A revolta egípcia está a vir para casa
por John Pilger
O levantamento no Egipto é o nosso teatro do possível. É
aquilo pelo que as pessoas de todo o mundo têm lutado e os seus
controladores têm temido. Os comentadores ocidentais invariavelmente
abusam da palavra "nós" para falar em favor dos poderosos que
vêem o resto da humanidade como utilizável ou descartável.
O "nós" é universal agora. A Tunísia chegou
primeiro, mas o espectáculo sempre prometeu ser o Egipto.
Como repórter, tenho sentido isto ao longo de anos. Na Praça
Tahrir (Libertação) do Cairo em 1970, o ataúde do grande
nacionalista Gamal Abdul Nasser ondeava sobre um oceano de povo que, com ele,
havia vislumbrado a liberdade. Um deles, um professor, descreveu o passado
desgraçado como "homens maduros a apanharem bolas de cricket para
os britânicos no Cairo Club". A parábola era para todos os
árabes e grande parte do mundo. Três anos depois, o Terceiro
Exército Egípcio atravessou o Canal de Suez e invadiu fortalezas
de Israel no Sinai. Ao retornar deste campo de batalha para o Cairo, juntei-me
a um milhão de outros na Praça de Libertação. O seu
auto-respeito restaurado era se fosse uma presença até que
os Estados Unidos rearmaram os israelenses e provocaram uma derrota
egípcia.
Depois disso, o presidente Anwar Sadat tornou-se o homem da América
através do suborno habitual de mil milhões de dólares e,
por isso, foi assassinado em 1980. Sob o seu sucessor, Hosni Mubarak,
dissidentes vieram à Praça da Libertação sob o seu
próprio risco. Enriquecido pelos homens de Washington, o mais recente
projecto americano-israelense de Mubarak é a construção de
uma muralha subterrânea atrás da qual os palestinos de Gaza fossem
aprisionados para sempre.
Hoje, o problema para o povo na Praça da Libertação
já não reside no Egipto. Em 6 de Fevereiro, o
New York Times
informava: "A administração Obama lançou formalmente
o seu peso numa transição gradual no Egipto, apoiando tentativas
do vice-presidente do país, general Omar Suleiman, para articular um
compromisso com grupos da oposição... A secretária de
Estado Hillary Clinton disse que era importante apoiar o sr. Suleiman pois ele
procura desactivar protestos de rua..."
Tendo-o salvo de supostos assassinos, Suleiman eé, com efeito, o
guarda-costas de Mubarak. A sua outra distinção, documentada no
livro de investigação de Jane Mayer,
The Dark Side,
é como supervisor dos "voos de rendição"
americanos para o Egipto, onde pessoas são torturadas a pedido da CIA.
Ele também é, como revela a WikiLeaks, um favorito em Tel Aviv.
Quando perguntaram ao presidente Obama se encarava Mubarak como
autoritário, a sua resposta rápida foi "não".
Chamou-o de pacificador, reflectindo aquele outro grande tribuno liberal, Tony
Blair, para quem Mubarak é "uma força para o bem".
O pavoroso Suleiman é agora o pacificador e a força para o bem, o
homem do "compromisso" que supervisionará a
"transição gradual" e "desactivará os
protestos". Esta tentativa de sufocar a revolta egípcia
recorrerá ao facto de que uma proporção substancial da
população, desde homens de negócio a jornalistas e
pequenos responsáveis, tem cuidado do seu aparelho. Num certo sentido,
eles reflectem aqueles na classe liberal do Ocidente que apoiaram a
"mudança em que você pode acreditar" de Obama e o
igualmente falso "cinemascópio político" de Blair
(Henry Porter no
Guardian,
1995). Não importa quão diferente eles pareçam e se
apresentem, ambos os grupos são os apoiantes domesticados e os
beneficiários do status quo.
Na Grã-Bretanha, o programa Today da BBC é a sua voz. Aqui,
desvios sérios do status quo são conhecidos como "Deus sabe
o que". Em 28 de Janeiro o correspondente em Washington, Paul Adams,
declarou: "Os americanos estão numa situação muito
difícil. Eles querem ver alguma espécie de reforma
democrática mas também estão conscientes de que precisam
líderes fortes capazes de tomar decisões. Eles encaram o
presidente Mubarak como um baluarte absoluto, um aliado estratégico
chave na região. O Egipto é o país, juntamente com Israel,
sobre o qual a diplomacia americana no Médio Oriente está
absolutamente dependente. Eles não querem ver qualquer coisa que salte
de uma situação caótica para francamente Deus sabe o
que".
O medo de Deus sabe o que exige que a verdade histórica da
"diplomacia" americana e britânica tão grandemente
responsável pelo sofrimento no Médio Oriente seja suprimida ou
revertida. Esquecer a Declaração Balfour que levou à
imposição do Israel expansionista. Esquecer o patrocínio
anglo-americano dos jihadistas islâmicos como "baluarte" contra
o controle democrático do petróleo. Esquecer o derrube da
democracia no Irão e a instalação da tirania do xá
e a carnificina e destruição no Iraque. Esquecer os aviões
de caça americanos, as bombas de fragmentação (cluster), o
fósforo branco e o urânio empobrecido cujo desempenho é
testado sobre crianças em Gaza. E agora, na causa da
prevenção do "caos", esquecer a negação
de quase toda liberdade civil básica no contrito "novo" regime
de Omar Suleiman no Cairo.
O levantamento no Egipto desacreditou todos os estereótipos dos media do
Ocidente acerca dos árabes. A coragem, determinação,
eloquência e generosidade daqueles na Praça da
Libertação contrasta com os "nossos" especiosos
traficantes do mercado com os seus falsos al-Qaeda e Irão e suas
suposições irrefutáveis, sem ironia, quanto à
"liderança mora do Ocidente". Não é de
surpreender que a fonte recente de verdade acerca do abuso imperial do
Médio Oriente, WikiLeaks, esteja ela própria sujeita à
covardia, ao pequeno abuso naqueles jornais auto-congratulátórios
que estabelecem os limites do debate da elite liberal em ambos os lados
Atlântico. Talvez estejam preocupados. Por todo o mundo, a
consciência pública está a levantar-se e a
ultrapassá-los. Em Washington e Londres, os regimes são
frágeis e muito pouco democráticos. Tendo há muito deitado
abaixo sociedades no estrangeiro, eles agora estão a fazer algo
semelhante em casa, com mentiras e sem um mandato. Para as suas vítimas,
a resistência na Praça da Libertação do Cairo deve
parecer uma inspiração. "Não pararemos", disse
uma jovem egípcia na TV, "não iremos para casa". Tente
juntar um milhão de pessoas no centro de Londres, decididas à
desobediência civil, e tente imaginar o que podia acontecer.
09/Fevereiro/2011
O original encontra-se em
http://www.johnpilger.com/articles/the-egyptian-revolt-is-coming-home
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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