Crítica do socialismo pequeno-burguês
Algumas das
teses
que o Bloco de Esquerda aprovou na sua
última Convenção Nacional em 2003 (citadas entre aspas e em
itálico) e princípios mínimos de orientação
política revolucionária.
I -
"O século XXI está a ser inaugurado a ferro e fogo pela
guerra, mas também por uma nova fractura que marca a entrada do Povo do
mundo na política global
O Bloco de Esquerda (BE), na resolução política da sua
convenção nacional de 2003, procura convencer-nos que Bush,
Rumsfeld e Wolfowitz realizaram um
putsch
e estão a impor um "poder mundial sem regras nem
regulação". O que é preciso é um Estado
'democrático' e legítimo que deixe uma certa pequena-burguesia e
alguns intelectuais possam readquirir o seu direito consuetudinário a um
lugar, perdido na última vaga de rearranjo do bloco no poder, no
aparelho de Estado. A esses guerreiros de Washington, que não cumprem a
legalidade, que recusam o Tribunal Penal Internacional, que ditam a
"vontade imperial de um mundo sem lei", há que responder com a
defesa do direito internacional, do desenvolvimento sustentável e dos
Direitos Humanos (como o direito à propriedade; o direito ao trabalho,
dixit,
a ser explorado; o direito à liberdade religiosa, quer dizer, a ser
alienado). Portanto, o Bloco espera poder controlar o imperialismo
através da lei ... que o próprio imperialismo criou!! Na verdade,
este pacifismo diplomático entre as grandes potências é um
libelo a uma nova espécie de ultra-imperialismo que faria de Kautsky um
revolucionário!
II -
"O capitalismo neo-liberal é hoje o capitalismo realmente
existente. A guerra como projecção de força imperial
só pode ser compreendida como suporte da globalização
neo-liberal. Esta é a segunda grande mudança que estrutura o
nosso mundo"
O imperialismo USA acabou com os acordos de Bretton Woods o que desestabilizou
"as políticas económicas dos governos no quadro de cada
Estado-Nação". Então, o sistema entrou numa crise de
lucratividade na extracção de valor e passou a privilegiar a
burguesia financeira parasita, ao passo que a burguesia industrial e sua
congénere aliada da pequena-burguesia intelectual são
destronadas. O problema para o Bloco é o mercado livre, não a
existência de trabalho assalariado; o problema para o Bloco não
é o Estado, mas a passagem de serviços públicos para a
esfera privada, tidos como um suporte democrático pleno.
Por outro lado, a "Nova Europa" é péssima porque tem
ocorrido um "alinhamento subordinado da União Europeia aos
desígnios imperiais da administração
norte-americana". Há que defender a autonomização da
Europa, afirmam. Por outras palavras, venha então a Europa para se
juntar à pilhagem e ao devastar da periferia! Portanto, a Europa tem
é de demonstrar a sua veia civilizadora, adoptar a Taxa Tobin e impor
uma exploração da força de trabalho com mais direitos!
Sobre a propalada e actual "regressão civilizacional" a ser
corrigida, o Império Britânico e as duas guerras mundiais atestam
esse amor do capital europeu pela pessoa humana e pela paz. Quanto à
Taxa Tobin, ela só demonstra a fidelidade da camarilha bloquista ao
keynesianismo, ao proporem o controlo dos capitais provenientes das
transacções cambiais, porque senão a bolha financeira
rebenta, as crises estalam, o proletariado sai à rua e... A
concepção bloquista da UE é tão
revolucionária que omite o perigo da criação de um
exército europeu!!
III
- "O movimento por uma globalização alternativa tem
representado a única resposta mundial ao neo-liberalismo armado. Um novo
protagonista social e político nasceu e com ele, a política deixa
de correr para o centro e para a direita."
Que o povo global não passa de um sarrabisco de uma sociedade ideal em
que empresários, gestores e operários viverão felizes para
sempre e serão explorados (ou vão explorar) com os mesmos
direitos como cidadãos de corpo inteiro, disso já
sabíamos. O que ficamos a saber é que a "heterogeneidade
[que é nenhum mal em si] do movimento não o subordina a nenhum
comando político nem a uma qualquer hierarquização
táctica", o que demonstra, pelo menos, duas coisas: 1) o abandono
da primazia da luta de classes, de acordo com a equiparação entre
a luta operária (mesmo que reformista) e a luta pela
legalização da maconha; 2) a rejeição de um partido
proletário que coordene política e ideologicamente um movimento
social amplo.
IV -
"De 1960 até hoje, Portugal mudou muito e muito depressa, tornando
o país irreconhecível. Essa transformação social
foi profunda mas não superou atrasos históricos decisivos: apenas
os transportou no tempo".
Muito resumidamente, o Bloco diz que Portugal é um país em crise
apenas porque ganhamos pouco, o analfabetismo grassa nas massas e a estrutura
de classes portuguesa ainda não se modernizou (as classes médias
gestores e supervisores qualificados, segundo a terminologia do Bloco,
têm crescido mas não o suficiente). A questão é que
estes rebeldes bloquistas esquecem que Portugal sofre os efeitos da lei do
valor mundializado que submete o desenvolvimento da periferia aos objectivos de
acumulação do centro, acabam por não colocar nada disto em
causa, ocultando que esta polarização da riqueza à escala
mundial é que é a obreira do atraso português e não
era um governo Sócrates + Louçã que ia dar a volta a isto.
Há ainda uma nota deliciosa nesta tese. Então não é
que o "proletariado industrial constitui uma grande minoria da massa dos
trabalhadores"! Segundo os próprios Censos 2001 (que nem sequer
consideram os operários dos transportes ou vários
proletários intelectuais ligados às novas tecnologias como...
operários, já para não falar dos desempregados ou dos
milhares de imigrantes ilegais) os operários industriais andavam
à volta dos 30% da população empregada portuguesa. Daqui a
ser uma grande minoria há uma grande diferença!
V -
O Bloco de Esquerda bate-se por uma plataforma de convergência das
oposições e da luta social opondo à
modernização conservadora uma política de
modernização democrática capaz de ganhar a maioria do
país
O que é preciso é uma política de esquerda, que junte os
cidadãos honestos, que se comprometam com a edificação de
uma democracia social elementar! Nada de lutar contra a
exploração e para que os trabalhadores tomem em suas mãos
os meios de produção e todo um conjunto de saberes
técnicos e sociais de controlo das formas de produção da
existência humana. Dizem-nos, temos é de modernizar, estabelecer o
pleno emprego e ampliar os serviços não-mercantis ao dispor
de todos os cidadãos. Por outras palavras, estamos perante uma
política de vistas curtas e de conciliação de classes, em
que a palavra é dada ao proletariado para poder ser explorado com mais
qualificações e pague menos na conta do telefone! De facto, para
iludir os trabalhadores e ajudar à venda da força de trabalho no
mercado a um preço ligeiramente superior, nada melhor do que uma
política de esquerda socialista moderna!
VI -
Em Janeiro de 2000, o BE assumiu estatutariamente a sua
condição de movimento político plural empenhado na
perspectiva do socialismo como expressão da luta emancipatória da
Humanidade contra a exploração e a opressão.
Claro que o BE tem de manter uma certa verborreia pseudo-radical como o uso de
expressões a organização da produção
pelos próprios produtores ou o socialismo propõe
assim uma ruptura com a civilização capitalista. Não
sei se isto é escrito em ordem a manter qualquer tipo de rituais
salvíficos de louvor religioso ao socialismo por quem há muito
mudou da cruz e do martelo para o cifrão, ou se é para continuar
a semear ilusões nos militantes ou em marxistas sem porto
partidário. O certo é que o socialismo do BE é o
programa de redistribuição de oportunidades e de recursos que
é a base da devolução do poder à democracia.
Desconstruindo isto, vemos que o capitalismo é mau porque o mercado
promove desigualdades de oportunidades e de acesso a alguns bens (estas parecem
mais umas considerações políticas de Weber sobre a
democracia burguesa do que proposições de quem se afirma
marxista, até porque identifica capitalismo com mercado, que é o
discurso oficial da burguesia triunfante). Ora, esta é uma
análise no plano fetichista da troca, do capitalista que compra a
força de trabalho do operário, que a deve vender nas mesmas
condições com que o outro a compra. Sobre o plano decisivo da
produção desapropriação dos meios de
trabalho e, por conseguinte, do respectivo produto do trabalho nada! Por
outro lado, sobre poder operário, derrube da burguesia ou
revolução socialista, nem uma linha!
O socialismo define-se assim como processo e estratégia de
desenvolvimento de uma sociedade orgânica e politicamente plural, que
defende a liberdade de expressão e de organização
pluripartidária e que será democrática ou não
será socialista.
O socialismo para o BE é, assim, construído a partir de
categorias burguesas (multipartidarismo, liberdade de expressão,
sociedade orgânica e plural...). Contudo, o socialismo não
é uma mera questão da expressão multifacetada de
tendências partidárias em luta pelas prebendas que o Estado
oferece, mas a destruição do aparelho de Estado burguês e
sua substituição por um sistema de conselhos operários,
que para além de órgãos de poder político
proletário (portanto completamente excludentes de qualquer tipo de
acção política por parte da burguesia), terão de
recusar essa concepção da sociedade orgânica. Quer dizer, a
superação da divisão técnica e social do trabalho
é um imperativo necessário para que os caminhos da
emancipação humana sejam desbravados!
É isto o socialismo ou não será nada!
VII -
O Bloco tem respondido às exigências de uma luta
política intensa, ganhou confiança e protagonismo e
começou a construir a sua intervenção social.
O mesmo é dizer que o Bloco mais não é do que uma corrente
de proposta e melhoria da sociedade burguesa, não constituindo qualquer
alternativa a que os trabalhadores devam dar crédito algum! Isto porque:
1) não há uma crítica
do
Estado, mas apenas a algumas das suas perversões que o BE nem sequer
considera intrínsecas ao sistema, mas como anomalias a serem corrigidas
pelo próprio Estado burguês; 2) não há uma
condenação do trabalho assalariado, fruto da divisão do
trabalho e da propriedade privada, mas apenas se apresentam medidas de melhoria
das condições de venda da força de trabalho no mercado; 3)
não há um esboço que seja da construção de
um partido revolucionário capaz de organizar politicamente a classe
operária contra o Estado; 4) a luta de classes e a teoria da
acção revolucionária perdem a sua centralidade a favor de
um movimento de cidadãos = omissão dos antagonismos de classe.
[*]
Estudante de Sociologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O
autor agradece o envio de opiniões, comentários ou
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