Austrália:
Novos roubos de terras sob a cobertura de mitos racistas

por John Pilger

Com os seus bancos assegurados ao calor da Primavera do Hemisfério Sul, a Austrália não é notícia. Um escândalo gigantesco de racismo, injustiça e brutalidade está a ser escondido à maneira do apartheid da África do Sul. Muitos australianos conspiram neste silêncio, esperando nunca terem de reflectir sobre a verdade acerca dos untermenschen [1] da sua sociedade, o povo aborígene.

Os factos não estão em disputa. Milhares de negros australianos nunca chegam aos 40 anos de idade. Uma doença perfeitamente evitável, o tracoma ou conjuntivite granulosa, cega as crianças negras, enquanto epidemias de febre reumática devastam as suas comunidades. O suicídio entre a juventude em desespero é comum. Nenhum outro país desenvolvido tem um tal registo. Um mito generalizado entre brancos, que os aborígenes parasitam o estado, serve para esconder a vergonha que é o governo federal dizer que usa dinheiro nos assuntos indígenas, quando na verdade o usa para opor-se aos direitos dos nativos à terra. Em 2006, perto de 3 mil milhões de dólares australianos foram sub-utilizados "ou resultaram de contabilidade criativa", relatou o Sidney Morning Herald. Tal como as crianças do apartheid, os jovens aborígenes de Thamarrurr, no Território Norte, receberam menos da metade dos recursos educativos atribuídos a crianças brancas.

Em 2005, o Comité para a Eliminação da Discriminação Racial das Nações Unidas descreveu o racismo do estado australiano, NOVAMENTE uma distinção não concedida a nenhum outro país desenvolvido. Isto ocorreu durante o governo que perdura há uma década da coligação conservadora de John Howard, cuja seita de académicos e jornalistas da supremacia branca atacou a verdade do genocídio documentado na Austrália, em particular as terríveis separações de crianças aborígenes das suas famílias. Usaram argumentos similares àqueles usados por David Irving para promover a negação do Holocausto.

Calúnias dos media a anteceder uma nova onda de repressão são já algo familiar para os australianos negros. Em 2006, o programa líder de audiências de assuntos correntes da Australian Broadcasting Corporation, Lateline, difundiu chocantes alegações de "escravatura sexual" dentro do povo Mutitjulu no Território Norte. A fonte do programa, descrita como um "jovem trabalhador anónimo" revelou-se mais tarde ser um funcionário do governo federal cujas "provas" foram desacreditadas pelo primeiro-ministro do Território Norte (este território sub-nacional tem um governo próprio) e pela polícia. A ABC nunca se retractou das alegações, afirmando que fora "absolvida por um inquérito interno". Pouco antes das eleições do ano passado, Howard declarou uma "emergência nacional" e enviou o exército ao Território Norte para "proteger as crianças" que, disse o seu ministro dos assuntos indígenas, estavam a sofrer abusos em "números inimagináveis".

Em Fevereiro passado, com muita fanfarra sentimental, o novo primeiro-ministro trabalhista, Kevin Rudd, formulou um pedido formal de desculpas aos primeiros australianos. Disse-se que a Austrália estava finalmente a reconhecer o seu predatório passado e presente. Estaria mesmo? "O governo Rudd", notou um editorial do Sidney Morning Herald , "rapidamente procurou limpar estes destroços políticos de modo a responder às necessidades emocionais de alguns dos seus apoiantes, mas no entanto nada mudou. É uma manobra ardilosa".

Em Maio, as pouco difundidas estatísticas do governo revelaram que das 7433 crianças aborígenes examinadas por médicos na sequência da "emergência nacional", 39 foram apontadas às autoridades como suspeitas de sofrer abusos. Dessas, um máximo de apenas 4 possíveis casos de abuso foram identificados. Eram esses os "números inimagináveis". Pouco diferentes são dos abusos de crianças na Austrália branca. O que foi diferente foi que nenhuns soldados invadiram os subúrbios à beira da praia, os pais brancos não foram afastados à força, a segurança social branca não foi posta em "quarentena". Marion Scrymgour, um ministro aborígene do governo do Território Norte disse "Ver pais [aborígenes] decentes e carinhosos, tios, irmãos e avôs, que são indubitavelmente inocentes das terríveis acusações, sendo violentamente arrebanhados, reduzidos ao desespero e às lágrimas, parece-me provocar danos sociais generalizados".

O que os médicos descobriram já sabiam – crianças em risco devido ao espectro da pobreza extrema e à negação de recursos num dos países mais ricos do mundo. Tendo deixado cair algumas migalhas, Kevin Rudd recomeça onde Howard parou. O seu ministro dos assuntos indígenas, Jenny Mackie, ameaça retirar apoio governamental a comunidades remotas que sejam "economicamente inviáveis". O Território Norte é a única região onde os aborígenes têm amplos direitos à terra, concedidos quase por acidente há 30 anos. Aqui encontram-se alguns dos maiores depósitos de urânio do mundo. Camberra quer extraí-los e vendê-los.

Governos estrangeiros, em particular os EUA, querem que o Território Norte sirva como lixeira tóxica. As linhas de ferro de Adelaide a Darwin, que correm adjacentes à Barragem Olímpica, a maior mina de urânio do mundo, foram construídas com a ajuda da Kellog, Brown & Root, uma subsidiária da gigante americana Halliburton, a alma mater de Dick Cheney, o "compadre" de Howard. O roubo de terras pertencentes à área tribal aborígene nada tem a ver com o abuso de crianças, afirma a cientista australiana Helen Caldicott, "mas tudo a ver com a abertura de minas de urânio a céu aberto e a conversão do Território Norte numa lixeira nuclear global."

O que é único na Austrália não é a sua sociedade multicultural, soalheira, estendida à beira mar, mas o seu povo original, o mais antigo da Terra, cuja habilidade e coragem para sobreviver à invasão, da qual os actuais ataques são apenas a última expressão, merece o apoio da Humanidade.

24/Outubro/2008

[1] Sub-homens, expressão utilizada pelos nazis alemães para designar os que consideravam como raças inferiores.

O original encontra-se em http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=507 . Traduzido por João Camargo.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
02/Nov/08