Lições da América Latina para os EUA e a UE
Crescimento, estabilidade e desigualdades
por James Petras
Imagens do passado
A imagem da América Latina retratada nos
mass media
e comummente aceite pelo público é a de uma região onde
pululam golpes de estado, revoluções periódicas e
ditaduras militares eternas, alternando entre ciclos de altos e baixos e
intervenções constantes do Fundo Monetário Internacional
que ditam a política económica.
Por outro lado, os mesmos
mass media,
bem como os seus aliados académicos, projectam a imagem dos Estados
Unidos e da União Europeia como sociedades estáveis, com um
crescimento económico sustentado, expansão crescente e programas
de protecção social, que resolvem os seus problemas
através de compromissos consensuais e políticas fiscais eficazes.
Nos últimos tempos, a maior parte desta última década,
estas imagens ganharam contornos de verdadeiros dogmas ideológicos,
não correspondendo já à realidade dos factos. Na verdade,
poderíamos mesmo defender que os papéis se inverteram: os EUA e a
UE encontram-se numa crise perpétua, enquanto a América Latina,
pelo menos a maior parte dos seus grandes países, conhecem a
estabilidade e o crescimento que faz corar de inveja (ou deveria fazer) os
comentadores e especialistas financeiros de Washington. Esta inversão de
papéis foi já reconhecida por muitos investidores europeus,
americanos e asiáticos, tão respeitáveis quanto os
manipuladores jornalistas do
Financial Times, NY Times
e
Wall Street Journal
que ainda escrevem acerca das vulnerabilidades, desequilíbrios e outras
fraquezas da América Latina, enquanto reconhecem a contra-gosto o
crescimento dinâmico da região.
A opinião progressista revela-se ela também errada ao focar-se
nos "avanços" dos regimes de esquerda, enquanto ignora as
dinâmicas mais profundas que afectam grande parte da região,
perdendo a capacidade de compreender os novos focos de conflito e
controvérsia.
Tentaremos caracterizar as realidades contrastantes entre as crises do
"Norte" (EUA/UE) e o crescimento sustentado do "Sul"
(América do Sul). Esta análise levantará questões
acerca da aplicabilidade da experiência sul americana no Norte e acerca
dos "ajustamentos estruturais" que serão necessários
para retirar os EUA e a UE da espiral descendente de estagnação e
conflitos violentos que têm caracterizado estas regiões durante a
maior parte da última década.
A década perdida, à moda dos EUA e UE
Os países da América Latina experimentaram durante os anos 80 uma
época de crises persistentes, que se materializou num crescimento
negativo, num aumento dos níveis de pobreza e num grande endividamento
que permitiu aos credores (tais como o FMI) impor medidas de austeridade duras
e agressivas juntamente com políticas de "ajustamento
estrutural", que ficaram conhecidas pelo termo de
"neo-liberalização". Nelas se incluíam a
privatização das mais estratégicas e lucrativas empresas
públicas, assim como o fim de qualquer estratégia estatal de
industrialização. Para os camponeses, a classe operária e
a classe média, o curto boom neoliberal dos anos 90 foi a
continuação da "década perdida" dos anos 80. As
políticas neoliberais dos anos 90 baseavam-se na
destruição dos fundamentos estruturais da economia e em enormes
transferência das receitas e das despesas públicas para o capital
enquanto se cortavam nos salários e na segurança social. Os
regimes neoliberais entraram numa crise profunda em 2000 provocando grandes
contestações sociais. O resultado foi um novo enquadramento
político e uma nova equação social que culminaram em novos
regimes pós-neoliberais na maior parte dos países da
América Latina.
Por outro lado, e em parte devido às oportunidades lucrativas que
surgiram com a crise da dívida e com a neoliberalização da
América Latina nos anos 90 (assim como na ex-União
Soviética, Europa de Leste e Balcãs), os Estados Unidos e a UE
prosperaram. Na América Latina, mais de 5000, bastante lucrativas,
indústrias de extracção de recursos, bancos,
telecomunicações e outras passaram para as mãos das
multinacionais privadas estrangeiras e para as do capital local. Os grandes
lucros derivados das acções, empréstimos e rendas das
transferências de tecnologia enriqueceram os capitalistas do Norte, na
mesma medida em que a pobreza se multiplicava pelo Sul. Os anos 90 foram a
"idade de ouro" do capital Ocidental que conheceu um crescimento dos
seus lucros, enquanto os partidos de esquerda e os sindicatos pareciam
incapazes de fazer frente a esta "onda" de conquista da economia por
parte do capitalismo predatório.
O êxito dos EUA e da UE, os enormes ganhos fáceis obtidos
através da pilhagem, especulação e
exploração, levaram ao domínio do capital financeiro e
à crença numa irrevogável "nova ordem mundial".
O domínio dos Estados Unidos e da UE foi construído sobre a sua
superioridade militar, apoiada por regimes neoliberais colaboracionistas e
clientelistas. A "nova ordem" durou menos de uma década: a
crise económica de 1999/2000 esmagou o sonho de um século de
dominação imperial. Ao mesmo tempo que os mercados entravam em
colapso, assim também caíam os regimes oligárquicos
eleitorais sul-americanos (ditos "democracias"), que formavam, com a
elite financeira e militar, a tripla aliança que definia a supremacia
Ocidental. O golpe final foi a crise económica de 2001-2002 nos EUA e na
UE, que acabou paulatinamente com a capacidade de intervir e de sustentar os
regimes clientelistas sul-americanos depostos pelas rebeliões populares.
A primeira década do novo milénio foi a "década
perdida" do Norte. Ao longo dos últimos onze anos o Norte conheceu
a estagnação e a recessão, que não permitiram
qualquer recuperação económica. Os estados capitalistas
salvaram temporariamente os bancos, mas demonstraram-se impotentes para
relançar o crescimento económico.
A classificação da economia norte-americana foi cortada pelas
agências de notação. O desemprego e o emprego
precário dispararam para um quinto da força de trabalho,
números só comparáveis com os dos países do
terceiro mundo. Os programas sociais sofreram graves cortes nos Estados Unidos
e nos países da União Europeia, destruindo décadas de
conquistas sociais. Os défices orçamental e da balança
comercial tornaram-se crónicos, enquanto os credores públicos e
privados ficavam cada vez mais preocupados com as tendência recessivas da
economia. O sector financeiro dos Estados Unidos e União Europeia
está ferido pela corrupção em larga escala, pelas fraudes,
gestão negligente e contas falsificadas, algo que antes
encontrávamos na América Latina. A União Europeia enfrenta
cortes brutais nos salários, pensões e empregos que afectam
milhões de trabalhadores e os jovens desempregados da Grécia,
Portugal, Espanha e Itália tomaram as ruas. As greves gerais
ameaçam a estabilidade de regimes cada vez mais isolados e lembram as
rebeliões populares que levaram a mudanças de regime na
América Latina no final dos anos 90 e princípio dos anos 2000.
Nos Estados Unidos, os protestos públicos reflectem um crescente
descontentamento: mais de 75% da população tem uma visão
negativa do Congresso e 60% da Casa Branca. O aprofundamento da
alienação do eleitorado norte-americano é já
comparável à perda de fé nos governos latino-americanos
durante as "décadas perdidas" de 1980-2000.
Tanto os Estados Unidos como a União Europeia sofreram
transformações radicais durante a "década
perdida" do presente século. Económica, política e
socialmente, o "Norte" foi latino-americanizado: instabilidade
social, estagnação económica, alienação
política, crescimento das desigualdades entre as classes e pobreza, tudo
isto liderado por elites políticas corruptas.
Sinais de tempos melhores: a América Latina
Recentemente, o ministro das Finanças brasileiro levantou a
possibilidade de os BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) tomarem
parte num "plano de resgate" para fazer frente às crises
económicas da Europa. Tal declaração teve mais
importância simbólica que real, mas reflecte no entanto uma certa
realidade: enquanto o Norte mergulha numa profunda crise sem fim à
vista, as economias latino-americanas estão com relativa boa
saúde.
Com excepção dos países latinos que estão ainda sob
domínio dos EUA, especialmente o México e a maior parte da
América Central, a América Latina não somente evitou as
crises que afligem o Norte, mas tem crescido de forma saudável,
três vezes mais que os EUA ao longo da década. O novo
milénio, especialmente entre 2003 e 2011 (excepto durante um breve
interlúdio em 2009) tem sido um período de crescimento elevado,
prosperidade generalizada, explosão das exportações,
aumento das importações, aumento da cooperação
inter-regional e redução da pobreza a larga escala.
O Brasil, por si só, reduziu o número de pobres em 30
milhões. Eleições normais, relativamente honestas e
competitivas, resultaram em transferências estáveis e legitimadas
do poder político. Exceptuando o golpe, apoiado pelos EUA, nas Honduras
e a intervenção no Haiti e na Venezuela, as tomadas violentas do
poder desapareceram durante a década passada. A construção
de instituições regionais prosperou com o advento da UNASUL e do
banco regional da América Latina.
Graças ao controlo fiscal e à regulação do sector
bancário, resultados de lições aprendidas durante a crise
das décadas perdidas (1980-2000), a América Latina foi apenas
ligeiramente afectada pelo crash financeiro europeu e estado-unidense de
2008-2011. O comércio latino-americano duplicou, especialmente com a
Ásia, ajudado pelo crescimento a dois dígitos da China. A
procura de recursos agro-minerais triplicou. A chave deste crescimento baseado
no aumento das exportações é a crescente
independência económica da América Latina, que levou a que
esta diversificasse os seus mercados, aproveitando as novas oportunidades e
reduzindo a dependência em relação aos EUA. A ênfase
posta pela América Latina no crescimento económico, nos novos
mercados e investimentos, levou-a a evitar o envolvimento nas múltiplas
e dispendiosas guerras coloniais com as quais estão comprometidos os EUA
e a UE.
Enquanto os EUA e a UE cunham mais moeda e aumentam a dívida para cobrir
os défices da sua balança comercial, a América Latina
quadruplicou as suas reservas de divisas estrangeiras. Isto serve de
amortecedor a eventuais recessões e evita a dependência do FMI,
arquitecto das décadas perdidas de 1980 e 90.
Dentro da América Latina, a questão da redução da
pobreza foi abordada de vários modos, com maior ou menor grau de
eficácia. Com a Venezuela do presidente Chávez a mostrar o
caminho, a tendência geral tem sido para um aumento dos pagamentos
sociais, automático na maior parte dos casos mas feito, noutros casos,
com grande esforço. À excepção do México
não houve em nenhum país da América Latina cortes sociais
semelhantes aos que tiveram lugar nos EUA e na UE. Os avanços
estruturais mais impressionantes tiveram lugar na Venezuela e, em menor escala,
na Argentina: o salário mínimo e as pensões foram
aumentados significativamente, bem como os subsídios de bem-estar pagos
às camadas mais vulneráveis da população
(mães solteiras, inválidos, pessoas em situações de
pobreza extrema).
À excepção da Colômbia (o principal aliado militar
dos Estados Unidos na região) que ainda é a capital
mundial do assassínio de advogados dos direitos humanos, sindicalistas e
os activistas camponeses as violações dos direitos humanos
diminuíram. Enquanto os EUA e a UE aumentaram enormemente as
violações dos direitos humanos através das
múltiplas guerras coloniais no Iraque, Afeganistão, Líbia,
Paquistão, Somália, Iémen e de
"operações" de esquadrões da morte, as
violações de direitos humanos perpetradas pela América
Latina fora do seu território limitam-se às suas forças de
ocupação no Haiti às ordens dos EUA e da UE.
Não obstante a repressão de movimentos populares, especialmente
de indígenas, camponeses e estudantes aumentou na Bolívia, no
Chile, no Brasil e noutros sítios, ao mesmo tempo que crescem as
políticas que promovem os direitos comunitários e as despesas
sociais.
Graças à corrente estabilidade política e crescimento
económico da América Latina, chovem investimentos institucionais
e empresariais na região. Pelo contrário, os EUA e a UE sofrem
com o desinvestimento e o declínio do investimento privado. Por outras
palavras, o desenvolvimento da América Latina é o outro lado da
moeda do subdesenvolvimento do eixo EUA-UE.
América Latina: novas contradições
A luta de classes continua a ser o motor do progresso social na América
Latina. Mas, ao contrário do que acontece no eixo EUA-UE, a luta de
classes na América Latina dirige-se para um aumento dos salários
mínimos e médios, mesmo que automaticamente, como parte de uma
estratégia ofensiva destinada a capturar uma parte cada vez mais
significativa das crescentes receitas. Nos EUA e na UE a luta de classes
é «defensiva», é um esforço para travar o
declínio das receitas, as perdas de postos de trabalho e os cortes nas
pensões.
Enquanto as acções militantes de classe, incluindo
ocupação de terras, manifestações e greves fazem
parte do repertório de armas sociais da classe trabalhadora, têm
lugar dentro dos parâmetros das instituições
democráticas. Na Europa, as elites têm vindo a ignorar cada vez
mais os massivos protestos e as greves, teimando em seguir políticas de
austeridade ditadas pelo não-eleito sector bancário nacional e
estrangeiro.
Os limites e «contradições» que afectam todos os
países da América Latina localizam-se ao nível interno das
desigualdades de classe. Enquanto as receitas nacionais aumentam e as
exportações disparam, as desigualdades entre a classe dominante
dos investidores e a massa dos assalariados crescem. Embora inicialmente o
problema das desigualdades sociais tenha sido encoberto pelo aumento geral da
qualidade de vida e do emprego, com o passar do tempo as classes produtivas e
assalariadas deixaram de estar satisfeitas com aumentos automáticos dos
salários que pouco vão além da inflação. O
aumento da qualidade de vida aumentou as expectativas. A percentagem de pobres
pode ter diminuído, mas subsistir com pouco mais de 4 dólares por
dia torna-se cada vez menos aceitável. O crescimento gera as suas
próprias contradições e novas exigências. As classes
anteriormente excluídas têm apenas, ao serem incluídas num
sistema que as explora, as suas organizações de classe como armas
para fazer avançar as suas reivindicações
sócio-económicas.
Este é claramente o caso do Chile contemporâneo, país onde
um crescimento a longo termo é acompanhado por desigualdades cada vez
mais vincadas, comparáveis às dos piores países da OCDE.
Desde Julho de 2011, grandes protestos estudantis contra o custo elevado da
educação, tanto pública como privada, e o baixo
nível dos apoios sociais foram o detonador de acções
sindicais de massas cobrindo a totalidade das actividades económicas,
desde os professores aos mineiros de cobre.
A nova e explosiva questão que põe face a face governantes e
governados numa América Latina em crescimento acelerado é a de
saber quem vê aumentado o seu rendimento? As questões de classe
tomam a dianteira no presente e no futuro imediato.
Crescimento, estabilidade e luta de classes democrática caracterizam a
maioria dos grandes países, mas não todos. Em vários
países, continua bem viva a herança autoritária e violenta
dos regimes ditatoriais. A prática colombiana de assassinar
sindicalistas, líderes camponeses, jornalistas e activistas dos direitos
humanos não regista nenhum decréscimo: mais de 30 sindicalistas
foram assassinados durante os primeiros oito meses de 2011.
O regime que está no poder nas Honduras, resultado de um golpe
perpetrado pelos exércitos paramilitares privados dos
latifundiários e apoiado pelos Estados Unidos, matou números
recorde de camponeses e dúzias de activistas políticos e sociais
pró democracia.
Os campos da morte do México também são famosos: mais de
40 mil pessoas foram mortas pela polícia, pelo exército e pelos
gangs da droga numa «guerra à droga» promovida por Obama e
posta em prática pelo Presidente Calderon.
O ponto comum destes três regimes da velha guarda é o facto de
continuarem a seguir os ditames de Washington, de continuarem a ser estados
altamente militarizados, com uma presença forte dos EUA a nível
policial e militar sob a forma de bases e conselheiros no exterior e de um
papel intrusivo nas decisões políticas. Todos eles falharam a
diversificação dos mercados e continuam muito dependentes de um
mercado americano estagnado. Todos eles consolidaram ou então em vias de
assinar acordos bilaterais de livre comércio, em vez de procurarem
aprofundar as suas relações com os dinâmicos mercados
asiáticos.
Estes três regimes
da velha guarda
nunca experienciaram o tipo de revoltas populares e consequentes regimes de
centro-esquerda que emergiram na maior parte da América Latina. No
México, candidatos pró-democracia foram por três vezes
vítimas de fraudes eleitorais que lhes roubaram a vitória, pela
primeira vez em 1988 e mais tarde em 2006. Nas Honduras, um presidente
progressista democrata-liberal, que tentou diversificar os mercados, foi
deposto em 2010 por um golpe militar apoiado pela administração
Obama. Na Colômbia, o assassinato de 5000 activistas e líderes da
democrática União Patriótica entre 1984-86 e o subsequente
assassinato de vários milhares de activistas bloqueou qualquer abertura
democrática. O fim abrupto das negociações de paz em 2002
e a total militarização do país (2002-2011), financiada
por US$6 mil milhões de ajuda militar estado-unidense impediu o
surgimento das mudanças políticas e sociais que dinamizaram o
crescimento sustentado da restante América Latina e abriram a porta para
uma «luta de classes democrática».
Enquanto a maior parte da América Latina avançou, evitando assim
a instabilidade e a crise económica do eixo EUA-UE, os legados do
passado e as desigualdades do presente foram um novo quadro de
obstáculos estruturais à consolidação de um
crescimento a longo prazo e da estabilidade político-social. A maior
contradição estrutural encontra-se no binómio crescimento
elevado / crescimento das desigualdades, modelo sócio-económico
baseado na "aliança 3 mais 1/2": o capital estrangeiro, o
capital nacional, o estado desenvolvimentista e os cooptados líderes
sindicalistas e camponeses. Os lucros e investimentos desta
configuração do poder têm sido dinamizados pelo crescimento
das exportações agro-minerais, pelo aumento do preço das
mercadorias, pelo crédito fácil ao consumo e pela
regulamentação estatal dos mercados financeiros. Os
benefícios económicos deste crescimento têm sido
desproporcionalmente apropriados pelas cúpulas, em conjunto com
benefícios dados a uma minoria dos trabalhadores mais bem pagos e mais
bem organizados. O restante tem sido usado para elevar a vida dos pobres da
pobreza mais abjecta para a sobrevivência. Estas crescentes desigualdades
têm sido encobertas pelo aumento geral da riqueza, pelo crédito
fácil e pela melhoria dos serviços públicos. Mas o
crescimento da riqueza pôs em marcha um conjunto de novos conflitos de
classe que serão exacerbados quando os preços das mercadorias
caírem e os governos já não puderem proceder a
actualizações automáticas. Mesmo actualmente, conflitos
graves surgem entre as multinacionais predadoras de recursos mineiros e madeira
e os índios/camponeses no Peru, Equador, Bolívia, Brasil e Chile.
Estas lutas, por vezes violentas, entre o estado/multinacionais e os camponeses
na «periferia das zonas rurais» podem desencadear um conflito mais
alargado nas cidades, se o lucro das exportações diminuir.
A segunda contradição está entre «trabalhadores
pobres marginalizados» e um novo grupo de investidores de classe
média-alta que investiram as suas «poupanças» em
acções das empresas mineiras detidas pelo capital local ou
estrangeiro. Conservadores e estreitamente alinhados com a
orientação das multinacionais, estes novos investidores da classe
média enriqueceram graças a uma exploração
desregulamentada dos bens naturais e à contaminação das
comunas rurais contíguas. Se, e quando, o preço das mercadorias
cair a pique, os regimes terão de lidar com uma classe média
arruinada e histérica à procura de um salvador político
onde este não existe, ou pelo menos não entre as
facções civis existentes.
A viragem à direita dos regimes de centro-esquerda e as suas oportunas
relações com o grande capital, especialmente no Brasil, no
Uruguai, na Bolívia, no Equador e no Paraguai levou à
corrupção das altas esferas. A liberalização e o
aumento exorbitante dos salários dos executivos foram acompanhados por
«pagamentos oficiosos» a funcionários públicos. A
corrupção erodiu a ética social dos políticos de
centro-esquerda, substituindo-a pelo princípio do «gerar novos e
maiores investimentos», por mais atalhos e subornos que sejam
necessários. A corrupção espalha-se desde as
cúpulas até à base da pirâmide social, facilitando a
vida aos investidores estrangeiros, mas diminuindo sem dúvida a
confiança e a lealdade dos trabalhadores do mercado formal e informal
que se encontram excluídos do «ciclo mágico» dos
subornos. Os «patrocínios» e os investimentos na
redução da pobreza podem limitar o impacto da
corrupção das elites nas camadas pobres subsidiadas. No entanto,
quando a economia abrandar, pode também levar a que os protestos sociais
se orientem no sentido de uma mudança de sistema político.
A terceira contradição encontra-se entre o elevado nível
de dependência da exportação de matérias-primas (que
até agora têm sido um elemento dinamizador do crescimento) e o
declínio relativo ou absoluto das exportações de produtos
manufacturados e industriais. O crescimento do rendimento proveniente das
matérias-primas levou a uma valorização da moeda que
diminui a competitividade dos produtores nacionais de produtos manufacturados,
levando-os a um profundo declínio e mesmo à falência.
Os exportadores industriais asiáticos especialmente na China e em
menor escala na Índia e na Coreia estão a entrar cada vez
mais nos mercados latinos com produtos acabados a preços mais baixos,
desindustrializando as economias latinas. Nalguns casos, os capitalistas
latino-americanos procuram investir na Ásia para diminuir os custos de
produção e exportar novamente para os seus mercados nacionais. A
indústria brasileira, que foi a mais afectada, impôs recentemente
medidas proteccionistas que incluem taxas, leis que impõe 65% de bens
locais e subsídios públicos que contrariem o recuo da
diversificação da economia.
A quarta contradição encontra-se precisamente no bem-sucedido
crescimento económico e nos altos níveis de rendimento, que
atraem tanto capital especulativo como investimento produtivo. O capital
especulativo irá fugir, desestabilizando o sistema financeiro, ao
primeiro sinal de abrandamento económico. A propriedade estrangeira
irá diminuir a capacidade do governo para influenciar as decisões
de investimento em tempos de crise. Os investimentos produtivos respondem a
mercados em expansão, mas não os criam.
Em suma, o crescimento dinâmico que a América Latina tem vindo a
conhecer ao longo da década levou-a sem dúvida a ultrapassar os
EUA e a UE numa série de questões fundamentais, a nível
não só económico como social e político. Ainda
assim, deste crescimento surgiu uma nova série de
contradições, bem como a necessidade de corrigir graves
desequilíbrios: a exigência popular de uma alteração
na distribuição da riqueza, as pressões dos industriais
para uma transição de uma economia dependente da finança e
das matérias-primas para a industrialização e a
exigência das camadas urbanas pobres de melhores serviços
públicos, especialmente no sector da saúde e no que toca à
sobrelotação das escolas. Estas mudanças implicam um
ajustamento estrutural na estrutura do poder. Os desequilíbrios
económicos reflectem a concentração crescente do poder
político nas mãos dos capitalistas, dos banqueiros e da classe
média local dos investidores das grandes cidades. Os funcionários
públicos, os trabalhadores, as classes urbanas mais desfavorecidas, os
camponeses, os ecologistas e os indígenas com preocupações
ecológicas são postos à margem das posições
económicas chave. Eles precisam de tomar novamente as ruas, com novos
movimentos independentes que levantem duas questões fundamentais: Que
tipo de crescimento e crescimento para quem?
Lições da América Latina: ouçam ianques e eurocratas
Será que as lições positivas tiradas da dinâmica
experiência latino-americana podem fornecer um «modelo» para os
EUA e a Europa? É este «modelo», na totalidade ou em parte,
transferível para o Norte ou são as duas regiões
tão diferentes que tais lições não são
aplicáveis?
Embora tendo em conta as vastíssimas diferenças
históricas, culturais, económicas e políticas entre as
regiões, algumas lições podem ser tiradas da década
de crescimento dinâmico da América Latina, fornecendo novas ideias
para contrariar as fórmulas económicas autodestrutivas que
têm sido postas em prática pelos especialistas, economistas e
governantes dos EUA e da UE.
Comecemos pelo princípio. A ascensão da América Latina foi
precipitada por uma profunda crise económica, pelo colapso da economia,
o desemprego em larga escala e o empobrecimento da classe média. A crise
levou a um total descrédito daquilo a que se chamou alternativamente
«mercado-livre», «neoliberalismo» e capitalismo
«desregulamentado». Até aqui tudo bem: da mesma forma, os EUA
e a UE estão a passar por uma crise económica prolongada e em
vias de aprofundamento, que levou à falência do Sul da Europa, a
uma dupla recessão nos EUA e a 20% de desemprego. A «classe
política» dos EUA e da Europa está amplamente desacreditada.
É a partir daqui que as duas regiões divergem.
Na América Latina, as crises levaram a protestos de massas,
sublevações populares e mudanças de regime. Governos
pós-neoliberais de centro-esquerda, sob a pressão das massas,
lançaram investimentos geradores de emprego e programas públicos
de redução da pobreza. A Argentina, que fazia face a uma crise
financeira semelhante àquela que atinge hoje a Grécia, Portugal e
Espanha, incumpriu a sua dívida externa canalizando os dinheiros
públicos para uma revitalização da economia. Tendo em
conta que a especulação financeira ligada à Wall Street e
à City de Londres precipitou a crise, os governos latinos
instituíram mecanismo de controlo e regulamentação que
limitaram a volatilidade financeira. Os novos regimes, influenciados pelo
boom
das matérias-primas, diversificaram os seus parceiros comerciais,
entrando nos dinâmicos mercados asiáticos, colhendo elevados
lucros e estimulando o consumo local e o investimento público. Que
lições podem os EUA e a UE, mergulhados na crise, tirar da
recuperação bem sucedida da América Latina?
Em primeiro lugar, o início de uma resposta bem sucedida depende de uma
transformação política. Os regimes devem mudar em completa
ruptura com o mercado-livre neoliberal e com os líderes e partidos
políticos que estão profundamente comprometidos com as
instituições e as políticas fracassadas. A mudança
de regime pressupõe a erupção de
organizações de massas dinâmicas, novas, velhas,
improvisadas e organizadas, capazes de fazer o caminho que vai do protesto e da
resistência à tomada do poder político.
O objectivo é reequilibrar as economias dos EUA e da UE, levando-as da
«financiarização» e do «militarismo» a
investimentos a longo prazo e larga escala em produção,
tecnologia, infraestruturas e serviços sociais. Investimentos
públicos directos e empréstimos aplicados na
geração concreta de projectos; rejeição total do
gotejamento, das políticas monetárias que nunca se transferiram
de bancos privados para obras públicas.
Toda a mentalidade militarista-sionista da guerra permanente é
vulnerável à mudança: fazer isso, criará empregos,
a principal prioridade para dois terços do público
estado-unidense. A "guerra ao terrorismo", a bandeira dos senhores da
guerra que estão no poder, é considerada uma prioridade por
somente 3% dos americanos. Uma vez: mais, a viragem do "militarismo"
para a economia civil nos países da América Latina foi o
resultado de levantamentos populares na rua e nas urnas.
Claro que para as repúblicas latino-americanas foi mais fácil
redireccionar as suas prioridades económicas a partir de ditaduras
militares fracassadas e políticas neoliberais desacreditadas. Para os
movimentos sociais nos Estados Unidos e na União Europeia não
será tão fácil fechar centenas de bases militares,
despojar as elites políticas militaristas que são apoiadas por
imponentes lobbies nacionais e internacionais, e converter por fim os
impérios em repúblicas produtivas. Os exportadores
latino-americanos conseguiram no entanto prosperar ao recusarem participar em
guerras imperialistas. Estes continuam a procurar novos mercados no
Médio Oriente e noutras regiões, em vez de destruírem os
adversários de Israel como fazem os Estados Unidos e a União
Europeia ao levarem a cabo guerras coloniais, como no caso do Iraque e da
Líbia, e ao imporem sanções ao Irão, Síria e
Venezuela.
A diferença de comportamento entre as repúblicas
latino-americanas e o império euro-americano agudiza-se. Os Estados
Unidos e a União Europeia devem abandonar as suas imagens
egocêntricas de países desenvolvidos "bem-sucedidos",
assim como o estereótipo obsoleto da América Latina como um
conjunto de países instáveis e subdesenvolvidos. Os Estados
Unidos lidam hoje com um problema real, encaminhando-se para uma profunda e
descontrolada crise económica contra a qual não têm muitos
recursos. Internacionalmente, estão cada vez mais isolados, entrando
mesmo em conflito com os seus parceiros económicos. Washington alinha-se
por Israel, alienando, nesse mesmo processo, 1500 milhões de
cidadãos de repúblicas islâmicas (ricas e pobres) desde a
Arábia Saudita ao Paquistão e em toda a região. Antagoniza
o Brasil através da sua política de ajuda à finança
que sobrevaloriza o Real, sem no entanto conseguir beneficiar realmente a
recuperação económica americana.
Os fracassos internos e externos multiplicam-se, enquanto a crise se aprofunda
sem que os bafientos governantes ou a patética oposição
sejam capazes de oferecer qualquer alternativa programática.
Tal como na América Latina durante os primeiros anos desta década
precisamos de uma rebelião popular: precisamos de uma profunda
mudança de regime; precisamos de pensar em termos de investimentos
públicos produtivos e não de perdas monumentais de capital dos
especuladores da Wall Street ou de desperdício de recursos
públicos em armas de destruição.
02/Outubro/2011
O original encontra-se em
http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=26887
. Tradução de MQ.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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