Sermão do bom ladrão
Corria e decorria o período quaresmal do Ano da Graça de 1655 em
Lisboa. Na Igreja da Misericórdia, postavam-se, em solene recolhimento,
Dom João IV, o rei, os seus ministros, os seus conselheiros e os seus
magistrados. Com uma lacerante concepção do mundo, da
história, do Estado, da Sociedade e do Evangelho, levanta-se
António Vieira, o pregador. Começou por advertir Sua Majestade e
os seus próximos de que a prédica mais se adequaria à
Capela Real, já que incidiria sobre questões de poder e
corrupção, opulência e indigência,
adulação e mistificação. Mas quiseram as
circunstâncias que a Palavra da Luz se fizesse ouvir na
Conceição Velha. Corre e decorre o Ano da Graça de 2011 e
o sermão mantém-se pertinente, bastando substituir a Índia
por União Europeia, o rei por presidente, os ministros por ministros, os
conselheiros por assessores, os magistrados por magistrados.
Vamos falar, hoje, do Público e do Privado, do Mal e do Bem. Na verdade,
tudo o que é público é tido por vergonhoso: um roubo sem
ornatos de benemerência, o incesto badalado na vox populi, as
lamúrias nas filas de espera dos hospícios. Já o Privado
é prenhe de virtudes: enriquece preferentemente em silêncio (e o
enriquecimento lícito é mais chocante e pernicioso do que o
ilícito), destaca anjos da guarda para operações
criminosas, socorre donzelas em maus lençóis e maleitas
brasonadas em clínicas discretas. Voltemos, no entanto, à
missão profética e à iniciação ética
dos Governos. Vossa Majestade deverá distanciar-se dos desmandos que se
cometem em Vosso Nome e deverá recusar prendas bajulatórias,
já que VM jurou cumprir e fazer cumprir a Constituição,
vertida, nas Cortes Gerais, em defesa das classes desfavorecidas e pervertida,
nas aplicações correntes, pelas classes favorecidas. Quero
valer-me desta quadra que, embora pós-quaresmal, não deixa de ser
de jejum e penitência, de luto imposto pelos argentários, para
aconselhar os seus ministros, os seus assessores e os seus magistrados a
fornecerem a VM os Relatórios da Fazenda Pública, do Tribunal de
Contas e dos Ouvidores das Praças. Neles consta que o maldito
défice público se transformou em bendito superávite
privado. Verá, com seus próprios olhos, que, mui patentemnente
desde 1986, se desvaneceu a linha que separa a administração da
usurpação. Não haveria, hoje, este abalo nas
Finanças e esta perda de independência e sobretudo este clamor
social se milhares de milhões em impostos não tivessem prescrito,
se milhares de milhões não houvessem contornado o Estado na
economia paralela, se milhares de milhões não se tivessem
injustificado em aditamentos de adjudicações, se milhares de
milhões não houvessem sido aplicados em vasos de guerra em vez de
indústrias da paz, se milhares de milhões não tivessem
esquecido as necessidades primárias e lembrado as sumptuárias, se
milhares de milhões se houvessem acautelado nas
privatizações, se milhares de milhões vindos da Europa
tivessem merecido acompanhamento cívico e judiciário, se milhares
de milhões não se tivessem evadido para paraísos
infiscalizáveis. O confirmará nas auditorias se houver alguma
verticalidade na coluna do Reynno e alguma decência nas vestes da Corte.
Entretanto, o Bom Ladrão Privado esforça-se por convencer
assalariados, pensionistas, desempregados, consumidores, contribuintes,
eleitores e sobretudo os pobres em Ciências do Ter & do Poder de que o
Público é a raiz do mal, apesar de tão grande Riqueza
Privada não existir sem tamanha Pobreza Pública. Por isso,
não estranhe VM a campanha dos Boletins & dos Cornetins: o Estado
não tem vocação para administrar, cabendo-lhe transferir o
Orçamento para os Privados, estabelecer parcerias em que aceite perder
para gerir bem. Clamam ainda as trombetas de Jericó, a começar
pelos corneteiros de El'Rei, que o Estado é mau pagador. Dramatiza-se
Céus! o Calendário de Incumprimento da
Administração Central e da Administração Local:
seis meses em média. Chegam a acusar o Estado como causador-mor das
insolvências particulares. Não estão, porém,
Majestade, empenhados em mostrar o que empresas e privados devem ao Estado,
tornando-o insolvente. Também não os preocupa quanto os privados
devem entre si, bem como o respectivo Calendário de Incumprimento e os
Anexos de Incobráveis. Majestade, quem emite milhares e milhares de
cheques sem provisão neste país onde a Palavra nada abona nem a
barba nada cauciona? Quem não honra milhões de contratos?
Inúmeros empreendedores. Também a Iniciativa Privada fecha
milhares de portas, numa rotunda manifestação de superioridade do
privado sobre o público. Todos os anos, no Dia dos Fiéis
Defuntos, Vossa Majestade inauguraria o maior cemitério da Grei se as
empresas e as famílias que tombam por incapacidade da gerência ou
lógica trucidante dos mercados coubessem nas sepulturas e as suas contas
num epitáfio. É o Privado creia Majestade que
ostenta a Coroa da Glória a defraudar o Estado e o Privado, que reduz e
atrasa salários, que fecha empresas por SMS e arregimenta
esquadrões da Guarda Real e da Segurança Privada para cortar o
passo ao desespero dos espoliados e à indig(nação) dos
ludibriados. Mas os Boletins & os Cornetins açulam as almas. Reflecti:
traçam cenários de falência do Serviço Nacional de
Saúde. Apontam alguns casos e escondem outros casos. Manejam o
método dos sofistas: a ADSE não é expedita a pagar aos
hospitais e os hospitais não honram os compromissos com os fornecedores.
Senhores ministros, assessores e magistrados, mas as Seguradoras Privadas
deixam arrastar as dívidas aos hospitais e os arautos da
insustentabilidade não pedem ou sugerem a nacionalização
dos Seguros.
Noto pelo sobrolho de Vossa Majestade e pela rigidez de porte o
Infalível o saberá algum enfado. Espero que seja postura
de protocolo: na sua infinita misericórdia, o Altíssimo
convidou-Vos, abrindo a Casa do Poder Intemporal ao Poder Temporal. Mas temendo
ser pouco cerimonioso e parcimonioso não alongarei a
pregação. Rematarei o Verbo com uma ocorrência que
não se situa no antanho mas caberia nos tombos das rotas das
Índias e do Brasil, dos desfalques e das especiarias, dos ferros dos
escravos e dos metais preciosos. Ouviu VM alguma murmuração sobre
o BPN, entidade com alvará de 1993, lavrado por seu egrégio
Governo. Foi um covil de ladrões. O erário público
já sangrou mais do que Cristo no Calvário para pagar e apagar
malfeitorias, algumas com inovação nas artes de furtar. Corria e
decorria um domingo do Ano da Graça de 2008 e o banco foi nacionalizado.
Os lucros ficaram nas mãos dos delinquentes e os prejuízos nas
mãos do Estado. Corria e decorria um domingo do Ano da Graça de
2011 e o banco foi reprivatizado. O facto dos agentes do Estado actuarem pela
calada, no dia que Deus destinou ao repouso, é matéria de
suspeita, a apurar no Juízo Final. De momento, cumpre-me alertar VM para
os obscuros negócios da pátria, ilustrados por esta fábula
de colarinho branco: foi o BPN constituído e gerido por um elenco em boa
parte saído de seus Governos. Houve uma tentativa frustrada de reparo
dos rombos, empreendida também por um Vosso ex-ministro, mas apenas
levou consigo 10 milhões pelo intento de reparação. A
Caixa Geral de Depósitos, do Estado Português, com
autorização dos ministros e assessores do Reynno e presta e digna
assinatura régia, perdeu milhares de milhões de euros neste
naufrágio das Novas Índias. Presidia à Caixa um Vosso
ex-ministro. Agora, também um Vosso ex-ministro encabeça a compra
dos despojos da embarcação, declarando que o Estado fez um
interessante acordo, apesar de existir uma contraproposta de 100
milhões, que não previa saneamentos de funcionários nem
encerramentos de balcões. Majestade, ministros, assessores, magistrados,
assevera o último ex-ministro em cena que os contribuintes
poderão respirar: o BPN sairá da órbita do Estado. A que
preço? Por 40 milhões de euros: menos de metade do estádio
de futebol de Braga, cidade de igrejas e mesquitas. Mas como garantir descanso
aos contribuintes se está em curso uma recapitalização de
550 milhões, se as eventuais rescisões serão suportadas
pelo Estado, se os subsídios de desemprego e a interrupção
das contribuições em sede de Segurança Social e IRS
afectarão os cofres do Reynno e engrossarão as falanges dos
inactivos? Só metade dos marinheiros é arrojada às vagas
apregoa o recém-graduado capitão, com ar humanitário, a
boca rendilhada de espuma. Não espanta: o mar está embravecido e
ele, animoso, manobra da casa das máquinas à coberta. Apanha com
as vagas em cheio. Gagueja mas não larga o leme. Insufla ânimo aos
marujos apavorados e aos clientes espavoridos. O BIC lançará
coletes de salvação a 750 marinheiros que provem nadar de
bruços entre o Cais da Ribeira e a Baía de Luanda.
Salvar-se-ão os tripulantes mais vigorosos e destros. Já assim
era na selecção de negros para as plantações e
minas de ouro. Os restantes 800 serão timbrados como excedentes e
incompetentes, inadaptados às lides do corso e às cutiladas dos
fortins: baixas de ciladas, escorbutos, enjoos, vilezas e rumores. Em
contrapartida, os capitães da finança luso-angolana, pela voz de
Mira Diogo Cão Amaral, enaltecem a credibilidade e a capacidade do grupo
investidor-saldador, dando como beneplácito a figura do homem mais rico
de Portugal: Amé(rico) Amorim. Majestade, não conheceis este
Amé(rico) das ligações à Corte? Como vós
é Rei, embora da cortiça. Como vós é soberano, mas
do petróleo. E que mais recordareis? Há anos integrou uma
delegação de eminências capitalistas que foi demonstrar
ardor pátrio junto da Corte, apelando às
corporações para que mantivessem a direcção e o
controlo accionista em Portugal. Amé(rico) não demoraria a passar
para controlo espanhol o BNCI/Banco Nacional de Crédito
Imobiliário. Patriotismo nunca faltou aos grupos de pressão e da
abdicação: anteriormente já Amé(rico) havia vendido
a espanhóis a posição no BCP. Não escasseiam
elementos retratísticos. Aqui há anos envolveu-se num colossal
processo de desvio de fundos europeus, sendo bafejado pelas prateleiras da
morosidade com a prescrição. Não vai há
séculos que ordenou o despedimento preventivo de dezenas de
súbditos, estribado em apreensões sobre o futuro das rolhas e de
outros artigos de sobro. Mas os resultados surpreenderam o Rei de Santa Maria
da Feira. Sempre a crescer. Sempre a enriquecer. Principalmente à medida
que a miséria alastra e o Estado não só privatiza empresas
e serviços como se encontra refém dos privatizadores. Senhor,
Portugal deve muito aos ricos ou serão os ricos que devem muito a
Portugal?
Majestade, vou terminar com Vossa licença. A Nação jaz
guarnecida de panos roxos da Paixão, à mercê dos passos e
compassos da Troika, aparentemente rendida a moedeiros autóctones e
internacionais, à capitulação das fidalguias, às
vénias das criadagens. Não abusarei da tortura da verdade. Deus
se compadeça da Vossa visão e da Vossa audição,
hoje, na qualidade de 19.º chefe de Estado da República, ontem,
como 21.º chefe de Estado da Monarquia, a fim de que os olhos de todos os
seres que Francisco de Assis amou forneçam clareza ao Vosso olhar e o
troar dos canhões e dos carrilhões Vos faça entender que,
mais tarde ou mais cedo, não há bom ladrão que se exima
à justiça nem rei que escape à peste. E a peste
será a cólera dos justos. Vós e os ministros, assessores e
magistrados a fomentaram. Vorazes e altivos agora. Cabisbaixos Vos sentireis
depois. Cercados pelo alvoroço das arraias de Fernão Lopes.
Envergareis as túnicas do opróbrio. Devolvereis as dezenas de
BPN's que levaram Portugal a contrair dívidas para liquidar
dívidas, a ditar a carência colectiva em favor da
ostentação da Corte e dos cortesãos. Senhor, por que
continuais de sobrolho carregado? D. João IV faleceu um ano após
o meu sermão. Não vos fixeis nos adejos do infausto. Porventura
estareis a rever-Vos no destino dos príncipes de Israel que sofreram o
cativeiro por abandonarem o povo de Deus aos lobos?
Principes ejus in medio illius, quasi lupi rapientes praedam
(Ezequiel, 22, 27).
[*]
Escritor/Jornalista.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|