A "obtenção" de Assange e o enlamear de uma
revolução
por John Pilger
O Tribunal Superior em Londres decidirá em breve se Julian Assange deve
ser extraditado para a Suécia a fim de enfrentar acusações
de má conduta sexual. Na audiência de apelo, em Julho, Ben
Emmerson
QC
, advogado de defesa, descreveu toda a saga como "louca". O promotor
público chefe sueco desistiu da ordem de prisão, dizendo que
não havia processo para Assange responder. Ambas as mulheres envolvidas
disseram que haviam consentido em fazer sexo. Sobre os factos alegados, nenhum
crime teria sido cometido na Grã-Bretanha.
Contudo, não é o sistema judicial sueco que apresenta um
"perigo grave" para Assange, dizem seus advogados, uma
disposição legal conhecida como Entrega Temporária
(Temporary Surrender),
sob a qual ele pode ser enviado da Suécia para os Estados Unidos
secretamente e rapidamente. O fundador e editor do WikiLeaks, que publicou a
maior fuga de documentos oficiais da história, proporcionando uma
percepção única das guerras de rapina e mentiras contadas
por governos, é provável encontrar-se num buraco infernal
não diferente da masmorra de tormentos que aprisiona o soldado Bradley
Manning, o alegado informante. Manning não foi processado, muito menos
condenado, mas em 21 de Abril o presidente Barack Obama declarou-o culpado com
um displicente "Ele infringiu a lei".
Esta justiça estilo Kafka aguarda Assange quer a Suécia decida ou
não processá-lo. Em Dezembro último, o
Independent
revelou que os EUA e a Suécia já haviam iniciado
conversações sobre a extradição de Assange. Ao
mesmo tempo, um grande júri secreto uma relíquia do
século XVIII há muito abandonada neste país
reuniu-se exactamente do outro lado do rio de Washington, num canto da
Virgínia que é o lar da CIA e da maior parte do establishment
segurança nacional da América. O grande júri é um
"remendo", contou-me um importante perito legal: ele recorda os
júris só de brancos no Sul que condenavam negros automaticamente.
Acredita-se existir uma acusação ainda lacrada.
Sob a Constituição dos EUA, a qual garante a liberdade de
expressão, Assange deveria, em teoria, ser protegido. Quando concorria
à presidência, Obama, ele próprio um constitucionalista,
disse: "Informantes fazem parte de uma democracia saudável e devem
ser protegidos de represálias". O seu abraço à
"guerra ao terror" de George W. Bush mudou tudo isso. Obama tem
perseguido mais informantes do que qualquer presidente estado-unidense. O
problema para a sua administração em "obter" Assange e
esmagar o WikiLeaks é que investigadores militares não
descobriram conivência ou contacto entre ele e Manning, relata a NBC.
Não há crime, de modo que algum tem de ser cozinhado,
provavelmente em linha com a absurda descrição de Assange, feita
pelo vice-presidente Joe Biden, como um "terrorista hi-tech".
Caso Assange vença seu apelo ao Tribunal Superior de Londres, ele
poderá enfrentar a extradição directa para os Estados
Unidos. No passado, responsáveis dos EUA sincronizaram
autorizações de extradição com a conclusão
de um caso pendente. Tal como os seus militares predatórios, a
jurisdição americana reconhece poucas fronteiras. O sofrimento de
Bradley Manning demonstra, juntamente com o recentemente executado Troy Davis e
os esquecidos presos de Guantanamo, grande parte do sistema de justiça
criminal dos EUA é corrupto se não ilegal.
Numa carta dirigida ao governo australiano, o mais distinto advogado de
direitos humanos da Grã-Bretanha, Gareth Peirce, que agora actua em
favor de Assange, escreveu: "Dada a extensão da discussão
pública, frequentemente na base de suposições inteiramente
falsas... é muito difícil tentar preservar para ele qualquer
presunção de inocência. O sr. Assange tem agora pendente
sobre si não uma mas duas espadas de Damocles, de potencial
extradição para duas diferentes jurisdições por
dois diferentes alegados crimes, nenhum dos quais são crimes no seu
próprio país e a sua segurança pessoal ficou em risco em
circunstâncias que são altamente politicamente carregadas".
Estes factos, e a perspectiva de uma grotesca perversão de
justiça, têm sido afogados numa campanha de injúrias contra
o fundador do WikiLeaks. Ataques profundamente pessoais, baixos,
pérfidos e desumanos foram lançados contra um homem não
acusado de qualquer crime mas mantido isolado, etiquetado e sob prisão
domiciliar condições nem mesmo atribuídas a um
acusado que actualmente enfrenta extradição por uma
acusação de assassinar a sua esposa.
Foram publicados livros, efectuados contratos de filmes e profissionais dos
media lançaram iniciativas com a suposição de que ele
está num jogo tolo e demasiado fraco para processo. Pessoas ganharam
dinheiro, frequentemente muito dinheiro, enquanto o WikiLeaks luta para
sobreviver. Em 16 de Junho, o editor de Canongate Books, Jamie Byng, quando
Assange lhe pediu uma garantia de que o boato da publicação
não autorizada da sua autobiografia não era verdadeiro, disse:
"Não, absolutamente não. Essa não é a
posição ... Julian, não se preocupe. Meu desejo
número um absoluto é publicar um grande livro com o qual
você fique
feliz". Em 22 de Setembro, a Canongate divulgou aquilo a que chamo
"autobiografia não autorizada" de Assange sem a
permissão ou conhecimento do autor. Era um primeiro rascunho de um
manuscrito incompleto e não corrigido. "Eles pensaram que eu estava
a ir para a prisão e isso os teria incomodado", contou-me ele.
"É como se eu agora fosse uma mercadoria que representa um
estímulo para qualquer oportunista".
O editor do
Guardian,
Alan Rusbridger, considerou as revelações do WikLeaks como
"um dos maiores furos jornalísticos dos últimos 30
anos". Na verdade, isto faz parte da sua actual promoção de
marketing a fim de justificar o aumento do preço de capa do
Guardian.
Mas o furo pertence a Assange, não ao
Guardian.
Compare-se a atitude do jornal em relação a Assange com o seu
apoio firme ao repórter ameaçado de processo sob a Lei dos
Segredos Oficiais
(Official Secrets Act)
por revelar as iniquidades do Hackgate. Editoriais e primeiras páginas
apresentavam emocionantes mensagens de solidariedade até mesmo do
Sunday Times
de Murdoch. Em 29 de Setembro, [o jornalista] Carl Bernstein era trazido dos
EUA para Londres a fim de comparar tudo isto com o seu triunfo do Watergate.
Infelizmente, a mensagem do icónico compadre não foi coerente com
o seu passado investigador. "É importante não ser injusto
com Murdoch", disse ele, porque "é o mais sagaz
empresário dos media do nosso tempo", pois "colocou The
Simpsons no ar" e portanto "mostrou que podia entender o consumidor
de informação".
O contraste com o tratamento dado a um genuíno pioneiro de uma
revolução jornalística, que ousou enfrentar a
América desenfreada, apresentar a verdade acerca de como funciona a
grande potência, é notável. Um gotejamento de hostilidades
transpira do
Guardian,
tornando difícil aos leitores interpretar o fenómeno WikiLeaks e
assumir algo diferente do que o pior acerca do seu fundador. David Leigh, o
"editor de investigações" do
Guardian,
disse a estudantes de jornalismo na Cidade Universitária que Assange
era um "monstro Frankenstein" o qual "não costuma
lavar-se muito frequentemente" e era "um bocado demente". Quando
um estudante confundido perguntou porque dizia isso, Leigh replicou:
"Porque ele não entende os parâmetros do jornalismo
convencional. Ele e o seu círculo têm um profundo desprezo pelo
que chamam os media de referência". Segundo Leigh, estes
"parâmetros" foram exemplificados por Bill Keller quando, como
editor do
New York Times,
co-publicou a revelações do WikiLeaks junto com o
Guardian.
Keller, disse Leigh, era "uma pessoa seriamente ponderada em
jornalismo" que tinha de tratar com "uma espécie de hacker
sujo e excêntrico de Melbourne".
Em Novembro último, o "seriamente ponderado" Keller jactou-se
à BBC de que havia entregue todos os registos de guerra do WikiLeaks
à Casa Branca de modo a que o governo pudesse aprová-los e
editá-los. Na preparação para a guerra do Iraque, o
New York Times
publicou, sabe-se agora, uma série de afirmações
inspiradas pela CIA de que existiam armas de destruição
maciça. Tais são os "parâmetros" que tornaram
tantas pessoas cínicas acerca dos chamados media de referência.
Leigh chegou ao ponto de ridicularizar o perigo de que, uma vez extraditado
para a América, Assange acabasse por usar "um fato laranja".
Trata-se de coisas que "ele e o seu advogado andam a dizer a fim de
alimentar a sua paranóia". A "paranóia" é
partilhada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos o qual congelou
extradições de "segurança nacional" do Reino
Unido para os EUA pois o extremo isolamento e as longas sentenças que os
acusados podem esperar equivalem a tortura e tratamento desumano.
Perguntei a Leigh porque ele e o
Guardian
haviam adoptado uma atitude sistematicamente hostil em relação a
Assange desde que se separaram. Ele respondeu: "Onde você,
tendenciosamente, afirma detectar um 'dedo hostil', outros podem meramente ver
objectividade bem informada".
É difícil encontrar objectividade bem informada no livro do
Guardian
sobre Assange, vendido lucrativamente a Hollywood, no qual Assange é
descrito infundadamente como uma "personalidade danificada" e
"rígida"
("callous").
No livro, Leigh revelou a password secreta que Assange havia dado ao jornal.
Destinada a proteger um ficheiro digital contendo telegramas de embaixadas dos
EUA, sua revelação pôs a funcionar uma cadeia de eventos
que levou à divulgação de todos os ficheiros. O
Guardian
nega "totalmente" que fosse responsável pela
divulgação. Por que, então, publicar a password?
As revelações do Hackgate do
Guardian
foram um grande feito jornalístico; o império Murdoch pode
desintegrar-se em consequência. Mas, com ou sem Murdoch, há um
consenso dos media que faz eco, desde a BBC até ao
Sun,
à política corrupta e belicista do establishment. O crime de
Assange foi ameaçar este consenso: aqueles que fixam os
"parâmetros" das notícias e ideias políticas e
cuja autoridade como comissários dos media é desafiada pela
revolução da Internet.
O antigo jornalista premiado Jonathan Cook, do
Guardian,
tem experiência em ambos os mundos. "Os media, pelo menos a
componente supostamente de esquerda deles", escreve, "deveriam estar
a aplaudir esta revolução... Contudo, eles estão sobretudo
a tentar cooptá-la, amansá-la ou subvertê-la e [mesmo] a
desacreditar e ridicularizar os precursores da nova era... Alguns [da campanha
contra Assange] reflectem claramente um choque de personalidades e egos, mas
isso também parece subrepticimanete como se a rixa decorresse de uma
luta ideológica mais profunda [acerca] de como a
informação deveria ser controlada daqui a uma
geração [e] com os guardas da portaria a manterem o seu
controle".
06/Outubro/2011
O original encontra-se em
www.johnpilger.com/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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