A marchar pelo Anzac no 51º estado dos EUA
A rua em que me criei em Sydney era guerreira. Havia longos silêncios,
então o estilhaçar de vidro e gritos. Peter e eu
brincávamos de australianos e japoneses. O pai de Pedro era objecto de
assombro. Ele mal pesava 45 kg, era sacudido pela malária e muitas vezes
ficava demente. Sentava-se numa cadeira de vime, embriagado, cortando o ar com
a espada de um soldado japonês que dizia ter matado. Havia uma mulher que
esvoaçava de sala em sala, sempre com os olhos vermelhos e atemorizante,
parecia. Ela era como muitas mães naquela rua. Wally, outro companheiro,
vivia numa casa que estava sempre escura porque as cortinas de black-out
não haviam sido retiradas. O seu pai havia sido "morto pelos
japs". Certa vez, quando a mãe de Wally voltou para casa, ela
descobriu que ele havia obtido uma arma, posto na boca e explodido a
cabeça. Era uma rua guerreira.
Os insidiosos, impiedosos e perduráveis danos da guerra ensinaram muitos
de nós a reconhecer a diferença entre o simbolismo vazio da
guerra e o seu significado real. "Será que isso importa?",
zombou o poeta
Siegfried Sassoon
no fim de uma carnificina anterior, em 1918, quando sofreu a morte do seu
irmão mais jovem em
Gallipoli
. Criei-me com esse nome, Gallipoli. O assalto britânico aos Dardanelos
turcos fora um
dos crimes graves da guerra imperial, provocando 392 mil mortos e feridos de
todos os lados. As perdas australianas e neo-zelandesas estiveram entre as mais
elevadas, proporcionalmente; e o dia 25 de Abril de 1915 foi declarado
não apenas um dia a recordar como o do "nascimento da
nação australiana". Isto baseava-se na crença de
militaristas eduardianos de que os homens se faziam na guerra, um absurdo
prestes a ser celebrado mais uma vez.
O
Anzac Day
foi apropriado por aqueles que manipulam o culto da violência de estado
o militarismo para satisfazer uma deferência
psicopática à potência estrangeira e para atingirem os seus
objectivos. E a "lenda" ignora a única guerra combatida em
solo australiano: aquela do povo aborígene contra os invasores
europeus.
Numa terra de monumentos fúnebres, nem um foi erigido para eles.
Os modernos amantes da guerra não conheceram qualquer rua de gritos e
desespero. O seu abuso da nossa memória dos caídos, e de porque
caíram, pode ser comum entre todos os serviçais da potência
rapinante, mas a Austrália é um caso especial. Nenhum país
está mais seguro no seu remoto distanciamento estratégico e com a
riqueza dos seus recursos, mas nenhuma outra elite ocidental é mais
ansiosa em falar de guerra e procurar "protecção"
imperial.
O orçamento militar da Austrália é de A$32 mil
milhões por ano [23,63 mil milhões/ano], um dos mais altos
do mundo. O valor de menos de dois meses deste belicismo desenfreado
pagaria a reconstrução do estado de
Queensland após as suas inundações catastróficas,
mas nem um centavo está para vir. Em Julho, as mesmas frágeis
planícies inundadas serão invadidas por uma força militar
conjunta EUA-Austrália, disparando mísseis guiados por laser,
lançando bombas e arruinando o ambiente e a vida marinha. Isto raramente
é informado. Rupert Murdoch contra 70 por cento da imprensa da capital e
a sua visão do mundo é amplamente partilhadas pelos media
australianos.
Num telegrama de 2009 divulgado pelo WikiLeaks, o então
primeiro-ministro, Kevin Rudd, o qual agora é ministro dos
Negócios Estrangeiros, implora aos americanos para "aplicar
força" contra a China se Pequim não fizer como lhe disseram
para fazer. Um outro líder do Partido Trabalhista, Kim Beazley, ofereceu
secretamente tropas australianas para um ataque à China a partir de
Formosa. Na década de 1960, o primeiro-ministro Robert Menzies mentiu ao
dizer que havia recebido um pedido de tropas australianas do regime criado
pelos americanos em Saigon.
Desatentos, os australianos disseram adeus a um vasto exército
recrutado, do qual quase 3000 foram mortos ou feridos.
As primeiras tropas australianas foram dirigidas pela CIA em
"equipes negras" esquadrões de assassinato. Quando o
governo em Canberra fez uma rara queixa a Washington de que os britânicos
sabiam mais do que eles acerca dos objectivos da guerra da América no
Vietname, o conselheiro de segurança nacional dos EUA, McGeorge Bundy,
respondeu: "Temos de informar os britânicos a fim de mantê-los
ao
lado. A Austrália está connosco aconteça o que
acontecer". Como me disse certa vez um soldado australiano:
"Nós somos para os ianques o que os gurkas são para os
britânicos. Somos mercenários excepto no nome".
O WikiLeaks revelou o papel americano o "golpe" de Canberra em 2010
contra Rudd por Julia Gillard. Louvada nos telegramas americanos como uma
"estrela em ascensão", os conspiradores do Partido Trabalhista
de Gillard revelaram-se como activos da Embaixada dos EUA em Canberra. Uma vez
instalada como primeira-ministra, Gillard comprometeu a Austrália na
guerra da América no Afeganistão durante os 10 anos seguintes
o dobro do compromisso britânico. Gillard gosta de aparecer na TV
ladeada por bandeiras. Com o seu andar e olhar robótico, é um
quadro inquietante. Em 6 de Abril, ela entoou: "Vivemos num país
livre... só porque o povo australiano respondeu ao apelo quando chegou a
hora da decisão". Estava a referir-se ao despacho de tropas
australianas para vingar a morte de uma figura imperial menor, o general
Charles Gordon, durante um levantamento popular no Sudão em 1885.
Esqueceu-se de dizer que uma dúzia de cavalos da Sydney Tramway Company
também "responderam ao apelo" mas expiraram durante a longa
viagem.
O reconhecido papel da Austrália como "vice-xerife" (promovido
a "xerife" por George W. Bush) é de polícia ao
serviço dos desígnios da grande potência, que
está agora a ser desafiada na maior parte do mundo. Os principais
políticos e jornalistas australianos que informam sobre o Médio
Oriente tiveram os seus primeiros voos e despesas pagos pelo governo israelense
ou
seus promotores. Dois candidatos do Partido Verde que ousaram criticar a
ilegalidade de Israel e o silêncio dos seus apoiantes locais, agora
estão a ser atacados. Um serviçal de Murdoch acusou os dois
verdes de advogarem uma "reconstituição moderna da
Kristallnacht
". Ambos receberam múltiplas ameaças de morte. Asteiem mais
bandeiras, rapazes.
20/Abril/2011
O original encontra-se em
http://www.johnpilger.com/articles/marching-for-anzac-in-the-51st-state
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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