Um apelo para fazer Julian Assange regressar ao seu país
por John Pilger
O governo australiano tem a
obrigação de libertar Julian Assange, afirmou John Pilger na
manifestação de Sydney em 16 de junho para assinalar
os seis anos de detenção de Assange na embaixada do
Equador em Londres.
A perseguição a Julian Assange tem de acabar. Do contrário,
terminará em tragédia.
O governo australiano e o primeiro-ministro Malcolm Turnbull têm uma
ocasião histórica para escolher entre estas duas
situações.
Podem manter-se mudos, mas a história não lhes perdoará.
Ou então podem agir no interesse da justiça e da humanidade e
fazer voltar ao seu país este notável cidadão australiano.
Assange não pede qualquer tratamento de favor. O governo tem claras
obrigações diplomáticas e morais de proteger os
cidadãos australianos no estrangeiro contra qualquer injustiça
flagrante; no caso de Julian, de um erro judicial flagrante e do perigo extremo
que ele corre se sair da embaixada do Equador em Londres sem
proteção.
Sabemos, pelo episódio de Chelsea Manning, aquilo que o espera se um
mandado de extradição americano tiver êxito: segundo um
relator especial das Nações Unidas, trata-se de tortura.
Conheço bem Julian Assange; considero-o um grande amigo, uma pessoa de
uma resistência e coragem extraordinárias. Vi-o submerso num
tsunami incessante e dissimulado de mentiras e de calúnias, na mira da
vingança; e sei porque é que o caluniam.
Um plano de destruição da WikiLeaks e de Assange foi apresentado
num documento altamente secreto, com data de 8 de março de 2008. O autor
era a "Cyber Counter-intelligence Assessments Branch" do
Ministério da Defesa dos Estados Unidos. Descreviam em pormenor como era
importante destruir o "sentimento de confiança" que é o
"centro de gravidade" da WikiLeaks.
Isso seria conseguido, escrevem, com ameaças "de
exposição a uma perseguição penal" e com
ataques repetidos contra a sua boa reputação". O objetivo
era calar e criminalizar a WikiLeaks, o seu autor principal e o seu editor. Era
como se planificassem uma guerra contra um único ser humano e contra o
próprio princípio da liberdade de expressão.
Meios de comunicação "vichystas"
A arma principal seria conspurcar os indivíduos. As tropas de choque
estariam disfarçadas nos media ou seja, aqueles que, supostamente,
relatam os factos e nos dizem a verdade.
A ironia é que ninguém disse a esses jornalistas o que fazer. Eu
chamo-lhes de jornalistas "vichystas" referindo-me ao governo
de Vichy que serviu e encorajou a ocupação alemã em
França no tempo da guerra.
Em outubro passado, a jornalista Sarah Ferguson, da Australian Broadcasting
Corporation [a televisão pública australiana, NT], entrevistou
Hillary Clinton, a quem chamou um "ícone da sua
geração".
Foi esta mesma Clinton que ameaçou eliminar o Irão do mapa e que,
na qualidade de secretária de Estado dos Estados Unidos em 2011, foi uma
das instigadoras da invasão e da destruição do Estado
moderno que era a Líbia, com a perda de 40mil vidas humanas. Tal como a
invasão do Iraque, baseava-se em mentiras.
Quando o presidente líbio foi linchado e massacrado selvaticamente
à facada, Clinton foi filmada, delirante e a aplaudir. Graças a
ela, a Líbia passou a ser um terreno fértil para o Estado
Islâmico e outros jihadistas. Graças a ela, dezenas de milhares de
refugiados fugiram, atravessando o Mediterrâneo, correndo perigo de vida,
e muitos deles morreram afogados.
A WikiLeaks levantou o véu sobre Clinton
Os emails que foram publicados pela WikiLeaks revelaram que a
fundação de Hillary Clinton que ela tem em comum com o
marido recebeu milhões de dólares da Arábia Saudita
e do Qatar, os principais financiadores do Estado Islâmico e do
terrorismo no Médio Oriente.
Na qualidade de secretária de Estado, Hillary Clinton aprovou a venda de
armas mais importante de sempre no valor de 80 mil milhões de
dólares à Arábia Saudita, um dos principais
benfeitores da sua fundação. Hoje, a Arábia Saudita
utiliza essas armas para esmagar gente esfomeada, debaixo de fogo de uma
ofensiva contra o Iémen que se assemelha a um genocídio.
Sarah Ferguson, uma jornalista muito bem paga, não falou disso, quando
Hillary Clinton se encontrava sentada à sua frente.
Em vez disso, pediu a Hillary que descrevesse os "prejuízos"
que Julian Assange lhe causara "pessoalmente". Em resposta, Hillary
difamou Assange, um cidadão australiano, como sendo "claramente um
instrumento das informações russas" e "um oportunista
niilista às ordens de um ditador".
Não apresentou nenhuma prova e ninguém lha pediu em
apoio destas graves acusações.
Em nenhum momento, Assange teve direito de responder a esta entrevista
chocante, que os media, financiados pelos dinheiros públicos
australianos, tinham o dever de lhe dar.
Como se isso não bastasse, a diretora de produção de
Ferguson, Sally Neighour, acrescentou à entrevista um tweet
especialmente viperino: "Assange é a puta de Putin. Todos
sabemos!"
Há inúmeros outros exemplos de jornalismo vichysta. O
Guardian,
que já teve a reputação de ser um grande jornal
progressista, desencadeou uma vendetta contra Julian Assange. Como um amante
rejeitado, o
Guardian
dirigiu ataques pessoais, mesquinhos, desumanos e fantasistas contra um homem
que, em tempos, tinha publicado e de quem tirara proveito.
O antigo diretor-chefe do
Guardian,
Alan Rusbridger, classificou as revelações da WikiLeaks, que o
seu jornal publicou em 2010, "um dos maiores furos jornalísticos
dos últimos 30 anos". Os prémios foram atribuídos e
recompensados como se Julian Assange não existisse.
Denegrir e tirar proveito de Assange
As revelações da WikiLeaks passaram a fazer parte integrante do
plano de marketing do
Guardian
para aumentar o preço de venda do jornal. Ganharam dinheiro, por vezes
muito dinheiro, enquanto a WikiLeaks e Assange lutavam para sobreviver. Sem que
um cêntimo tenha ido parar à WikiLeaks, um livro muito mediatizado
pelo
Guardian
deu azo a um filme hollywoodesco muito rentável. Os autores do livro,
Luke Harding e David Leigh, trataram Assange de "personalidade
diminuída" e "sem coração".
Também divulgaram a senha secreta que Julian tinha dado ao
Guardian
, confiantemente, e que tinha sido concebida para proteger um ficheiro
numérico que continha os endereços eletrónicos da
embaixada dos Estados Unidos.
Quando Assange ficou encerrado na embaixada do Equador, Harding, que tinha
enriquecido à conta de Julian Assange e de Edward Snowden, juntou-se
à polícia diante da embaixada e gracejou no seu blogue:
"Talvez seja a Scotland Yard que venha a rir por último".
A pergunta é:
porquê
?
Julian Assange não praticou nenhum crime. Nunca foi acusado de nenhum
crime. A acusação sueca era falsa e grotesca e ele foi ilibado.
Katrin Axelsson e Lisa Longstaff, da organização "Women
Against Rape" [as mulheres contra a violação, N.T.]
resumiram-na nestes termos: "As acusações contra [Assange]
são uma cortina de fumo por detrás da qual se esconde um certo
número de governos que têm de amordaçar a WikiLeaks por ter
revelado ao público, corajosamente, os seus projetos secretos de guerras
e de ocupações, com tudo o que elas representam de
violações, assassínios e destruição
As
autoridades preocupam-se tão pouco com a violência contra as
mulheres que manipulam as acusações de violação
como lhes apetece
"
Esta verdade foi perdida ou enterrada numa mediática caça
às bruxas que associava Assange, de forma escandalosa, à
violação e à misoginia. A caça às bruxas
incluía vozes que se descreviam como sendo de esquerda e feministas.
Ignoraram deliberadamente as provas do perigo extremo para Assange, se ele
fosse extraditado para os Estados Unidos.
Segundo um documento publicado por Edward Snowden, Assange figura numa
"lista de homens a abater". Um memorando oficial que veio a ser
conhecido indica: "Assange vai ser uma bela noiva na prisão.
Nenhuma contemplação para com este terrorista. Vai comer comida
de cão até ao fim dos tempos".
Em Alexandra, na Virgínia o subúrbio onde reside a elite
americana que produz a guerra, um grande júri secreto, que faz lembrar a
Idade Média, conspirou, durante sete anos, para engendrar um crime de
que Assange seria acusado.
Não é fácil: a Constituição dos Estados
Unidos protege os editores, os jornalistas e quem lança alertas. O crime
de Assange é de ter quebrado um silêncio.
Nunca aconteceram
Na minha vida, nunca assisti a nenhuma investigação
jornalística com uma dimensão comparável à que a
WikiLeaks fez, fazendo apelo ao poder para prestar contas. É como se o
vidro sem mancha da moral tivesse sido quebrado, denunciando o imperialismo das
democracias ocidentais: o seu empenho numa guerra sem fim, a divisão e a
devastação de vidas "sem valor": da torre Grenfell [o
prédio de alojamento social dos arredores de Londres cujo incêndio
fez inúmeras vítimas, NT] até à Faixa de Gaza.
Quando Harold Pinter aceitou o Prémio Nobel da Literatura em 2005, fez
referência a "uma enorme meada de mentiras que nos serve de
alimento". Perguntou porque é que "a violência
sistemática, as atrocidades generalizadas, a supressão
implacável do pensamento independente" da União
Soviética eram tão conhecidas no Ocidente, enquanto os crimes
imperialistas da América "nunca aconteceram
mesmo quando
aconteceram, nunca aconteceram".
Nas suas revelações sobre as guerras de motivos falseados
(Afeganistão, Iraque) e sobre as mentiras descaradas dos governos (as
ilhas Chagos), a WikiLeaks permitiu que entrevíssemos como funciona o
imperialismo no século XXI. É por isso que Assange corre perigo
de morte.
Há sete anos, em Sydney, tomei as minhas disposições para
encontrar Malcolm Turnbull, um conhecido deputado federal de esquerda.
Queria pedir-lhe que enviasse uma carta dirigida ao governo por Gareth Peirce,
o advogado de Assange. Falámos da sua famosa vitória nos
anos 80, quando, ainda jovem advogado, ele tinha combatido as tentativas do
governo britânico para suprimir a liberdade de expressão e impedir
a publicação do livro
Spycatcher,
uma espécie de WikiLeaks da época, porque revelava os crimes do
poder do Estado.
A primeira-ministra australiana era na altura Julia Gillard, dirigente do
Partido Trabalhista, que tinha declarado a WikiLeaks "ilegal" e que
queria mandar anular o passaporte de Assange até lhe dizerem que
ela não tinha poderes para isso; que Assange não tinha praticado
nenhum crime; que a WikiLeaks era um meio de comunicação cujo
trabalho estava protegido pelo artigo 19 da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, de que a Austrália tinha sido um dos primeiros
signatários.
Abandonando Assange, um cidadão australiano, à sua sorte e
cúmplice da sua perseguição, o comportamento escandaloso
da primeira-ministra Gillard abriu a possibilidade de reconhecer Assange como
refugiado político cuja vida estava em perigo, perante o direito
internacional. O Equador invocou a Convenção de 1951 e concedeu
refúgio a Assange na sua embaixada em Londres.
Gillard apareceu há pouco tempo num espetáculo com Hillary
Clinton, ambas consideradas feministas de vanguarda.
O que há para reter sobre Gillard é um discurso caloroso,
hipócrita e constrangedor que ela proferiu no Congresso americano, pouco
tempo depois de ter exigido a anulação ilegal do passaporte de
Julian.
Malcolm Turnbull é o atual primeiro-ministro da Austrália. O pai
de Julian Assange escreveu-lhe. É uma carta comovente, na qual ele pedia
ao primeiro-ministro para fazer o filho voltar ao seu país. Fala do
risco muito real de ocorrer uma tragédia.
Eu vi a saúde de Assange deteriorar-se, ao longo dos anos de
encerramento e de privação de sol. Atacado por uma tosse
incessante, nem sequer teve autorização para ir ao hospital fazer
um exame radiológico.
Malcolm Turnbull pode manter-se mudo. Ou pode aproveitar esta oportunidade e
usar a influência diplomática do seu governo para defender a vida
de um cidadão australiano, cuja ação corajosa é
reconhecida por numerosas pessoas no mundo inteiro. Pode fazer com que Julian
Assange volte para o seu país.
O original encontra-se em
consortiumnews.com/2018/06/18/a-call-to-bring-julian-assange-home/
e a versão em francês em
www.les-crises.fr/un-appel-a-ramener-julian-assange-chez-lui/
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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