Tempo de barbárie e luta
por Cristina Nogueira
[*]
Apresentar uma obra não é fácil. Sobretudo quando aquela
que a apresenta não tem outros créditos para além de ser
uma leitora atenta dos escritos do autor. Ainda se torna mais difícil se
o que une a apresentadora ao autor para além da amizade é uma
enorme admiração.
Obra e autor são indissociáveis, e neste livro o Miguel
transparece como o grande pensador que é, profundo conhecedor dos
problemas da América Latina, do Médio Oriente e com uma
reflexão acutilante sobre o caminhar da história e sobre o mundo
em que vivemos neste século XXI. Um mundo de profunda crise do
capitalismo, que o autor caracteriza, clarifica, esclarece e interpreta sempre
com a certeza inabalável de que existe uma outra alternativa: o
socialismo. "Um socialismo de contornos ainda imprevisíveis, sem um
figurino único, que será o desfecho da luta dos povos", como
refere o autor na introdução a este livro.
É comum o Miguel ser apresentado como jornalista, direi mesmo como um
grande jornalista, e de facto dedicou grande parte da sua vida ao trabalho
jornalístico quer no Brasil, onde foi editorialista de
O Estado de S. Paulo,
quer em Portugal onde dirigiu o jornal
O Diário
que ainda hoje é "a verdade a que temos direito" que tanta
falta nos faz, mas o Miguel chegou-me a dizer que "não se sente
jornalista" e eu considero que apesar de o jornalismo dever muito ao
Miguel ele é muito mais do que um simples jornalista. O Miguel é
um homem que pela sua cultura e pela reflexão sistemática dos
problemas da Humanidade, pelo conhecimento da história, da geografia, da
filosofia, da sociologia é acima de tudo um pensador. Um pensador
revolucionário. Alguém, cuja reflexão sobre o mundo
contemporâneo é fundamental para compreendermos a
situação actual de crise do capitalismo que atravessamos e os
caminhos que se lhe poderão seguir.
A obra do Miguel é vasta e acima de tudo heterogénea. O ensaio, o
romance, o conto, os artigos e as crónicas. Julgo que apenas não
se aventurou a escrever teatro ou poesia, apesar de muito do que escreve ter
laivos poéticos. Neste livro o autor selecciona um conjunto vasto de
artigos e comunicações que ao longo dos últimos dez anos
publicou nas revistas on-line resistir.info e odiario.info, no jornal
Avante!
e na revista
O Militante
e comunicações apresentadas em Seminários e
Conferências Internacionais, nos Fóruns Sociais Mundial, Europeu e
Português e nos Encontros de Serpa.
Lendo "Tempo de Barbárie e Luta" ficamos com um retrato do
mundo nestes últimos dez anos. O início do século XXI
está aqui plasmado com a interpretação do autor sobre a
situação que se vive em locais tão distantes do planeta
como o Chile, a Venezuela, a Colômbia, o Brasil, a Grécia ou o
Líbano. Iluminando a história, que ao longo dos anos tem sido
reescrita e falsificada de acordo com os interesses hegemónicos, o
Miguel torna legível aspectos das transformações na
América Latina, das guerras de agressão no Médio Oriente,
do papel que os Estados Unidos da América assumem hoje no mundo, que o
autor não tem dúvidas em apelidar de IV Reich, da
revolução russa ou da revolução cubana, das
transformações revolucionárias no Chile de Allende, da
revolução bolivariana, ou das transformações que
ocorreram em vários partidos comunistas europeus ao longo da
última década. Vários são os textos onde o autor
analisa e interpreta a crise estrutural do capitalismo que estamos vivendo e
que levará à sua morte ou à destruição da
civilização e por várias vezes coloca a velha
questão de Lenine "Que fazer?".
Neste conjunto de textos surgem alguns retratos de Homens que cruzaram a vida
do autor e que a marcaram: Schafik Handal revolucionário da Frente
Farabundo Martí de Libertação Nacional, Manuel Marulanda,
comandante revolucionário e fundador das FARC e Jorge Briceño
comandante das FARC recentemente assassinado pelo regime colombiano. Deste
conjunto de retratos destaco dois: o de Álvaro Cunhal com quem o Miguel
trabalhou durante largos anos e que define como uma personagem
irrepetível que tinha a marca do diferente sem que para isso fizesse o
menor esforço e Vasco Gonçalves com quem o autor cimentou uma
relação de profunda amizade.
Se me pedissem para em apenas duas palavras caracterizar este livro do Miguel
diria: coerência e lucidez. Coerência porque ao longo de dez anos
e, apesar de o autor nos advertir para o facto de o pensamento não ser
estático e de se ter transformado no caminhar pela vida, podemos
encontrar nestes textos, que percorrem uma década, uma fidelidade aos
princípios que abraçou e à leitura que faz do mundo e da
vida. Aliás, só com uma grande coerência é
possível publicar hoje textos com dez anos. Não é por
certo difícil a qualquer um de nós imaginar algumas pessoas que
não publicariam hoje aquilo que disseram ou escreveram há dez
dias quanto mais há dez anos. E lucidez porque o Miguel é uma das
poucas pessoas que tem o condão de tornar transparente o opaco e de com
uma linguagem simples e cristalina tornar aparentemente claros problemas e
questões extremamente complexas. Sem dar respostas, mas apelando
à reflexão do leitor, o Miguel é capaz de, eliminando o
acessório, colocar em questão aquilo que é de facto
pertinente. Elimina o ruído e desoculta aspectos da realidade
aparentemente abafados no bulício que nos sufoca.
Talvez seja esta coerência e esta lucidez que tem provocado tantas
inimizades, mas também tantas amizades ao autor.
Este é também um livro de esperança. Desmascarando a
inexistência de democracia e considerando que nos 15 países da
Europa Ocidental impera um regime que na prática é uma ditadura
da burguesia com fachada democrática, afirmando que apenas os povos como
sujeitos da história podem, através da luta, criar as
condições indispensáveis à alteração
da relação de forças, o autor tem uma firme
confiança, que lhe advém do conhecimento, nomeadamente da obra de
Marx e Lénin, num outro mundo possível. Considerando que a
construção desde novo mundo possível, o socialismo
não será fácil e muito menos rápido e que
não é através do aparelho de Estado numa sociedade
capitalista, que será possível efectuar reformas
incompatíveis com a lógica dos sistema, não deixa de
salientar que:
"O compromisso de um revolucionário, sobretudo de um comunista,
não implica ser contemporâneo das transformações
revolucionárias pelas quais vive e luta. A vitória dos seus
ideais pode ser posterior à sua morte. Ou ser adiada durante muitas
gerações.
O inadmissível é o desalento, a capitulação numa
época como a nossa de crise civilizacional e que um sistema monstruoso,
o capitalismo globalizado, configura ameaça à própria
sobrevivência da humanidade" (p.97).
"Tempo de Barbárie e Luta" deve ser lido por todos aqueles que
queiram compreender o mundo em que vivem e as intensas
transformações que têm vindo a ocorrer. Deve ser lido por
todos aqueles que querem saber a verdade. Deve ser lido por todos aqueles que
consideram inadmissível o desalento e querem transformar o mundo em que
vivem. Deve ser lido por todos aqueles que estão convictos da derrota do
capitalismo. Deve ser lido por todos aqueles que, tal como Jean Salem, autor
citado pelo Miguel sabem que "Vivemos o fim de uma época. Confiamos
na humanidade. Sabemos que alguma coisa vai chegar. Mas não sabemos o
que é" (p.188)
Obrigada Miguel por este livro! Esperamos por mais...
[*]
Historiadora, autora de
"Vidas na clandestinidade"
. Apresentação feita no Clube Literário do Porto em 28/Junho/2011.
Esta apresentação encontra-se em
http://resistir.info/
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