O império oculto da Austrália
por John Pilger
Quando o mundo lá fora pensa acerca da Austrália
volta-se geralmente para respeitáveis clichés de inocência
cricket, marsupiais saltadores, brilho do sol infindável, nada de
preocupações. O governo australiano encoraja isto activamente.
Testemunho disso é a recente campanha G'Day USA, na qual
Kylie Minogue e Nicole Kidman procuraram persuadir os americanos de que, ao
contrário dos problemáticos postos avançados do
império, uma saudação parola aguardava-os na
Austrália. Afinal de contas, George W. Bush havia ordenado o anterior
primeiro-ministro da Austrália, John Howard, como "sheriff da
Ásia".
Que a Austrália administra o seu próprio império
não é uma questão mencionável; mas isto
depreende-se desde os bairros de lata de aborígenes em Sidney até
as antigas terras interiores do continente e ao longo do Mar de Arafura e do
Pacífico Sul. Quando o novo primeiro-ministro, Kevin Rudd, desculpou-se
junto ao povo aborígene em 13 de Fevereiro, reconheceu isto. Quanto ao
próprio pedido de desculpas, o
Sydney Morning Herald
descreveu-o com exactidão como uma "peça de ruína
politica" que "o governo Rudd movimentou rapidamente para limpar o
caminho... de um modo que corresponde a algumas das necessidades emocionais dos
seus apoiantes, mas nada de mudanças. Trata-se de uma manobra perspicaz.
Tal como a conquista dos nativos americanos, a dizimação dos
aborígenes australianos lançou a fundação do
império da Austrália. A terra foi tomada e grande parte do seu
povo foi removido e empobrecido ou eliminado. Para os seus descendentes,
não atingidos pelo tsunami de sentimentalidade que acompanhou as
desculpas de Rudd, pouco mudou. Na grande expansão no território
do norte, conhecida como Utopia, o povo vive sem esgotos, água corrente,
colecta de lixo, habitação decente e saúde decente. Isto
é típico. Na comunidade de Mulga Bore, os fontanários de
água na escola aborígene secaram e a única água que
resta esta contaminada.
Por toda a Austrália dos aborígenes as epidemias de
gastroenterite e febre reumática são tão comuns como
haviam sido nos bairros pobres da Inglaterra do século XIX. A
saúde dos aborígenes, afirma a Organização Mundial
de Saúde, está atrasada em quase uma centena de anos em
relação à da Austrália branca. Este é o
único país desenvolvido numa "lista da vergonha" feita
pelas Nações Unidas de países que não erradicaram a
tracoma, uma doença totalmente prevenível que cega
crianças aborígenes. O Sri Lanka eliminou a doença, mas
não a rica Austrália. Em 25 de Fevereiro, um inquérito
policial às mortes na periferia de cidades de 22 aborígenes,
alguns dos quais enforcaram-se a si próprios, descobriu que eles estavam
a tentar escapar das suas "vidas pavorosas".
A maior parte dos australianos brancos raramente vêem este terceiro mundo
no seu próprio país. O que eles chamam aqui "intelectuais
públicos" prefere discutir sobre se o passado aconteceu, e culpar
as vítimas dos dias presentes pelos seus horrores. A sua lenga-lenga de
que os gastos com a infraestrutura e o bem estar aborígene constituem
"um buraco negro para o dinheiro público" é racista,
falso e covarde. As centenas de milhões de dólares que os
governos australianos afirmam terem gasto nunca foram gastos, ou acabaram em
projectos para pessoas brancas. Estima-se que a acção legal
montada por interesses brancos, incluindo governos federal e estaduais,
contestando títulos de posse de nativos só por si cobre
vários milhares de milhões de dólares.
A calúnia é habitualmente utilizada como uma ferramenta de
distracção. Em 2006, o principal programa de assuntos correntes
da Australian Broadcasting Corporation, o
Lateline,
difundiu fantástica alegações de "escravidão
sexual" entre o povo aborígene Mutitjulu. A fonte, descrita como
um "jovem trabalhador anónimo", revelou-se ser um
responsável do governo federal, cuja "prova" foi desacreditada
pelo ministro chefe e polícia do Northern Territory. O
Lateline
nunca se retractou das suas alegações. Dentro de um ano o
primeiro-ministro John Howard declarou uma "emergência
nacional" e enviou o exército, política e
"administradores de negócios" às comunidades
aborígenes no Território do Norte. Foi mencionado um estudo
encomendado sobre crianças aborígenes, e "proteger as
crianças" tornou-se o clamor dos media da mesma forma como
há mais de uma centena de anos atrás quando crianças foram
raptadas pelas autoridades brancas responsáveis pelo bem estar. Um dos
autores do estudo, Pat Anderson, queixou-se: "Não há
relacionamento entre os poderes de emergência e o que está no
nosso relatório". Sua investigação concentrara-se
sobre os efeitos da habitação em bairros de lata sobre as
crianças. Poucos o ouviram. Kevin Rudd, um líder da
oposição, apoiou a "intervenção" e tem
apoiado o primeiro-ministro. Os pagamentos das ajudas são mantidos sob
quarentena e certas pessoas controlam-nos e comportam-se do modo colonial.
Para justificar, a maior parte da imprensa da capital, de propriedade de
Murdoch, tem publicado incansavelmente um quadro uni-dimensional da
degradação aborígene. Ninguém nega que existam o
alcoolismo e o abuso de crianças, tal como acontece na Austrália
branca, mas aí não existe qualquer quarentena existe.
O Northern Territory é onde o povo aborígene tem tido direitos
à terra mais perduráveis do que em qualquer outra parte,
concedidos quase por acidente 30 anos atrás. O governo Howard
dedicou-se a reduzi-los. O território contem extraordinárias
riquezas mineiras, incluindo enormes depósitos de urânio nas
terras aborígenes. O número de companhias licenciadas para
explorar o urânio duplicou para 80. A Kellogg Brown & Root, uma
subsidária do gigante americano Halliburton, contruiu a ferrovia de
Adelaide para Darwin, a qual corre junto à Olympic Dam, a maior mina de
urânio de baixo teor do mundo. No ano passado, o governo Howard
apropriou-se de terra aborígene próxima a Tennant Creek, onde
pretende armazenar os resíduos radioactivos. "A tomada de terras
tribais aborígenes nada tem a ver com abusos sexuais de
crianças", afirma a internacionalmente reconhecida cientista e
activista australiana Helen Caldicotte, "mas tudo a ver com a
mineração de urânio e a conversão do
Território do Norte num depósito de lixo nuclear global".
O PETRÓLEO DE TIMOR
Este extremo final das fronteiras da Austrália bordeja os Mares de
Arafura e de Timor, ao longo do arquipélago indonésio. Uma das
maiores reservas submarinas de petróleo e gás está no
Timor Leste. Em 1975, o então embaixador da Austrália em
Djacarta, Richard Woolcott, que fora prevenido acerca da invasão
indonésia do então português Timor Leste, recomendou
secretamente a Canberra que a Austrália fechasse os olhos a isto,
observando que as riquezas do fundo do mar "podiam ser muito mais
prontamente negociadas com a Indonésia... do que com [um independente]
Timor". Gareth Evans, mais tarde ministro dos Negócios
Estrangeiros, descreveu um prévio que valia "ziliões de
dólares". Ele assegurou que a Austrália se tivesse distinguido
como um dos poucos países a reconhecer a sangrenta
ocupação do general Suharto, na qual 200 mil timorenses perderam
as suas vidas.
Quando finalmente, em 1999, Timor Leste conquistou a sua independência, o
governo Howard passou a manobrar o timorenses a fim de retirar-lhes a sua fatia do
rendimento do petróleo e do gás através de mudanças
unilaterais da fronteira marítima e retirando da
jurisdição do Tribunal Mundial de disputas marítimas.
Este teria negado aquele rendimento desesperadamente necessário ao novo
país, assolado por anos de ocupação brutal. Contudo, o
então primeiro-ministro Mari Alkatiri, líder do partido
maioritário Fretilin, demonstrou estar à altura de Canberra e
especialmente do seu ameaçador ministro dos Negócios
Estrangeiros, Alexander Downer.
Alkatiri demonstrou ser um nacionalista que acreditava que a riqueza de
recursos de Timor Leste deveria ser propriedade do Estado, de modo a que o
país não caísse em dívidas para com o Banco
Mundial. Ele também acreditava que as mulheres deveriam ter as mesmas
oportunidades dos homens, e que os cuidados de saúde e a
educação deveriam ser universais. "Sou contra homens ricos
a banquetearem por trás de portas fechadas", disse ele. Por esta
razão foi caricaturado como comunista pelos seus oponentes, nomeadamente
o presidente Xanana Gusmão e o então ministro das
Relações Exteriores, José Ramos Horta, ambos
próximos ao establishment político australiano. Quando um grupo
de soldados descontentes rebelou-se contra o governo de Alkatiri em 2006, a
Austrália prontamente aceitou um "convite" para enviar tropas
para Timor Leste. "A Austrália", escreveu Paul Kelly no
Australian
de Murdoch, "está a operar como uma potência regional ou um
potencial hegemonista que molda os resultados securitários e
políticos. Esta linguagem é desagradável para muitos.
Mas é a realidade. É uma novidade, um território
experimental para a Austrália.
Uma feroz campanha contra o "corrupto" Alkatiri foi montada nos media
australianos, que lembrava o golpe através do media que momentaneamente
derrubou Hugo Chávez na Venezuela. Assim como os soldados americanos
que ignoraram os saqueadores nas ruas de Bagdad, os soldados australianos
ficaram de lado enquanto desordeiros armados aterrorizavam o povo, queimavam
suas casas e atacavam igrejas. O líder rebelde, Alfredo Reinado, um
assassino criminoso treinado na Austrália, foi elevado a herói
folclorico. Sob tal pressão, o democraticamente eleito Alkatiri foi
forçado a sair do gabinete e Timor Leste foi declarado um "Estado
falido" pela legião de académicos da segurança e
papagaios jornalísticos da Austrália preocupados com o "arco
de instabilidade" ao norte, uma instabilidade que eles apoiaram enquanto o
genocida Suharto foi o responsável.
Paradoxalmente, em 11 de Fevereiro, Ramos Horta e Gusmão tiveram um
dissabor quando tentaram negociar com Reinado a fim de submetê-lo. Os
seus rebeldes voltaram-se contra ambos, deixando Ramos Horta gravemente ferido
e o próprio Reinado morto. A partir de Canberra, o primeiro-ministro
Rudd anunciou o envio de mais "pacificadores" australianos. Na mesma
semana, o Programa Alimentar Mundial revelou que as crianças do Timor
Leste rico de recursos estavam lentamente a morrer de fome, com mais de 42 por
cento daquelas abaixo dos cinco anos com problemas sérios de falta de
peso uma estatística que corresponde àquela das
crianças aborígenes nas comunidades "fracassadas" que
também ocupam recursos naturais abundantes.
A Austrália entrou nas Ilhas Salomão e na Papua Nova
Guiné, onde as suas tropas e a sua polícia federal tem tratado de
"transtornos da lei e da ordem" que estão "a privar a
Austrália de negócios e oportunidades de investimento". Um
antigo oficial de inteligência australiano chama isto de "sociedades
selvagens para as quais a intervenção representa uma grossa
agulha de injecção, mas que é um instrumento
necessário". A Austrália também está
entrincheirada no Afeganistão e no Iraque. A promessa eleitoral de Rudd
de retirar o país da "coligação de vontade"
não incluía quase a metade das tropas australianas no Iraque.
Na conferência do ano passado do American-Australian Leadership Dialogue
um evento anual concebido para unir as políticas externas dos
dois países, mas na realidade uma oportunidade para a elite australiana
exprimir o seu servilismo histórico perante a grande potência
Rudd estava num estilo inabitualmente retórico: "É
tempo de cantarmos dos telhados do mundo", disse ele, "[que] apesar
do Iraque a América é uma esmagadoramente uma força para o
bem do mundo... Estou ansioso por mais do que trabalhar com a grande
democracia americana, o arsenal da liberdade, em produzir mudanças a
longo prazo para o planeta".
Falou o novo sheriff da Ásia.
05/Março/2008
O original encontra-se em
http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=478
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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