Benvindos ao inferno: A cidade mineira de La Rinconada, no Peru
Enquanto o Ocidente ataca a Venezuela, um país que melhorou a vida de
muitos de seus cidadãos, são ignorados os horrores que ocorrem no
Peru e em outros países "pró-mercado" na América
Latina.
La Rinconada, fica a mais de 5 000 m acima do nível do mar,
é a maior instalação mineira do mundo; uma cidade do ouro,
uma concentração de miséria numa comunidade de cerca de 50
mil habitantes, muitos dos quais estão envenenados pelo mercúrio.
Um lugar onde inúmeras mulheres e crianças são violadas
regularmente, onde a lei e a ordem colapsaram há já bastante
tempo, onde jovens são enviadas para depósitos de lixo para
"reciclar" resíduos terrivelmente malcheirosos e onde quase
todos os homens trabalham em condições brutais, tentando
economizar algum dinheiro, mas onde a maioria simplesmente arruína a sua
saúde, mal conseguindo manter-se viva.
Decidi viajar para La Rinconada precisamente nestes dias, quando a Venezuela
socialista luta pela sua sobrevivência. Dirigi-me até lá
enquanto as elites europeias na Bolívia tentavam caluniar o enormemente
popular e bem-sucedido presidente da Bolívia, Evo Morales, enquanto as
eleições se aproximam.
Como em tantos lugares no turbo-capitalista e pró-ocidental Peru, La
Rinconada é um tremendo aviso: a Venezuela e a Bolívia eram assim
antes de Hugo Chávez e Evo Morales. É para onde Washington quer
que toda a América Latina retorne.
Como aquelas enormes favelas sem esperança que cercam Lima, La Rinconada
deveria ser um apelo para a luta. Há uns cinco anos pensámos que
a América Latina nunca mais voltaria a ser desta forma. Achávamos
que sim, antes que as forças de extrema-direita em Washington
conseguissem reagrupar e implantar velhos dogmas da Doutrina Monroe nas linhas
de frente, contra a independência e o socialismo latino-americanos.
Um motorista recusou-se a levar-me para La Rinconada, sozinho. Para mim, quanto
menos pessoas envolvidas, melhor. Mesmo no Afeganistão, trabalho
sozinho, apenas com meu confiável motorista pashtun. Mas aqui é
diferente: a reputação de La Rinconada é que
"você pode entrar, mas nunca conseguirá sair". Sou
informado sobre a nova máfia que lá opera e sobre a
situação de segurança totalmente deteriorada. No final,
não tive escolha a não ser aceitar uma tripulação
de dois homens: um motorista e uma pessoa "familiarizada com a
situação relacionada com as minas peruanas".
Saímos da cidade de Puno pela manhã, passando pelas
magníficas margens do Lago Titicaca, que a 3 812 metros de altitude,
é o lago navegável mais alto do mundo, compartilhado pelo Peru e
pela Bolívia.
"Do lado peruano, o lago está sendo envenenado por
mercúrio", explicou Freddy, um especialista em
mineração. "La Rinconada e suas minas de ouro ainda
estão muito distantes, mas o rio Ramis agora está a trazer
água contaminada de toda a área, particularmente da cidade
mineira de Ananea, diretamente para o lago".
Existe uma espécie de auto-estrada entre Puno e Juliaca, um "centro
de atividade comercial" na região; na verdade, uma desordenada e
poeirenta cidade cheia de favelas. Logo a seguir a Juliaca, encontramos apenas
miséria rural.
Trabalhei no Peru durante a chamada 'Guerra Suja', travada entre duas
guerrilhas comunistas (o maoísta Sendero Luminoso e o marxista MRTA
pró-cubano) e o Estado peruano, que terminou oficialmente em 1992. Desde
então, a miséria rural do Peru não mudou: moradias feitas
de terra, os rostos desesperados dos aldeões e quase nenhum
serviço social permaneceu.
Do outro lado da fronteira, na Bolívia socialista, a vida no campo
melhora continuamente. Mas não aqui; não no Peru. Assim, dezenas
de milhares de homens ansiosos estão "indo para cima",
atingindo alturas tremendas, arriscando suas vidas e arruinando a sua
saúde, por pelo menos uma pequena probabilidade de encontrar ouro e
escapar à miséria endémica.
"Minha esposa salvou-me", disse um motorista que, dois dias antes, me
havia levado da fronteira boliviana de Desaguadero até à cidade
peruana de Puno: "Eu estava totalmente falido. Nós
acabávamos de ter um bebé. Eu não tinha ideia do que
fazer. E assim, disse a minha família que ia para La Rinconada".
Minha esposa levantou-se e disse: "Se você for, nunca mais
voltará. E se fizer isso, você não será mais o homem
que eu amo. Você fica em Puno e trabalha aqui. Eu também vou
trabalhar. Haveremos de conseguir alguma forma de nos arranjarmos. Você
não sabe: La Rinconada é uma sentença de morte". Eu
fiquei. Ela estava certa. Vi pessoas que foram e regressaram totalmente
destruídas".
Está a ficar frio. O nosso carro, com a suspensão muito
deteriorada vai subindo aos solavancos, mas apesar de tudo vai indo. Quanto
mais subimos, mais frio fica. Começou a chover, depois parou. A vista
é magnífica, mas a paisagem está coberta de lixo. O rio
está cheio de sujidade. Os lamas comem lixo, carros estão a ser
lavados nos rápidos do rio e uma aldeia parece estar abandonada,
transformada em cidade fantasma. Depois de mais de quatro horas de
condução, de serpentear loucamente por desfiladeiros, as
primeiras minas aparecem no horizonte. Mais sujidade, maquinaria primitiva e
uma cidade mineira Ananea.
A Sra. Irma, dona de um restaurante local, prepara café forte e folhas
de coca embebidas em água quente, o melhor remédio para a
doença da altitude. Ela é tagarela, percebendo que não
representamos nenhum perigo:
"Às vezes, os mineiros de La Rinconada fogem para aqui. Ananea
está um pouco abaixo e é mais seguro. Nós temos
água. Lá, tudo é envenenado; por mercúrio e outras
coisas horríveis. Você conhece a regra de como eles trabalham
lá: durante 29 dias eles trabalham de graça e então, um
dia por mês, eles podem apanhar o que encontram. É uma aposta: se
tiverem sorte, ficam ricos durante um dia. Ou acham muito pouco ou nada. E
mesmo se o conseguirem, à noite, pode ser-lhes roubado.
Ela parece velha, maternal, compassiva, preocupada. Já viu de tudo,
parece. Nós pagamos e continuamos a viagem.
Então, vemos: lagos
enormes, amarelados, acastanhados, com fluxos que escorrem à
superfície de compridas mangueiras azuis. Tudo está arruinado e
envenenado. Freddy diz que há algumas novas tecnologias que poderiam ser
usadas para extrair ouro, mas os mineiros daqui usam mercúrio, já
que é mais barato. Máquinas primitivas estão funcionando,
assim como na ilha indonésia de Kalimantan/Bornéu; lá, a
mineração ilegal está envenenando rios poderosos, aqui
está nivelando montanhas inteiras, criando grandes lagos e paisagens
lunares a cerca de 5 000 metros de altitude.
Os guardas estão obviamente muito descontentes com a nossa
presença. Ainda assim, consegui filmar e fotografar, e depois ainda nos
dirigimos mais para cima. As pilhas de lixo aparecem. Atrás deles, duas
imensas montanhas cobertas de neve. E uma irónica placa metálica:
"Bem-vindo a La Rinconada, não despeje lixo".
Tenho visto muito, em todos os continentes, mas La Rinconada é
verdadeiramente "única". Montanhas e vales estão
pontilhados de barracas de metal com estruturas improvisadas. A sujeira
está por todo lado. Não há abastecimento de água. A
electricidade é escassa. O lixo cobre até as humildes campas de
um cemitério local.
Na praça principal, o consumo de bebidas fortes prossegue. É
perigoso fotografar aqui. Escondo-me; uso o zoom. Dois garimpeiros estão
deitados de bruços, e alguém está a atirar comida para as
suas bocas abertas, como se estivessem alimentando animais num jardim
zoológico.
A prostituição é desenfreada. As crianças fazem
trabalhos estranhos. Num dos depósitos de lixo, pergunto a duas garotas
sobre sua idade. "25", vem a resposta pronta. Eu acho que 15, no
máximo. Mas seus rostos estão cobertos.
"Quão perigoso é isto aqui?" Pergunto a um dos
mineiros. Ele responde prontamente: "Muito perigoso, mas não temos
escolha".
"As pessoas sofrem acidentes no trabalho? Morrem?
"Claro. Isso acontece com muita frequência. Todos assumimos riscos.
Algumas pessoas sofrem ferimentos horríveis, outras morrem. Se
não puderem ser tratadas, são levados para Ananea e, se tiverem
sorte, para um hospital de Juliaca. Outros são deixados aqui para
morrer. É a vida. Alguns são salvos, outros não.
Será que condenam o capitalismo, o extremamente selvagem sistema
pró-mercado adoptado no seu país?
Ouço a mesma resposta fatalista: "É a vida",
Que sabem eles sobre a Bolívia? Sobre as grandes mudanças do
outro lado da fronteira? Saberão que a cerca de 30 quilómetros
daqui, "como o condor voa", no lado boliviano, há a intocada
reserva nacional? Alguns sabem que agora é muito melhor
"lá", na Bolívia. Mas eles não associam isso ao
socialismo ou às políticas independentes e a favor das pessoas do
presidente Evo Morales. E sabem muito pouco sobre a Venezuela.
Tudo o que sabem é que mal sobrevivem no Altiplano Andino e que
estão a lutar pelas suas vidas aqui em La Rinconada.
Como na Indonésia, outro país de regime capitalista selvagem
pró-ocidental, as pessoas aqui estão muito preocupadas com seus
problemas fundamentais no imediato; eles não podem ser perturbados com
pensamentos "abstractos" sobre o ambiente ou a ausência de lei.
"Não é apenas mercúrio", disseram-me. "Tudo
aqui está misturado: venenos relacionados à
mineração, merda, lixo urbano
"
A altitude atinge-me fortemente: 4 000 metros em Puno é ruim; mais
de 5 000 aqui é fatal. Duas pessoas seguram-me enquanto filmo
à beira de uma ravina, para não cair.
De alguma forma, de uma maneira muito distorcida, reconheço que as
vistas ao meu redor são lindas, impressionantes. Eu estou impressionado.
Impressionado com a capacidade de os seres humanos sobreviverem sob quase todas
as condições.
Aqui praticamente tudo é ilegal. Mas centenas de milhões
são produzidos e lavados.
As pessoas não ganham nada; quase nada. Um mineiro faz de 800 a 1.000
soles (cerca de 250 a 300 dólares) por mês. Empresas privadas e
governo corrupto ganham milhares de milhões. Mais uma vez, a
América Latina está ficando mais pobre. Mas o Ocidente não
está pressionar para uma "mudança de regime" no Peru,
no Paraguai ou no Brasil. É assim que é suposto ser. É
assim que Washington gosta.
Outro mineiro ousa falar comigo: "A maior parte do ouro vai para o
exterior. Mas antes que isso aconteça... Se os gangues não nos
roubam, os mineiros, à noite, muitas vezes assassinam pequenos
intermediários, aqueles que compram ouro directamente a nós".
Você tem medo?
"Toda a gente aqui tem medo", confirma. "Assustado e doente.
Isto é o inferno".
"É como uma guerra..." digo eu.
"É uma guerra", concorda.
Mas quase ninguém vem aqui para relatar e investigar. A vida de um pobre
peruano não vale nada; nada mesmo. Filmei, documentei... É tudo
que posso fazer por eles. E pela Bolívia e pela Venezuela.
Enquanto trabalho, sinto que o inferno está próximo, está
aqui. Não é abstracto, religioso: é real. Mas poderia e
deveria cessar.
Acerca de La Rinconada ver também o filme
Eldorado XXI
, da cineasta portuguesa Salomé Lamas. O semanário
Avante!
publicou uma
crítica
desse filme.
[*]
Filósofo, romancista, cineasta e jornalista de investigação. Cobriu
guerras e conflitos em dezenas de países. Seus livros mais recentes são
o romance
Aurora
e duas obras de não ficção:
Exposing Lies Of The Empire
e
Fighting Against Western Imperialism
. Seu sítio web é
andrevltchek.weebly.com.
O original encontra-se em
www.rt.com/op-ed/454486-la-rinconada-hell-mining-peru/
. Tradução de DVC.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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