Mandela foi-se, mas o apartheid está bem vivo na Austrália
por John Pilger
No fim dos anos 1960 o editor-chefe do
London Daily Mirror,
Hugh Cudlipp, atribuiu-me mais uma missão. Devia retornar à
minha pátria, a Austrália, e "descobrir o que está
por trás da sua face radiante". O
Mirror
fizera uma campanha
incansável contra o apartheid na África do Sul, onde havia
relatado o que estava por trás da sua "face radiante". Como
australiano, eu fora bem recebido naquela fortaleza da supremacia branca.
"Admiramos vocês
aussies
", diziam as pessoas. "Vocês sabem como tratar os seus
negros".
Eu ficava ofendido, é claro, mas também sabia que apenas o Oceano
Índico separava as atitudes raciais das duas nações
coloniais. Do que eu não estava consciente era de como a
semelhança provocou tamanho sofrimento entre o povo original do meu
próprio país. Quando crescia, meus livros escolares haviam
deixado claro, para citar um historiador: "Nós somos civilizados e
eles não são". Recordo como a uns poucos talentosos
jogadores da Aboriginal Rugby League foi permitido atingirem sua glória
desde que eles nunca mencionassem o seu povo. Eddie Gilbert, o grande jogador
aborígene de críquete, o homem que bateu
Don Bratman
com um resultado zero (
duck
)
, foi impedido de jogar outra vez. Isso não era atípico.
Em 1969 voei para Alice Springs no coração vermelho da
Austrália e encontrei-me com Charlie Perkins. Num tempo em que o povo
aborígene nem sequer era contado no recenseamento ao
contrário dos carneiros Charlie era apenas o segundo
aborígene a obter um grau universitário. Ele tem feito bom uso
desta distinção liderando "campanhas itinerantes"
("freedom rides")
em cidades racialmente segregadas no sertão australiano da Nova Gales
do Sul. Ele apanhou a ideia das campanhas itinerantes nas que se verificaram no
Sul Profundo
(Deep South)
dos Estados Unidos.
Alugámos um velho Ford, apanhámos a mãe de Charlie, Hetti,
uma anciã do povo aranda, e fomos para o que Charlie descreveu como
"inferno". Era Jay Creeki, uma "reserva nativa", onde
centenas de aborígenes eram encurralados em condições que
eu só tinha visto na África e na Índia. De uma torneira do
lado de fora pingava um líquido castanho; ali não havia
instalações sanitárias; a comida, ou
"rações", era fécula e açúcar. As
crianças tinham pernas finas como palitos e barrigas inchadas pela
desnutrição.
O que me impressionou foi o número de mães e avós
enlutadas desoladas pelo roubo de filhos pela polícia e
autoridades do "bem-estar" que, durante anos, haviam levado aquelas
crianças com pelo mais clara. A política era a
"assimilação". Hoje, isto mudou apenas no nome e na
racionalização.
Os rapazes acabariam a trabalhar em fazendas dirigidas por brancos, as meninas
como serviçais em lares da classe média. Isto era trabalho
escravo não declarado. Eles eram conhecidos como a Geração
Roubada. Hetti Perkins contou-me que quando Charlie era criança ela teve
de mantê-lo atado às suas costas e escondia-o sempre que ouvia o
tropel dos cavalos da polícia. "Eles não o levaram",
disse ela, com orgulho.
Em 2008, o primeiro-ministro Kevin Rudd pediu desculpas por este crime contra a
humanidade. Os aborígenes mais velhos ficaram gratos; acreditaram que o
primeiro povo da Austrália a mais duradoura presença
humana sobre a terra podia finalmente receber a justiça e o
reconhecimento que lhe fora negado durante 220 anos.
O que poucos deles ouviram foi o PS adicional das desculpas de Rudd.
"Quero ser categórico acerca disto", disse ele.
"Não haverá indemnização". Que a 100 mil
pessoas profundamente ofendidas e marcadas pelo ódio racista
resultado de uma forma de movimento eugenista com ligações ao
fascismo não fosse dada qualquer oportunidade para restabelecerem
suas vidas era chocante, embora não surpreendente. A maior parte dos
governos em Canberra, conservadores ou trabalhistas, tem insinuado que os
primeiros australiano são culpáveis pelo seu sofrimento e pobreza.
Quando o governo trabalhista na década de 1980 prometeu "plena
reparação" e direitos à terra, o poderoso lobby
mineiro avançou com o ataque, gastando milhões a fazer campanha
de que "os negros tomariam nossas praias e cerca de arame farpado". O
governo capitulou, muito embora a mentira fosse grotesca; o povo
aborígene mal chega a três por cento da população
australiana.
Hoje, crianças aborígenes estão outra vez a ser roubadas
das suas famílias. As palavras burocráticas são
"removidas" para "protecção da
criança". Em Julho de 2012 havia 13.299 crianças
aborígenes em instituições ou entregues a família
brancas. Hoje, o roubo destas crianças é mais intenso do que em
qualquer momento durante o último século. Entrevistei numerosos
especialistas em cuidados infantis que encaram isto como uma segunda
geração roubada. "Muitos dos garotos nunca vêem outra
vez as suas mães e comunidades", disse-me Olga Havnen, autora de um
relatório para o governo do Território do Norte. "No
Território do Norte, foram gastos $80 milhões na vigilância
e remoção de crianças e menos de $500 mil no apoio a estas
famílias empobrecidas. Muitas vezes não é dado qualquer
aviso às famílias e elas não têm ideia para onde os
seus filhos foram levados. A razão apresentada é
negligência o que quer dizer pobreza. Isto é destruir a
cultura aborígene e é racista. Se o apartheid da África do
Sul tivesse feito isto, teria havido um alvoroço".
Na cidade de Wilcannia, Nova Gales do Sul, a esperança de vida dos
aborígenes é de 37 anos mais baixa do que na
República Centro-Africana, talvez o país mais pobre da Terra,
actualmente devastado pela guerra civil. Outra distinção de
Wilcannia é que o governo cubano realiza ali um programa de
alfabetização, ensinando jovens aborígenes a ler e
escrever. É nisto que os cubanos são famosos nos
países mais pobres do mundo. A Austrália é um dos mais
ricos do mundo.
Filmei condições semelhantes há 28 anos atrás,
quando fiz meu primeiro filme acerca dos indígenas da Austrália,
The Secret Country
. Vince Forrester, um ancião aborígene que então
entrevistei, aparece no meu novo filme,
Utopia.
. Ele levou-me a uma casa em Mutitjulu onde viviam 32 pessoas,
na maior parte crianças, muitos deles a sofrerem otite média, uma
doença infecciosa totalmente evitável que prejudica a
audição e a fala. "Setenta por cento das crianças
nesta casa está
parcialmente surda", disse ele. Voltando-se directamente para a minha
câmara, disse: "Australianos, isto é o que nós
chamamos um insulto aos direitos humanos".
A maioria dos australianos raramente é confrontada com o segredo mais
sujo da sua nação. Em 2009, o respeitado Relator Especial das
Nações Unidas, Professor James Anaya, testemunhou
condições semelhantes e descreveu as políticas de
"intervenção" do governo como racistas. O então
ministro para a Saúde Indígena, Tony Abbott, para "fazer
algo útil" e parar de ouvir "a brigada da vítima".
Abbott é agora o primeiro-ministro da Austrália.
Na Austrália Ocidental são escavados minérios da terra
aborígene e despachados para a China com um lucro de mil milhões
de dólares por semana. Neste, o estado mais rico e mais próspero,
as prisões enchem-se com aborígenes esmagados, incluindo jovens
cujas mães postam-se às portas da prisão, suplicando pela
sua libertação. Aqui o encarceramento de australianos negros
é oito vezes superior ao dos negros sul-africanos durante a
última década do apartheid.
Quando Nelson Mandela foi enterrado esta semana, a sua luta contra o apartheid
foi devidamente celebrada na Austrália, embora a ironia estivesse
ausente. O apartheid foi derrotado em grande medida por uma campanha global da
qual o regime sul-africano nunca se recuperou. Um opróbrio semelhante
raramente deixou marca na Austrália, principalmente porque a
população aborígene é tão pequena e porque
os governos australianos têm conseguido dividir e cooptar uma
liderança dividida com gestos e promessas vagas. Isso pode estar a
mudar. Uma resistência está a crescer, apesar de tudo, nas terras
centrais aborígenes, especialmente entre os jovens. Ao contrário
dos EUA, Canadá e Nova Zelândia, que fizeram tratados com o seu
povo original, a Austrália tem apresentado gestos muitas vezes
incluídos nas leis. Contudo, no século XXI o mundo exterior
começa a prestar atenção. O espectro da África do
Sul de Mandela é uma advertência.
19/Dezembro/2013
O trailer de
Utopia,
o novo filme de John Pilger, pode ser assistido
aqui
.
O original encontra-se no
London Daily Mirror
e em
johnpilger.com/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|