Luto no 4 de Julho
por John Pilger
Neste ensaio para o
New Statesman,
Pilger argumenta que enquanto os liberais agora celebram o retorno da
América aos seus "ideais morais", mantêm-se silenciosos
acerca de um tabu venerável: o do americanismo, uma ideologia que se
caracteriza por não se reconhecer como ideologia. O presidente Obama
é a sua corporificação.
A monção entrelaçara-se em espessos novelos de neblina
sobre as terras altas centrais do Vietname. Eu era um jovem correspondente de
guerra, acampado na aldeia de Tuylon com uma unidade dos US marines cujas
ordens era conquistar corações e mentes. "Não estamos
aqui para matar", dizia o sargento, "estamos aqui para difundir o
Caminho Americano da Liberdade tal como declarado no Manual de
Pacificação. Isto destina-se a conquistar os
corações e mentes dos sujeitos, como se diz na página
86".
A página 86 era intitulada WHAM ("Winning Hearts And Minds").
A unidade do sargento era chamada uma companhia de acção
combinada, o que significava, como ele explicou, "nós atacamos
estes sujeitos às segundas-feiras e conquistamos os seus
corações e mentes às terças-feiras". Estava a
brincar, apesar de não muito. De pé num jipe à beira de um
arrozal, anunciou através de um alto-falante: "Venham para fora,
toda a gente. Temos arroz, doces e escovas de dentes para dar a
vocês".
Silêncio. Nem uma sombra se moveu.
"Agora ouçam, ou vocês bastardos
(gooks)
saem de onde quer que estejam ou nós vamos aí e apanhamos
vocês!"
O povo de Tuylon finalmente saiu e fez fila para receber pacotes de arroz Uncle
Ben's Long Grain Rice, barras de chocolate Hershey, balões de festa e
vários milhares de escovas de dentes. Três sanitários
portáteis com descarga amarela, operados a bateria, foram preparados
para a chegada do coronel. E quando o coronel chegou naquela noite, o chefe do
distrito foi convocado e os sanitários com descarga amarela foram
inaugurados.
"Sr. Chefe do Distrito e todos vocês aqui", disse o coronel,
"o que estas prendas representam é mais do que a soma das suas
partes. Elas transportam o espírito da América. Senhoras e
senhores, não há um lugar sobre a terra como a América.
É uma luz orientadora para mim, e para si. Vocês vêm, quando
voltamos para casa, consideramo-nos como realmente felizes por ter a maior
democracia que o mundo alguma vez conheceu e queremos que vocês, bons
sujeitos, participem da nossa boa fortuna".
Thomas Jefferson, George Washington e Davy Crockett ganhavam uma
menção. "Farol" era outra favorita e ele evocava a
"cidade sobre uma colina" de John Winthrop, os marines aplaudiam e as
crianças aplaudiam, sem entenderem nem uma palavra.
Isto era uma lição do que os historiadores chamam o
"excepcionalismo", a noção de que os Estados Unidos
têm o direito divino de levar o que descrevem como liberdade e democracia
ao resto do mundo. Que isto disfarçava simplesmente um sistema de
dominação, o qual Martin Luther King, pouco antes do seu
assassinato, descreveu como "o maior fornecedor de violência do
mundo" era algo indizível.
Como destacou Howard Zinn, o grande historiador do povo, a muito citada
descrição de Winthrop da Massachusetts Bay Colony no
século XVII como uma "cidade sobre uma colina", um lugar de
ilimitada bem aventurança e nobreza, era raramente contrastada com a
violência dos primeiros colonos, para os quais queimar vivos uns 400
índios Pequot era uma "alegria triunfante". Os
incontáveis massacres que se seguiram, escreveu Zinn, eram justificados
pela "ideia de que a expansão americana é divinamente
ordenada".
Não há muito, visitei o American Museum of History, parte da
celebrada Smithsonian Institution, em Washington, DC. Uma das
exposições populares era "O preço da liberdade:
Americanos em guerra". Era um feriado e filas de pessoas, incluindo muitas
crianças, entravam reverencialmente numa gruta de guerra e conquista
onde eram dispensadas mensagens acerca da "grande missão" do
seu país. Isto incluía tributos aos "americanos excepcionais
que salvaram milhões de vida" no Vietname, onde estavam
"determinados a travar a expansão comunista". No Iraque,
outras boas almas "utilizavam ataques aéreos de precisão sem
precedentes". O que era chocante não era tanto a
descrição revisionista de dois dos tremendos crimes dos tempos
modernos mas sim a escala de omissão total.
"A história sem memória", declarava a revista
Time
no fim do século XX, "confina os americanos a uma espécie
de eterno presente. Eles são especialmente fracos em recordar o que
fizeram a outros povos, em oposição ao que eles lhes
fizeram". Ironicamente, foi Henry Luce, fundador da
Time,
que em 1941 previu o "século americano" como uma
"vitória" americana social, política e cultural sobre a
humanidade e o direito da "exercer sobre o mundo o pleno impacto da nossa
influência, para os propósitos que consideremos adequados e pelos
meios que considerarmos adequados".
Nada disto é para sugerir que o orgulho é exclusivo dos Estados
Unidos. Os britânicos apresentaram a sua dominação de
grande parte do mundo, muitas vezes violenta, como o progresso natural de
cavalheiros cristãos a civilizarem os nativos de forma abnegada e os
actuais historiadores da TV perpetuam os mitos. Os franceses ainda celebram a
sua sangrenta "missão civilizadora". Antes da Segunda Guerra
Mundial, "imperialista" era um título político honroso
na Europa, ao passo que nos EUA era preferido o de "idade inocente".
A América era diferente do Velho Mundo, diziam os seus mitólogos.
A América era a Terra da Liberdade, não interessada em
conquistas. Mas e quanto ao apelo de George Washington por um
"império ascendente" e o de James Madison por
"lançar a fundação de um grande império"?
E quanto à escravidão, ao roubo do Texas ao México,
à sangrenta subjugação da América Central, de Cuba
e das Filipinas?
Uma memória nacional comandada destinou isto às margens da
história e "imperialismo" foi quase desacreditado nos Estados
Unidos, especialmente após Adolf Hitler e os fascistas, com as suas
ideias de superioridade racial e cultural, deixaram um legado de culpa por
associação. Os nazis, afinal de contas, haviam sido imperialistas
orgulhosos e a Alemanha era, também, "excepcional". A ideia de
imperialismo, a própria palavra, foi quase expurgada do léxico
americano, "com o fundamento de que ela falsamente atribui motivos imorais
à política externa do ocidente", argumentou um historiador.
Aqueles que persistiam em utilizá-la eram "infames agitadores"
e estavam "inspirados pela doutrina comunista", ou eram
"intelectuais negros que tinham ressentimentos contra o capitalismo
branco".
Enquanto isso, a "cidade sobre a colina" permanecei um farol de
voracidade quando o capital estado-unidense começou a realizar o sonho
de Luce e a recolonizar os impérios europeus nos anos do
pós-guerra. Isto foi a "a marcha da livre empresa". Na
verdade, foi conduzida por um boom de produção subsidiada num
país não devastado pela guerra: uma espécie de socialismo
para as grandes corporações, ou capitalismo de estado, o qual
deixava metade da riqueza do mundo em mãos americanas. A pedra
fundamental deste novo imperialismo foi colocada em 1944 na conferência
dos aliados ocidentais em Bretton Woods, New Hampshire. Descrita como
"negociações acerca da estabilidade económica",
a conferência marcou a conquista da maior parte do mundo pela
América.
O que a elite americana pedia, escreveu Frederic F. Clairmont em
The Rise and Fall of Economic Liberalism,
"era não aliados mas estados clientes
servis. O que Bretton Woods deixou como legado para o mundo foi um plano
totalitário letal para a repartição dos mercados
mundiais". O Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, o
Banco de Desenvolvimento Asiático, o Banco Interamericano de
Desenvolvimento e o Banco Africano de Desenvolvimento foram com efeito
estabelecidos como braços do Tesouro dos EUA e conceberiam e policiariam
a nova ordem. Os militares estado-unidenses e seus clientes guardariam as
portas destas instituições "internacionais" e um
"governo invisível" dos media asseguraria os mitos, disse
Edward Bernays.
Bernays, descrito como o pai da era dos media, era o sobrinho de Sigmund Freud.
"Propaganda", escreveu ele, "acabou por ser uma palavra
má devido aos alemães... de modo que o que fiz foi tentar e
encontrar outras palavras [tais como] Relações Publicas".
Bernays utilizou teorias de Freud acerca do controle do subconsciente para
promover uma "cultura de massa" destinada a promover o medo dos
inimigos oficiais e o servilismo ao consumo. Foi Bernays quem, em prol da
indústria tabaco, fez campanha para as mulheres americanas assumirem o
fumar como um acto de libertação feminista, chamando os cigarros
de "tochas da liberdade"; e foi a sua noção de
desinformação que aplicada para a derrubada de governos, tal como
a democracia da Guatemala em 1954.
O objectivo, acima de tudo, era distrair e desviar os impulsos
democráticos e sociais do povo trabalhador. O big business, com a sua
reputação pública de uma espécie de máfia,
foi elevado à de força patriótica. A "livre
empresa" tornou-se uma divindidade. "No princípio da
década de 1950", escreveu Noam Chomsky, "20 milhões de
pessoas por semana estavam a assistir filmes patrocinados pelos
negócios. A indústria do entretenimento foi alistada na causa,
retratando os sindicatos como o inimigo, o intruso que rompe a
"harmonia" do "American way of life"... Todo aspecto da
vida social era visado e permeava escolas, universidades, igrejas e mesmo
programas recreativos. Por volta de 1954, a propaganda de negócios nas
escolas públicas atingiu a metade da quantia gasta com manuais escolares.
O novo "ismo" era americanismo, uma ideologia cuja
distinção é negar que seja uma ideologia. Recentemente, vi
o musical de 1957 Silk Stockings, estrelado por Fred Astaire e Cyd Charisse.
Entre as cenas de dança maravilhosas e uma actuação de
Cole Porter havia uma série de declarações de lealdade que
aquele coronel no Vietname poderia muito bem ter escrito. Eu havia esquecido
quão bruta e penetrante era a propaganda; os soviéticos nunca
poderiam competir. Um juramento de lealdade para com todas as coisas americanas
tornava-se um compromisso ideológico aos gigantes dos negócios:
desde o negócio de armamentos e guerra (o qual consome 42 centavos de
cada dólar hoje) ao negócio dos alimentos, conhecido como
"agripower" (o qual recebe US$157 mil milhões por ano em
subsídios do governo).
Barack Obama é a corporificação deste "ismo".
Desde os seus primeiros tempos na política, o tema infalível de
Obama tem sido não "mudança", o slogan desta campanha
presidencial, mas o direito de a América dominar e ordenar o mundo. A
partir dos Estados Unidos, afirmou ele, "conduzimos o mundo na batalha
aos males imediatos e pela promoção do bem final... Devemos
conduzir pela construção de uma força militar do
século XXI para assegurar a segurança do nosso povo e o
avanço da segurança de todos os povos". E: "Em momentos
de grande perigo no século passado os nossos líderes asseguraram
que a América, pelos feitos e pelo exemplo, conduzisse e levantasse o
mundo, que nos sustivéssemos e combatêssemos pelas liberdades
procuradas por milhares de milhões de pessoas para além das suas
fronteiras".
Desde 1945, pelos feitos e pelo exemplo, os EUA derrubaram 50 governos,
incluindo democracias, esmagaram 30 movimentos de libertação e
apoiaram tiranias desde o Egipto até a Guatemala (ver histórias
de William Blum). Bombardeamento é torta de maçã. Tendo
apinhado o seu governo de belicistas, compadres da Wall Street e poluidores das
eras Bush e Clinton, o 45º presidente está meramente a manter a
tradição. A farsa dos corações e mentes que
testemunhei no Vietname é hoje repetida em aldeias no Afeganistão
e, por procuração, no Paquistão, as quais são
guerras de Obama.
No seu discurso de aceitação do Prémio Nobel de Literatura
de 2005, Harold Pinter notou que "todos sabem que terríveis crimes
foram cometidos pela União Soviética no período do
pós guerra, mas "os crimes dos EUA no mesmo período foram
apenas superficialmente registados, muito menos documentados, muito menos
admitidos, muito menos reconhecidos como crimes". É como se
"isto nunca aconteceu. Nada alguma vez aconteceu. Mesmo enquanto estava a
acontecer, não estava a acontecer. Você tem de apoiar a
América... mascará-la como força para o bem universal.
É um acto de hipnose brilhante, mesmo astuto, altamente bem
sucedido".
Quando Obama enviou drones
[1]
para matar (desde Janeiro) uns 700 civis, distintos liberais rejubilaram porque
a América é mais uma vez uma "nação de ideais
morais", como Paul Krugman escreveu no
New York Times.
Na Grã-Bretanha, a elite viu há muito na excepcional
América um lugar permanente para a "influência"
britânica, embora como serviçal ou fantoche. O historiador pop
Tristram Hunt diz que a América sob Obama é uma terra "onde
os milagres acontecem". Justin Webb, até recentemente o homem da
BBC em Washington, refere-se reverencialmente, um tanto como o coronel no
Vietname, à "cidade sobre a colina".
Para além desta fachada de "intensificação do
sentimento e degradação do signficado" (Walter Lippman), os
americanos comuns estão a agitar-se talvez como nunca antes, como que a
abandonar a deidade do "Sonho Americano" de que a prosperidade
é uma garantia com trabalho árduo e parcimónia.
Milhões de emails irados provenientes de pessoas comuns inundaram
Washington, exprimindo uma indignação que a novidade de Obama
não acalmou. Ao contrário, aqueles cujos empregos desapareceram e
cujos lares são retomados vêem o novo presidente a premiar bancos
desonestos e uma obesa força militar, no essencial a proteger o terreno
de George W. Bush.
Minha suposição é que um populismo emergirá dentro
de poucos anos, ateando uma força poderosa que jaz sob a
superfície da América e que tem um passado orgulhoso. Não
posso prever que caminho irá tomar. Contudo, a partir de um
autêntico americanismo de raiz veio o sufrágio das mulheres, o dia
de oito horas, o imposto escalonado sobre o rendimento e a propriedade publica.
No fim do século XIX, os populistas foram traídos pelos
líderes que os pressionaram ao compromisso e fundiram-se com o Partido
Democrata. Na era Obama, a familiaridade disto ressoa.
O que é mais extraordinário acerca dos Estados Unidos de hoje
é a rejeição e o desafio, em tantas atitudes, à
propaganda histórica e contemporânea que tudo permeia do
"governo invisível". Inquéritos críveis
confirmaram há muito que mais de dois terços dos americanos
mantêm pontos de vista progressistas. A maioria quer que o governo cuide
daqueles que não podem cuidar-se a si próprios. Eles pagariam
impostos mais altos para garantir cuidados de saúde para toda a gente.
Querem completar o desarmamento nuclear, 72 por cento quer que os EUA finalize
as suas guerras coloniais; e assim por diante. São informados,
subversivos e até "anti-americanos".
Certa vez pedi a uma amiga, a grande correspondente de guerra americana Martha
Gelhorn, a explicar-me a expressão. "Vou dizer-lhe o que é
'anti-americano' ", disse ela. "É ao que os governos e os
interesses a ele ligados chamam aqueles que honram a América ao
objectarem à guerra e ao roubo de recursos e acreditarem em toda a
humanidade. Há milhões destes anti-americanos nos Estados Unidos.
Eles são pessoas ordinárias que pertencem à elite e que
julgam o seu governo em termos morais, embora chamem a isso decência
comum. Não são pessoas fúteis. São as pessoas com
consciência desperta, o melhor dos cidadãos americanos. Pode-se
confiar neles. Estavam no Sul com o movimento dos direitos civis, acabando com
a escravatura. Estavam nas ruas a exigir o fim das guerras na Ásia.
Certamente desapareceram da vista agora e então, mas são como
sementes debaixo da neve. Eu diria que eles são realmente
excepcionais".
09/Julho/2009
[1] Drones: Aviões sem piloto que os EUA estão a utilizar no
Afeganistão e Paquistão para disparar mísseis contra populações
civis.
Adaptado do discurso "Império, Obama e o último
tabu", de John Pilger, na conferência Socialism 2009, em San
Francisco, a 04 de Julho.
O original encontra-se em
http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=539
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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