católica:
De facto, a pergunta correcta não é se há dinheiro. A
questão que deve ser posta aos portugueses é se querem continuar
a gastar o dinheiro que têm a "salvar" os accionistas do BPN e
do BPP, a pagar mais uma auto-estrada aos Mellos, a comprar submarinos que nem
os compromissos da NATO obrigam, a dar muitos milhões em
"rendas" às PPP e às empresas de energia, a perdoar
impostos à banca e às famigeradas Sociedades Gestoras de
Participações Sociais (SGPS), ou se, pelo contrário, acham
melhor gastá-lo em investimentos produtivos e no financiamento do SNS e
de outros serviços sociais do estado.
Dez caças F-16 comprados em 1994 e que nunca chegaram a sair dos
caixotes onde ainda hoje permanecem, representam
"só"
600 milhões de euros abandonados a um canto, constituindo um
paradigmático monumento ao despesismo delirante e terceiro mundista dos
nossos rigorosos governantes que tão facilmente acusam os portugueses de
viver acima das suas possibilidades e o SNS de ter um custo
insuportável.
Apesar dos alegados desperdícios dolosamente empolados pelos governos
das últimas décadas que sobre eles montaram outra das vertentes
da argumentação justificativa do apoio prestado aos grandes
interesses privados, o Serviço Nacional de Saúde continua a
constituir um dos maiores avanços alcançados pela democracia em
Portugal, tendo colocado o país no pelotão da frente dos melhores
cuidados de Saúde (12º do mundo em 2001, segundo a OMS)
permanecendo ainda, e apesar de todos os ataques desferidos, como um
serviço público eficaz e com boa rentabilidade (cada vez menor,
é certo).
A celebrada "empresarialização" dos Hospitais, que
inoculou o pior da lógica da organização privada no seio
do serviço público, trouxe consigo uma "criativa"
concorrência de números e práticas de obscuro rigor,
perseguindo lucros virtuais construídos na falsidade das
estatísticas, a que acrescentou, simultaneamente, uma cascata de medidas
regulamentadoras que insuflaram o desvio administrativista e burocrático
da gestão hospitalar.
Esse caminho perverso, quase sempre redundante e supérfluo,
sobrepôs-se à prioridade natural dos objectivos clínicos,
multiplicando administradores, assessores e
outsourcings
, fazendo disparar os custos sem melhorar a qualidade dos serviços.
O ataque às Carreiras Médicas, que asseguravam e validavam a
progressão técnico-científica dos médicos e a
estruturação hierárquica dos Serviços, desvalorizou
a avaliação inter-pares substituindo-a por
nomeações e contratos isolados, tornando o exercício da
prática médica mais precário e fragmentado, mais
dependente de regras irracionais e de números ilusórios. Assim se
foi também menorizando a formação e a
investigação clínica, tornando mais difícil a
criação do espírito de equipa facilitador do trabalho
multidisciplinar. Com a necessidade de contratação de empresas
externas, muitas vezes para assegurar unicamente as urgências, fez-se
aumentar, sem proveito, os gastos do Estado no SNS, pondo em risco a sua
qualidade e o seu futuro.
Apesar disso, os custos do SNS português permanecem (ao contrário
do que é apregoado), em valores significativamente baixos, quando
comparados com outros países europeus. Embora o cidadão
português seja dos que mais gasta do seu bolso - 24% dos gastos em
Saúde são custos directos com medicamentos, saúde oral e
outros (fora do SNS) -, o gasto médio em Saúde por habitante
é, em Portugal (1.627 euros), muito inferior ao da Espanha (2.139),
metade da Alemanha (3.221), Suécia (3.335) e França (3.370) e
três vezes menos que nos USA (5.227) e Luxemburgo (5.438)
[dados recentes fornecidos pelo Eurostat e referentes a 2008].
Só no contexto virtual criado pela Tutela e pelos
media
, é que o SNS apresentado como estando sempre em crise -- vive
acima das suas (nossas) possibilidades, num país preguiçoso e sem
dinheiro. Por isso, segundo a Tutela, há que fazer pagar o
cidadão que procura o sistema público, e que o usa por vezes mal
(devido à desorganização da ligação dos
cuidados primários com os diferenciados), encaminhando-o para as
Urgências, engarrafando os seus acessos, o que estimula a conflitualidade
e o descontentamento.
O "cliente" menos informado é, assim, através dos
media
que constantemente atacam o serviço público de Saúde,
instrumentalizado e atirado às bichas das Urgências e dos SAP, ou
desviado para a privada a pretexto dos tempos de espera de consultas e
intervenções cirúrgicas que a Tutela faz gala em lamentar
nos telejonais, nunca ter dado mostras de querer, verdadeiramente, resolver
esses problemas dentro do SNS. Aliás, diga-se em abono da verdade, que
se a Tutela os já tivesse resolvido, teria solucionado o essencial, e
não haveria nenhuma
oportunidade de negócio
para a grande privada que, provavelmente, nem sequer existiria.
Como o SNS conquistou um lugar incontornável no núcleo de
direitos alcançado pela democracia portuguesa, não há
ainda, no amplo espectro partidário português (mesmo entre os mais
ortodoxos apoiantes do neoliberalismo monetarista de Milton Friedman do nosso
governo), quem assuma publicamente ser contra ele. Todos afirmam defender o SNS
e tudo o que fazem, quando no poder, é justificado pela busca da sua
sustentabilidade
ou do seu
aperfeiçoamento
. Seguindo essa tática, a resposta da Tutela tem sido sempre a de
mostrar preocupação com o
"caos"
e o
"problema"
da Saúde, dedicando-se a
"aperfeiçoar"
medidas
"salvadoras"
do SNS, que, na realidade, mais o foram afundando, agravando os seus
problemas, aproveitando a deixa para fazer o cidadão pagar, de forma
pedagógica, "aprendendo" assim que a Saúde custa
dinheiro.
Tornou-se pois, necessário que o cidadão se habitue a pagar.
Pagar a alguém, pagar por cada acto, por cada episódio, por cada
consulta. Como na privada. Ou melhor, como na grande privada, porque a pequena
é já hoje uma realidade quase inexistente não passando, na
maioria dos casos, de consultórios-
franchizing
das companhias de seguros que pagam cada vez pior o trabalho médico (30
euros brutos ou menos por cada consulta de especialidade). De fora, restam
apenas franjas sobrantes que ainda alimentam, em alguns profissionais, o sonho
de uma medicina liberal, numa profissão que cada vez mais se proletariza
(no mau sentido do termo, infelizmente).
É a grande privada que se tem expandido exponencialmente, ocupando
espaço criado pelo progressivo desabamento do SNS causado pelas medidas
tomadas pela Tutela
"para o consolidar"
. É ela a grande vencedora deste jogo de sombras. É ela
também que se apropria dos maiores lucros (é o negócio
mais lucrativo, a seguir ao das armas Isabel Vaz /BES Saúde,
dixit
). A grande privada que, paradoxalmente, só sobrevive e acumula lucros
com a baixa remuneração da maioria dos profissionais e a
contribuição decisiva de subvenções e apoios
estatais, conhecidos e desconhecidos, directos e indirectos, através das
PPP, dos sub-sistemas, das transferências de doentes como a ADSE,
Min.Justiça, SIGIC, dos cheque-cirurgia, das convenções,
das assessorias, tirando mais dinheiro dos bolsos dos contribuintes que voltam
a pagar o que já descontaram para o SNS.
A Constituição assegura um SNS tendencialmente gratuito e
proíbe o co-pagamento? Pois há que fazê-lo tendencialmente
pago! Como? Nada melhor do que criar taxas ditas "moderadoras",
porque moderar não é constitucionalmente proibido. O estranho,
nessas taxas "moderadoras", é que também são
cobradas análises, colonscopias, gastroscopias, broncoscopias, como se
isso fosse escolha (ou abuso) do doente, viciado em picadelas, exames invasivos
e operações, e não actos só possíveis de
executar por prescrição médica.
Na realidade, as taxas "moderadoras" têm outro papel: o de
indiciar um co-pagamento progressivo que atenue a diferença com o
preço da privada e crie a habituação de que os cuidados de
Saúde não são um direito inerente a qualquer
cidadão e um serviço pré-pago. As taxas são, de
facto, um duplo pagamento contrário ao espírito e à letra
da Constituição (como toda a gente sabe), e só o
contorcionismo jurídico de um Tribunal Constitucional partidarizado as
conseguiu encaixar no seu espírito solidário e
"tendencialmente gratuito".
O actual governo assume despudoradamente querer reformar o "Estado
Social", abandonando o dever de garantir, por igual, o direito de todos os
cidadãos à Saúde, substituindo-o por uma política
caritativa e assistencialista (a devolução, pelo SNS, de duas
dezenas de hospitais às Misericórdias e a campanha de um
"cortejo de oferendas" para construir uma ala pediátrica de um
grande hospital público, são apenas dois símbolos desse
retrocesso). Assim se procura dar aos "pobres", o pouco que resta de
um Orçamento de Estado virado para os negócios e para as
negociatas, a que se juntam as sobras de um "mecenato" que as grandes
empresas quiserem dispensar com o dinheiro que lhes é poupado nos
impostos, e a quem, todos nós, depois, devemos ficar servilmente
agradecidos.
Sublinhe-se que nada há de mal ou criticável na prática
médica individual e privada da Medicina. Um médico pode e deve,
em qualquer sistema (público ou privado), exercer com honestidade e
eficiência a sua profissão. Mas a privatização dos
cuidados de Saúde, como forma organizativa que tem em vista o lucro,
não é barata nem eficaz e contém em si mecanismos
perversos que facilitam e estimulam a distorção, a falta de rigor
e a má prática.
A evolução técnica e a multidisciplinaridade da medicina
moderna, obrigam a um aumento de escala dos investimentos, que não pode
(nem deve) ser combatido, já que tal implicaria um recuo na capacidade
e/ou no nível assistencial. Contudo, esse contínuo
desenvolvimento pode e deve ser efectuado, com vantagem, no seio de um sector
público não lucrativo, centrado no benefício da
população e não no interesse dos accionistas, de forma a
não deixar largos sectores populacionais sem cobertura, entregando-os a
sistemas assistencialistas sub-financiados e de má qualidade. A
experiência negativa dos EUA é uma boa prova das inúmeras
desvantagens da liberalização e privatização da
Saúde (cara e com enormes desperdícios), em que os
inúmeros centros de excelência convivem com milhões de
cidadãos sem assistência, ou com direitos à Saúde
limitados e degradados.
Poder-se-á concluir, pois, que o estrangulamento do SNS que as medidas
governamentais e da
troika
implicam, são o acentuar de uma política que, de há
muito, procura limitar o seu papel de grande e dominante serviço
público prestador de cuidados de Saúde. Essas medidas não
são justificadas por qualquer défice na sua sustentabilidade
económica presente ou futura.
Na realidade, elas representam apenas uma opção ideológica
concreta, que defende interesses estranhos ao bem-estar da
população, contrariando o desígnio constitucionalmente
consagrado de um SNS universal, solidário e tendencialmente gratuito.
Há contudo, um largo consenso que se pode e deve construir na defesa
cidadã do SNS, contra a política da
troika
e dos grandes interesses que sequestram o governo e o país, construindo
um futuro que derrote o falso fatalismo do "não há
alternativa", posto em voga por Margaret Tatcher, primeira
responsável da brutal fragilização do prestigiado
National Health Service
inglês.
A intransigente oposição à desestruturação
do SNS português, como serviço público cumpridor dos
preceitos constitucionalmente instituídos, deve assumir-se como o campo
transversal, abrangente e pluripartidário onde os médicos
portugueses e a sua Ordem se devem posicionar, na defesa dos seus direitos, dos
direitos dos doentes e de todos os cidadãos do país.
[*]
Membro da Comissão Nacional da Ordem dos Médicos para o SNS.
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