Pormenores tramados
por João Ramos de Almeida
[*]
Lendo
o recente acordo
de concertação social ficava-se já com
a percepção
do pouco que o Governo quer fazer na frente laboral contra a precariedade.
Mas analisando a proposta de lei do Governo que será votada a 18
de Julho - verifica-se que ela foi bem além do acordo e salvo
melhor interpretação de jurista , dá uma ideia do
que o PS pensa sobre o momento actual, ou das pressões a que tem sido
sujeito, e às quais cedeu.
Ou, pior, o que foi que colocou na proposta para ser cortado na
negociação, para conseguir o que realmente quer. O que
será que o Governo realmente quer?
É entendimento deste Governo que a contratação colectiva
é o fórum adequado para conseguir mais igualdade e impedir
vácuos legais como os criados com a legislação aprovada
desde 2009 (com o Governo PS e este ministro Vieira da Silva), prolongada desde
2011 com o Governo PSD/CDS. António Costa afirmou estar sensibilizado
para essa realidade e o
ministro Vieira da Silva sublinhou por diversas vezes
(6/7/2018, ver 51m58s) os efeitos positivos de haver um número
crescente de trabalhadores abrangidos.
Por isso, muito se estranha aquilo que sobressai da proposta de lei do Governo.
Nomeadamente quanto à contratação colectiva.
De todas, esta é a mais chocante:
Cessação e suspensão da vigência de convenção coletiva ( Artigo 502.º)
À possibilidade de uma convenção colectiva poder cessar,
acrescenta-se agora a possibilidade de poder cessar "no todo ou em
parte". Mas mais grave: Ela pode caducar "decorrente de
extinção de associação sindical ou
associação de empregadores outorgantes". Ou seja, inagina-se
e já aconteceu no sector segurador uma
associação patronal decidir dissolver-se. O que acontece à
convenção? Se o patronato decide suicidar-se, o acordo devia no
mínimo preservar a convenção que a
associação queria fazer caducar. Mas não: os
patrões suicidam-se e levam consigo a convenção, que passa
a vigorar como acordo de empresa do sector! Que conveniente!
Como dizia o jurista Jorge Leite, era como se, quando o Parlamento é
dissolvido, morria toda a legislação!
Escolha de convenção aplicável (Artigo 497.º)
O que este artigo trata é dos trabalhadores que, laborando numa dada
empresa, são abrangidos por várias convenções,
assinadas por diversas associações patronais e sindicais. Neste
caso, segundo o actual Código, o trabalhador tem de escolher uma das
convenções, porque não se aplica o princípio da
norma mais favorável.
Mas agora o Governo quer que ele apenas possa escolher "no âmbito do
setcor de atividade, profissional e geográfico do instrumento
escolhido", o que torna o universo de escolha mais restrito.
Actualmente, caso a convenção não tenha prazo de
vigência, os trabalhadores são abrangidos durante o prazo
mínimo de um ano. Mas agora o Governo estipula que a
convenção "mantém-se até ao final da sua
vigência, com o limite de um ano". Ou seja, caso a
convenção caduque antes de um ano, também cessa para esse
trabalhador, quando antes poderia aplicar-se-lhe durante um ano.
Se alterar a sua escolha, o Governo propõe agora que cesse de imediato a
aplicação da convenção. Mas o que está em
vigor prevê que, "caso o trabalhador, o empregador ou a
associação em que algum deles esteja inscrito se desfilie de
entidade celebrante, a convenção continua a aplicar-se até
ao final do prazo de vigência que dela constar"... O que acha que
é melhor para o trabalhador?
Denúncia de convenção coletiva (Artigo 500.º)
É fixado, aparentemente de forma mais restritiva para a denúncia,
que a intenção de denunciar uma convenção
"deve (...) ser acompanhada de fundamentação quantos a
motivos de ordem económica, estrutural ou a desajustamentos do regime da
convenção denunciada." Mas não parece ser uma grande
dificuldade para uma associação patronal...
Banco de horas grupal (Artigo 208.º-B)
O banco de horas foi criado para que a empresa não tenha de pagar
trabalho suplementar, mesmo apesar de o seu montante já ter sido
reduzido a metade desde 2012. E o banco de horas grupal foi criado para
contornar o caso em que, individualmente, o trabalhador se recuse. A
opinião dos parceiros políticos do Governo quanto a esta
polémica questão era o de que o banco de hora grupal passasse
para o âmbito da negociação colectiva. Mas aqui o Governo
inovou
de diversas maneiras.
Primeiro
, estabeleceu que passaria para o âmbito da negociação
colectiva
ou
seria objecto de referendo. O mesmo é dizer que nunca passará
para o âmbito da negociação colectiva.
Segundo
: antes o trabalhador que não quisesse o banco de horas,
era obrigado a aceitá-lo
(relatório CRL, pag 122), se 75% dos trabalhadores o aceitasse. Agora,
o Governo propõe que seja 65% dos trabalhadores...! E isso mesmo quando
haja "alteração na composição da equipa,
seção ou unidade económica". E se votarem, não
podem desfazer quando quiserem. Têm de o aguentar pelo menos 2 anos. E
para o pôr em causa, têm de conseguir que um terço dos
trabalhadores abrangidos não o queiram. E se, nesse referendo,
conseguirem a tal maioria de 65%, o banco mesmo assim só termina 2 meses
depois... E caso não consigam os 65%, um novo referendo apenas pode ser
feito um ano depois... Tudo a favor do empregador. E a desfavor da
articulação trabalho/vida familiar.
A proposta de lei estabelece que o referido referendo deverá ser
fiscalizado pelas estruturas representativas dos trabalhadores. Ora, esta
questâo pode tornar-se num autêntico fogo fátuo.
Como é lembrado por Maria da Paz Campos Lima, a última
European Company Survey
da
Eurofound
apenas 8% das empresas com mais de 10 trabalhadores tem estruturas
representativas de trabalhadores de qualquer tipo. Quem vai fiscalizar? Os
Sindicatos? Não têm mais nada para fazer do que estar a fiscalizar
em centenas de milhares de empresas a realização do banco de
horas. Já não bastava a arregimentação da
Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) para fiscalizar
nas empresas com menos de dez trabalhadores, agora mobiliza-se os Sindicatos no
interesse patronal!
Resta uma dúvida ainda, suscitada por Maria da Paz Campos Lima: nas duas
versões da lei, está previsto que o banco de horas não se
aplica quando as convenções colectivas disponham em
contrário. Mas resta saber o que acontece naquelas
convenções que são omissas sobre essa matéria. Ou
ainda nas convenções colectivas que dispunham em
contrário, mas que caducaram. Muito provavelmente aplica-se a lei... Ou
seja, a lei torna-se mais negativa do que aquilo que os trabalhadores tinham. E
o Governo sabe disso.
Contratos a prazo (art 139º)
O artigo 139.º do Código permite que "o regime do contrato de
trabalho a termo resolutivo (...)
pode ser afastado por instrumento de regulamentação coletiva de
trabalho
, com exceção da alínea b) do n.º 4 do artigo
seguinte e dos n. os 1, 4 e 5 do artigo 148.º" Ou seja, a
convenção pode actualmente ter condições mais
recuadas do que a lei,
à excepção
do caso dos jovens ou desempregados de longa duração (mais de um
ano); do caso do número de renovações do contrato a prazo,
da duração do primeiro contrato de 18 meses para os jovens e
outras durações; do caso da duração do trabalho a
tempo incerto não ser superior a 6 anos.
Ora, a nova redacção do mesmo artigo diz que "o regime do
contrato de trabalho a termo resolutivo, (...)
não pode ser afastado por instrumento de regulamentação
coletiva de trabalho
, com exceção do n.º 2 do artigo seguinte e do artigo
145.º Ou seja, esse número 2 especifica o que se considera a
"necessidade temporária da empresa", segundo a qual se pode
recorrer ao contrato a prazo; o artigo 145º diz que, quando a empresa
admite um trabalhador a contrato sem termo, o contratado a prazo tem
preferência na admissão.
Resultado
:
passa a ser possível que o contrato a prazo seja usado para mais
situações do que as previstas actualmente na lei - legitimando as
actuais situações ilegais de abuso face à lei, quando
são usados para actividades permanentes. Por outro lado, deixa de
colocar o contratado a prazo como preferencial para ser admitido
permanentemente, aumentando a rotação de trabalhadores, já
que esse trabalhador voltará ao desemprego.
Duração de contrato de trabalho a termo (Artigo 148.º)
Actualmente, o contrato de trabalho a termo certo pode ser renovado até
três vezes e a sua duração não pode exceder: a) 18
meses, quando se tratar de jovens; b) Dois anos, nos demais casos previstos no
n.º 4 do artigo 140.º (Ou seja, em caso de lançamento de de
nova actividade ou início de laboração de empresa com
estabelecimento abaixo de 750 trabalhadores; e para a contratação
de qum estava à contratação de jovens e desempregados de
longa duração); c) Três anos, nos restantes casos.
A proposta de lei diz que a duração do contrato de trabalho a
termo certo não pode ser superior a dois anos. Ponto. Ou seja, parece
que os jovens saem prejudicados. Depois, em caso de nova empresa, não
poderá exceder dois anos, que era o que já estava em vigor... Mas
o número limite de trabalhadores baixa de 750 para 250, o que não
impede de abranger, ainda assim, a esmagadora maioria das empresas portuguesas.
Contratos de muito curta duração (Artigo 142º)
Para que serve este tipo de contratos? Para "acréscimo excecional e
substancial da atividade de empresa cujo ciclo anual apresente irregularidades
decorrentes do respetivo mercado ou de natureza estrutural que não seja
passível de assegurar pela sua estrutura permanente".
Ou seja, este tipo de contrato já é uma aberração e
que poderia ser coberto por um
contrato a prazo
.
Antes, este tipo de contratos - que tinham uma duração
máxima de 15 dias - só poderia ser usados na actividade
agrícola e de turismo. Agora, o seu prazo alarga-se para uma
duração máxima de 35 dias - não se trata de uma
duração mínima, mas máxima - e alarga-se o seu
âmbito a TODAS as actividades. Refira-se que os contratos abaixo de 15
dias continuam a não de ser passados a escrito.
Direitos do trabalhador com contrato intermitente (Artigo 160.º)
Como o próprio nome indicada, trata-se de contratos em que a
"prestação de trabalho seja intercalada por um ou mais
períodos de inactividade". O que está em vigor diz:
"Durante o período de inatividade, o trabalhador tem direito a
compensação retributiva em valor estabelecido em instrumento de
regulamentação coletiva de trabalho ou, na sua falta, de 20% da
retribuição base, a pagar pelo empregador com periodicidade igual
à da retribuição." O trabalhador pode exercer outra
actividade.
O que se propõe? Que durante o período de inactividade, o
empregador que o contratou o trabalhador por trabalho intermitente apenas tem
de pagar o montante da retribuição deduzido do que o trabalhador
receber na segunda activdade...! Ou seja, além de ser uma
redução dos deveres do empregador, trata-se de um estímulo
à actividade ilegal e não declarada, porque o empregado
não tem interesse em declará-la!
Forma e conteúdo de contrato de trabalho temporário (Artigo 181.º)
Este contrato de trabalho temporário é uma mina porque não
está sujeito aos limites do contrato a prazo e pode ser prolongado
indefinidamente, "enquanto se mantenha o motivo justificativo". O que
se pretende fazer?
Como se pode ler no texto actual, o contrato deve conter, entre outras coisas,
os "motivos que justificam a celebração do contrato, com
menção concreta dos factos que os integram" (alínea
b). Mas agora, é introduzido uma pequena diferença: "Tendo
por base o motivo justificativo do recurso ao trabalho temporário por
parte do utilizador indicado no contrato de utilização de
trabalho temporário,
sem prejuízo do disposto nos artigos 412º e 413º
, com as necessárias adaptações". E o que são
esses artigos?
Artigo 412.º Informações confidenciais
Artigo 413.º Justificação e controlo judicial em
matéria de confidencialidade de informação
Não sei porquê, mas parece que se abriu campo para restringir mais
a informação a prestar...
Duração de contrato de trabalho temporário (Artigo 182.º)
Perante a indefinição da sua duração ainda vigente,
o Governo quer que apenas possa ser renovado 6 vezes. Mas ao mesmo tempo,
exclui desse limite "o contrato de trabalho temporário a termo
certo celebrado para substituição direta ou indireta de
trabalhador ausente ou que, por qualquer motivo, se encontre temporariamente
impedido de trabalhar". Ou seja, já se abriu uma porta para que
volte a ser de duração indefinida. E como a
informação pode ser confidencial...
Caducidade de contrato de trabalho a termo certo (Artigo 344.º)
O que está em vigor prevê que, no final do prazo do contrato, o
empregador paga uma compensação de 18 dias de
retribuição base e diuturnidades por cada ano de serviço.
O que agora se pretende é que o empregador não paga caso"a
caducidade decorrer de declaração do trabalhador"...
Artigo 40.º Licença parental inicial
O Governo quer acabar com o gozo da licença parental "em
simultâneo pelos progenitores entre os 120 e os 150 dias", tal como
previsto actualmente no CT. É possível que haja qualquer
justificação, mas isto é o que se retira da
comparação estrita entre a proposta e a versão em vigor do
CT.
O que acha que decorre de todas estas alterações?
O que visará o Governo com estas mudanças?
O que fará o PS com esta lei?
09/Julho/2018
Ver também:
Contra o Acordo Laboral do Governo PS
[*]
Economista.
O original encontra-se em
ladroesdebicicletas.blogspot.com/2018/07/pormenores-tramados.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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