Uma pitada de liberdade
por John Pilger
Compridas ruas brancas, gélidas, calcetadas de calcário, com
tufos de erva petrificada, conduzem até à montanha sagrada
Illimani, cuja pirâmide de neve se assemelha a uma torre de vigia. Quando
vim à Bolívia pela primeira vez, era ainda um jovem
repórter, quase não havia vida aqui apenas o aeroporto
gelado e a sua convidativa tenda de oxigénio; hoje vive quase um
milhão de pessoas em El Alto, a cidade mais alta do mundo, uma
criação do capitalismo moderno.
El Alto é um símbolo da América Latina de hoje, assim como
Cerro Rico é um símbolo do passado. Cerro Rico, uma colina quase
maciça de prata, foi explorada por trabalho escravo e serviu para
financiar o império espanhol durante três séculos. Estes
dois locais estão situados no país mais pobre de um continente de
225 milhões de habitantes, metade dos quais são pobres. A
escravidão do endividamento ainda existe ocultamente na Bolívia,
cuja colina de prata passou agora para segundo lugar em relação
aos outros tesouros naturais do gás e da água. Cheguei a El Alto
de manhã muito cedo. Por entre os rolos de nevoeiro, as estradas
iluminadas pelo luar estavam desertas à excepção das
silhuetas de homens encolhidos, balançando-se no meio do frio,
encostados às portas, à espera, esperançados, do primeiro
leilão de trabalho da manhã.
A Bolívia foi o segundo país, a seguir ao Chile, a servir de
laboratório ao "neoliberalismo", o palavrão para
capitalismo puro, na sua forma hobbesiana. O economista de Harvard, Jeffrey
Sachs, concebeu a "terapia de choque" que o FMI e o Banco Mundial
aplicaram na Bolívia, acrescentando mais uma dimensão de pobreza
e sofrimento. Com a privatização das minas, a prata acabou por
entrar em queda, e os mineiros e suas famílias rumaram para La Paz,
instalando-se na planície inóspita em El Alto, trezentos metros
acima da capital, sem água, sem energia e com pouca comida. Os
agricultores expoliados das suas terras pelos ditames do FMI foram atrás
deles, e a sua imigração em massa foi idêntica à de
milhões afastados do trabalho certo pelos gestores estrangeiros do
"consenso de Washington", um fanatismo concebido em Bretton Woods em
1944 como uma ferramenta do império. (Sachs considera-se um liberal e
é mentor do idiota Bono, do Live Aid e de outras celebridades).
Até agora, todos os presidentes recentes da Bolívia têm
sido homens brancos, ricos que governaram o país no interesse duma
pequena minoria abastada. Os grandes latifundiários controlam as terras
baixas em torno de Santa Cruz, fazendo lembrar os seus iguais na África
do Sul. A maioria indígena pre-Inca eram os "pretos" que eram
politicamente invisíveis, com excepção dos trabalhadores
esporadicamente conflituosos, principalmente os mineiros. O povo mascava folhas
de coca para afugentar a fome, muitos morriam antes de chegar à meia
idade e os seus filhos eram retardados. "A minha mãe matou-se a
trabalhar numa grande propriedade perto de Santa Cruz", disse-me um
camponês. "Se fosse apanhada a aprender a ler, era castigada
severamente".
O penúltimo presidente, Sánchez de Lozada, multimilionário
dono de uma mina, hoje exilado em Maryland, cresceu nos Estados Unidos e falava
melhor inglês do que espanhol. Era conhecido por "El Gringo".
Colaborando com o FMI e vendendo ao desbarato o gás e a água do
país às multinacionais brasileiras, americanas e europeias,
cumpriu o seu papel, tal como tantos presidentes latino-americanos, de vice-rei
de Washington. Na verdade, a observação insolente de Richard
Nixon sobre a América Latina "As pessoas estão-se nas
tintas para essa terra" estava completamente errada; o
desígnio imperial da América estava inscrito nas vidas das
populações nos seus "quintais".
No ano passado, entrevistei Pablo Solón, filho do
grande muralista boliviano Walter Solón
, numa sala extraordinária coberta pelas
pinceladas épicas do pai dele. Mais viscerais do que as imagens da
revolução mexicana de Diego Rivera, as imagens da
injustiça agridem-nos; a manipulação bárbara das
vidas das pessoas não passará, dizem-nos. Pablo Solón,
hoje conselheiro do governo de Evo Morales, disse: "A história da
Bolívia não é diferente de tantos outro países
ricos de recursos onde a maioria da população é muito
pobre. É a história de um governo por detrás do governo e
do que a embaixada americana permite, pois que é nesta
construção que está a verdadeira origem do poder neste
país. Os EUA não têm aqui grandes investimentos; o que eles
temem é outro Chávez; não querem que o "mau
exemplo" se espalhe até ao Equador e para mais longe ainda
até à Nigéria, que podia ser levada a lançar
impostos sobre as companhias petrolíferas como nunca antes aconteceu.
Para os EUA, qualquer solução genuína para a pobreza
cheira a complicações".
"Quanto custaria resolver o problema da pobreza na Bolívia?"
perguntei.
"Mil milhões de dólares; não é nada. Mas o que
conta é o exemplo, essa é que é a ameaça".
Saí de El Alto com Juan Delfín, um diácono
indígena, motorista de táxi e artista, que falava dos
conquistadores como se ainda se lembrasse deles. Esta é uma sociedade
onde está presente um milénio e meio de história e a sua
subjugação e empobrecimento são encarados com raiva. Ao
aproximarmo-nos de illimani, desenhou-se um cemitério no horizonte. Do
outro lado da estrada havia uma pequena colina, não de prata, mas de
imundícies: um inferno nojento, fumegante, ácido, de lixo e
cães mortos, de porcos selvagens e mulheres com os seus chapéus
tradicionais a escavar com picaretas à procura de alguma coisa, de
qualquer coisa. "Isto é o símbolo da forma como vivemos e
que rejeitamos", disse Delfín.
Levou-me até uma placa com os nomes de 24 pessoas mortas a tiro pelo
exército em Outubro de 2003, quando de Lozada tentou impedir a
população de El Alto de descer até La Paz para protestar
contra a venda do gás. Juan Delfín estabeleceu a
ligação entre estas sepulturas e as fileiras de sepulturas
normais, muitas delas de crianças, "que também morreram
violentamente, de pobreza". Um pastorinho surgiu por detrás de um
monte de pedras onde vivia, parecendo pequeno demais para a idade.
Depois de de Lozada ser corrido da Bolívia, o seu sucessor Carlos Mesa
capitulou perante as exigências dos movimentos sociais, como a
Federação das Comissões dos Subúrbios de El Alto.
Isto é um fenómeno novo na América Latina; o Movimento dos
Sem Terra no Brasil é o mais conhecido, mas o mais eficaz,
politicamente, é o da Bolívia. Durante mais de cinco anos, os
movimentos envolveram quase toda a população da cidade de
Cochabamba aquando da sua "guerra pela água" contra um
consórcio estrangeiro liderado por uma subsidiária da
multinacional americana Bechtel, a quem de Lozada entregara o abastecimento
público de água à cidade, levando a que as facturas da
água consumissem um terço das magras receitas. Até o
direito de recolher as águas da chuva pertencia à Bechtel. Com
uma receita anual de mais de 17 mil milhões de dólares, o poder
desta companhia é tão grande que ela aspirou e conseguiu (sem
qualquer concurso) o contrato de reconstruir a cidadela americana no Iraque
ocupado. No entanto, não só a Bechtel foi corrida da
Bolívia em 2000, seguida de perto pelo seu mentor de Lozada, como esta
companhia desistiu agora da sua acção de
indemnização contra o governo. Foi uma vitória de alto
significado, porque avisa as outras multinacionais na Bolívia (como a
British Gas) de que, mesmo que o governo esteja preparado para enfrentar a ira
da população, os movimentos não estão.
É também um aviso para Evo Morales, cuja vitória eleitoral
em Dezembro se mantém aqui altamente simbólica. Neste momento,
pela primeira vez é um indígena que chefia a Bolívia; as
coloridas bandeiras pre-Incas estão hasteadas orgulhosamente por todo o
lado. "Nós nunca pedimos eleições", disse Oscar
Olivera, o dirigente sindicalista de Cochabamba que liderou a revolta
anti-Bechtel. "O que os movimentos sociais precisam de fazer agora
é continuar a unir as forças populares, para reforçar a
nossa capacidade de pressionar qualquer governo que vier. Um governo de Morales
será menos difícil de amar, mas continuará a ser
difícil".
Ao contrário da sua caricatura no exterior um antigo embaixador
americano na Bolívia comparou Morales a Osama Bin Laden e o seu partido
(MAS) a um Taliban andino "Evo", como é aqui conhecido,
não é um "radical", pelo menos por enquanto. O seu
anúncio teatral da "nacionalização" em 1 de Maio
não significa uma expropriação, e ele tornou claro que as
multinacionais não vão perder quaisquer direitos. O que
vão perder é a sua grotesca parte de lucros e benefícios;
agora vão ter que pagar preços de mercado reais pelo gás
da Bolívia, juntamente com uma adequada taxa de impostos. O seu
vice-presidente, Álvaro Garcia Linera, disse "o capitalismo vai
durar mais 50 anos na Bolívia". Antes das eleições,
disse-me: "Num país pequeno como a Bolívia, não
podemos ser heróis".
Mas tem havido muitos heróis, no bloqueio de Cochabamba, na
movimentação da população de El Alto para La Paz,
enfrentando as balas e expulsando o presidente gringo. Em consequência do
novo espírito na América Latina, talvez que os bolivianos e os
venezuelanos se tenham aproximado duma verdadeira mudança
revolucionária. O contraste está no "esquerdista" Luiz
Inácio Lula da Silva no Brasil, que concordou com as
condições do FMI ainda antes de assumir o cargo e que distribuiu
menos terras do que o seu antecessor de direita.
O simpático Evo está a ser observado sobretudo pelo seu
próprio povo, mas também pelos americanos, o "governo por
detrás do governo". Se Washington não conseguir
"lobotimizá-lo" (como aconteceu com Jean-Bertrand Aristide no
Haiti), é provável que se inicie um movimento separatista no
cerne dos latifundiários de Santa Cruz, onde está o gás e
onde o governo prometeu redistribuir as terras não cultivadas. A
Bolívia, tal como a Venezuela, provou uma pitada de liberdade e pede o
nosso apoio.
25/Maio/2006
O original encontra-se em
http://www.zmag.org/sustainers/content/2006-05/25pilger.cfm
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Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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